Por Paulo Fonseca (*)
A personalização digital tornou-se uma das marcas da economia moderna. Permite adaptar produtos, serviços e comunicações à preferência de cada consumidor, tornando a sua experiência digital mais simples, relevante e eficiente. Mas há uma fronteira que não pode ser ultrapassada: a que separa a conveniência da exploração. Quando a personalização deixa de servir o consumidor e passa a explorá-lo, o progresso tecnológico transforma-se em discriminação digital.
O recente caso da Delta Airlines, que gerou polémica ao ser acusada de ajustar as tarifas aéreas através dos seus sistemas de inteligência artificial que avaliavam quanto cada passageiro estaria disposto a pagar pela sua viagem, é apenas um exemplo de um fenómeno escondido que começa a generalizar-se cada vez mais, embora muitas empresas afirmem a pés juntos que não usam quaisquer modelos de preço ajustados ao perfil dos seus clientes. A verdade é que os preços, as interfaces e até as mensagens que recebemos são cada vez mais moldados em função da nossa pegada digital. E, muitas vezes, nem Hercule Poirot consegue descobrir o que está por detrás da personalização.
É importante distinguir os diferentes tipos de personalização. Existe a personalização de conteúdos – que inclui a publicidade e as recomendações das plataformas em linha. Existe a personalização das interfaces – que altera a forma como cada utilizador vê e interage com os sites e aplicações, influenciando decisões e perceções. E existe a personalização de preços – a mais sensível e potencialmente mais problemática – quando o valor de um produto ou serviço é definido, não apenas pela procura global, mas também pela análise dos nossos dados pessoais, desde o histórico de compras, às nossas publicações e pesquisas e até ao tipo de dispositivo ou localização.
A personalização pode trazer benefícios reais, se usada de forma justa e transparente. Pode simplificar escolhas, permitir ofertas relevantes, facilitar descontos e melhorar a relação entre as empresas e os seus clientes. Mas existem riscos sérios quando a personalização se transforma numa arma de discriminação. A personalização não pode ser usada para explorar as nossas fraquezas ou o nosso grau de necessidade de um produto ou de um serviço. Não pode servir para extrair o máximo que alguém está disposto a pagar, nem para ocultar o preço real de mercado.
A DECO tem desenvolvido um extenso trabalho nesta área. Para esta organização, a personalização de preços baseada em dados comportamentais que gerem discriminação é incompatível com a própria Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Quando o preço que cada um vê é diferente e, sobretudo, quando essa diferença resulta de informações privilegiadas que as empresas recolhem sobre nós, o equilíbrio no mercado desaparece. Cada pessoa torna-se num mercado isolado, sem referência nem comparação possível.
Os preços dinâmicos são também um exemplo disso. Em teoria, deveriam refletir a procura global – mais procura, preço mais alto; menos procura, preço mais baixo. Mas na prática, já não é o número de pessoas interessadas num produto que determina o seu preço, mas sim o perfil digital de quem o procura. O risco é evidente: quando o meu comportamento online influencia o preço que me é apresentado, o mercado deixa de ser um espaço de concorrência e passa a ser um espelho da vulnerabilidade digital do cidadão.
Mas qual deve ser a solução? O caminho não é rejeitar a personalização por si só, mas colocá-la no caminho certo. A personalização pode e deve existir quando oferece vantagens claras, como descontos reais, recomendações úteis e uma experiência mais acessível. Mas deve ter limites transparentes e auditáveis. As empresas devem ser obrigadas a demonstrar que as suas práticas são justas e a personalização só pode existir por opção e nunca por defeito.
A Comissão Europeia tem aqui um papel decisivo. Não basta exigir que as empresas informem que praticam preços personalizados – é preciso definir linhas vermelhas através de uma resposta institucional forte, europeia e coerente, que estabeleça os limites éticos e legais da personalização.
O desafio, como já o temos dito, será sempre equilibrar a inovação com a proteção. O preço justo é aquele que promove a confiança, melhores produtos e escolhas certas. Não é aquele que depende do quanto um algoritmo acha que posso pagar. O futuro digital não pode ser um jogo em que os consumidores pagam o preço da sua própria informação. Se deixarmos que os algoritmos decidam quanto cada um de nós vale, então deixaremos de ser consumidores livres para nos tornarmos alvos perfeitos. E nenhum progresso justifica isso.
(*) Assessor Estratégico e de Relações Institucionais da DECO
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