Atualizar e melhorar os sistemas de informação centrais dos serviços judiciais e dos registos, ao mesmo tempo que se procura oferecer uma aproximação mais humana e introduzir fatores de inovação, são os pilares do plano Justiça Mais Próxima, apresentado pelo Ministério em março.

O projeto integra mais de 130 medidas e 35 já estão implementadas ou implementação, com um contributo muito relevante das tecnologias da informação nas componentes de back office mas também de front office, onde se aposta numa grande transformação e procura de transparência.

Muito do trabalho tem sido feito mas pouco tem sido comunicado externamente, numa postura de discrição e de prioridade para a organização de processo, como explica Anabela Pedroso, secretária de Estado da Justiça, na sua primeira entrevista desde que tomou posse. As opções dos vários projetos, o passado dos sistemas de informação na Justiça e a forma como o ministério quer fazer a mudança na continuidade, envolvendo todos os agentes do sistema, são temas abordados na entrevista.

TeK: Tradicionalmente quando se juntava as palavras tecnologia e justiça na mesma frase não era muito positivo. E este plano Justiça Mais Próxima junta muita tecnologia. O que querem fazer diferente e o que se pode aproveitar do passado?

Anabela Pedroso: Do passado aproveitamos tudo. Aproveitamos a experiência, a boa prática e também o que correu mal, para não voltar a repetir. Do ponto de vista tecnológico nada se perde. Neste momento estamos a trabalhar na melhoria de toda a tecnologia que já está instalada, transformando-a e atualizando-a para as necessidades do seculo XXI. Houve muita alteração legislativa, e isso foi um dos fatores que fez com que os últimos tempos tenham sido mais truculentos, mas neste momento estamos muito seguros, as equipas estão a trabalhar muito bem.

É preciso também explicar que os sistemas na Justiça não se limitam apenas ao Citius. Há todo um ecossistema e um conjunto de ferramentas que são importantes para o dia a dia dos agentes judiciais e nos quais estamos a trabalhar para melhorar e agilizar processos, na componente que é acessível ao público mas também nas áreas de gestão.

Não queremos de forma alguma colocar em causa a separação de poderes, e respeitamos totalmente essa separação entre o poder judicial e politico, e neste momento trabalhamos de forma muito articulada com os vários atores do sistema tendo como objetivo final a melhoria da causa pública, que é uma coisa de que muito me orgulho.

Nos últimos meses fizemos já muitas intervenções e uma das mais importantes, no contexto tecnológico é ter um bom sistema de disaster recovery, para que quando há situações de crise possam ser recuperados. Esse sistema não existia e essa foi a nossa primeira ação. O nosso trabalho nos últimos meses foi primeiro pensar nas fundações do sistema e no lançamento de um sistema de recuperação de desastres que está neste momento instalado e a funcionar, e está fora de Lisboa.

Colocámos um forte ênfase no upgrade da tecnologia de base para que tudo possa funcionar e voltámos a motivar as equipas, porque o sucesso está ligado às equipas e ao que as pessoas fazem.

Nesta altura podemos dizer que o que estamos a fazer é reorganizar, fazer um upgrade, juntar novos módulos, de forma que, do ponto de vista tecnológico se reaproveite tudo o que foi feito, se melhore o que é preciso melhorar, altere o que é preciso alterar, mas nunca perdendo de vista que há um trabalho que há 20 anos que está a ser feito nesta área, e isso tem de ser respeitado.

TeK: A máquina da Justiça é muito pesada, em termos de informação também, e muitas vezes o que se criticava não eram apenas os erros e falhas técnicas, mas também a falta de envolvimento das pessoas, que sentiam a tecnologia como um entrave e não uma ferramenta útil. Esse envolvimento das pessoas, dando-lhes condições que elas sintam que vêm melhorar o dia a dia, e motivando-as, está a ser conseguido?

Anabela Pedroso: Curiosamente, quando aqui cheguei já não encontrei esse tipo de resistência. Encontro os juízes muito motivados, com uma capacidade de crítica e de foco para apontar o que está errado. E o que temos feito é perceber as suas necessidades e rapidamente colmatar a falha, se encontramos que ela existe. Mas às vezes é simplesmente desconhecimento de utilização das ferramentas. Muito do que corre menos bem na tecnologia tem a ver com a falta de formação. Quando não há formação sobre as ferramentas as pessoas utilizam do seu jeito, e a partir daí vão ter dificuldades.

Mas é verdade que havia questões a resolver e por isso fizemos este upgrade tecnológico, porque havia necessidades de atualização em algumas questões, que vão desde a largura de banda às próprias formas de introdução de dados. Vamos fazer pequenas coisas como aumentar a capacidade de upload de documentos, são mudanças que vão permitir que toda a tramitação seja facilitada e que o senhor juiz quando está numa audiência, ou a receber uma declaração e consultar um processo não esteja à espera.

Do lado dos Registos, que como sabe é uma área importante, tivemos anos de ouro na desmaterialização dos registos e está na altura de olhar de novo para tudo isto, no contexto do que chamamos a justiça económica para ajudar as empresas a serem mais competitivas e a trazer mais investimento para Portugal. Estamos a trabalhar de forma transversal com outros ministérios, e até no contexto do Simplex, e a olhar para o ciclo de vida das empresas. Trabalhou-se muito e bem na componente da criação de empresas e agora temos de trabalhar muito nas cisões, fusões, liquidações, para criar condições para que as startups tenham qualidade e acompanhamento não só naquilo que é a sua criação mas também no seu ciclo de vida, e essa claramente é uma das áreas onde estamos a começar a trabalhar. E tudo isso tem a ver com a utilização da informação.

TeK: De que forma é que essa questão vai ser abordada?

Anabela Pedroso: Se me perguntar o que estamos a fazer de diferente do passado digo-lhe que estamos a fazer a mudança da Justiça na continuidade. Para mim não é tão importante a ferramenta tecnológica, desde que ela esteja segura, mas como posso usar a informação que lá está guardada. E aquilo em que estamos a trabalhar é na constituição de camadas, para que possamos de forma simples, agregada, de acordo com os públicos alvo, dar a informação que cada um precisa, no momento em que precisa. E este é que é o ponto chave.

TeK: Visto de fora parece que há uma série de intervenções nas áreas que são “core” da Justiça e dos Registos e depois o plano Justiça Mais Próxima tem uma série de medidas que são mais de aproximação e de transparência para o cidadão, afastando a ideia de que tudo é lento, difícil e confuso, e que é o front office. É esta mistura entre as duas áreas que constitui a estratégia do ministério?

Anabela Pedroso: O nosso plano de ação constitui-se muito por Quick Wins, por intervir em pequenas coisas que podemos fazer de forma relativamente rápida, que parecem pequenas mas que tem um grande impacto a esse nível do cidadão. O front office que estamos a testar é a possibilidade de, de uma forma multicanal, poder saber o que se está a passar com o meu processo, o que é que o mandatário vai necessitar. Mas também a possibilidade de eu saber, como cidadão, quais são os próximos passos. E estamos a trabalhar muito na divulgação de informação, na internet, do género de “Eu e a Justiça” e por isso temos projetos como a Justiça Partilha para a partilha de boas práticas, e a Justiça 360 que dá uma visão ampla do que tenho a fazer. E vamos fazer isso de uma forma inteligente, quase pergunta resposta.

E no final com isto o que pretendemos é a humanização. A justiça tem de cumprir o seu papel de punir quem tem de ser punido, mas precisa de ser uma justiça aberta, de fácil compreensão, para que o arguido entenda o que se passa. E é esta mudança de paradigma que estamos a querer fazer com a Justiça mais próxima.

TeK:  Referiu a questão do acesso à informação, mas é preciso introduzir aqui a questão da segurança. Diferente de outras áreas, a Justiça tem uma necessidade de confidencialidade da informação,  e não se pode ser tão transparente que tudo possa ser consultado, violando a privacidade dos cidadãos. De que forma estão a abordar esta preocupação?

Anabela Pedroso: Isso é fundamental. Há uma palavra que uso muito na minha vida que é bom senso, e todos estes projetos têm de ter bom senso. Há uma questão que é o respeito da privacidade, do segredo de justiça, mas também o respeito pela liberdade em termos da informação que possa ser disponibilizada.

Os níveis de separação entre segredo, confidencialidade, privacidade e garantia de segurança, e abrir o que pode ser aberto, é essencial para tudo o que estamos a fazer.

Todos os nossos projetos têm sempre em conta de que há uma componente de segurança . E enquanto um processo, seja ele qual for, está em segredo de justiça é ai que deve estar. Temos neste momento níveis de segurança elevados, que estão até a ser aprofundados, nas aplicações críticas que estão associadas à justiça, mas depois temos outra área, para que os cidadãos, enquanto pessoas envolvidas nos processos, possam saber o que está a acontecer. E para isso vamos usar modelos de autenticação que permite ter acesso à informação, e vamos usar modelos com o cartão de cidadão, ou o acesso dos advogados, como já acontece.

Há também informação pública, que tem a ver com acórdãos, com jurisprudência, com momentos finais do processo já arquivado, que já é informação pública e que vamos disponibilizar de forma diferente para que possa ser reutilizada por quem quer usar para, por exemplo, fazer novo tipo de aplicações. E por isso vamos abrir à sociedade, e muita informação ficará em modelo de open data. Os dados da justiça vão reforçar  projetos que existem como o Dados.gov, e vamos convidar as empresas e as startups a desenvolverem soluções que possam ser interessantes para a sociedade.

TeK: Há duas questões que envolvem as empresas e que gostaria de abordar, uma da Justiça económica, completando a componente da justiça e dos registos, mas também a abertura às empresas nos pilotos tecnológicos. Mas falando na componente da justiça económica, o que está a ser feito nesta área e como está a ser revista esta questão da ligação à Economia?

Anabela Pedroso: Como sabe foi agora lançado o Plano Nacional de Reformas que junta tudo o que tem a ver com a Justiça Económica. Do lado da Justiça dividimos em duas áreas, a área judicial e dos registos, e na primeira estamos a trabalhar de forma intensa nas execuções e insolvências, onde propusemos, de forma muito conservadora, até 2020 reduzir as pendências em 20% no contexto das execuções. Da forma como estamos a trabalhar e da maneira como estamos a conseguir fazer a ligação com atores, desde os agentes de execução, a própria Ordem e os Tribunais, eu diria que somos capazes de ultrapassar este número, mas não queremos tirar os pés do chão.

Vamos trabalhar com as insolvências e dar ferramentas para que as instituições de inspeção possam trabalhar de maneira mais próxima dos agentes de execução. Estamos com cerca de 990 mil processos desta natureza e queremos tocar definitivamente este ponto.

A outra área é a da agilização dos processos, em julgado. Encontrámos algumas entropias, às vezes até no fluxo dos processos na secretaria e é aí que queremos fazer a agilização para que o senhor juiz tenha o seu processo informado, rápido, e possa fazer o seu trabalho de forma mais eficaz. E também criar interfaces mais simples e diretas aos mandatários, para que possam consultar e submeter informação de forma mais rápida. E este é o pacote, do ponto de vista judicial, em que estamos a trabalhar.

Como não podemos fazer tudo ao mesmo tempo tivemos de prioritizar e demos prioridade a esta área, onde a Europa apontou que é uma zona de menor sucesso, embora possamos contestar a avaliação porque Portugal é dos poucos países onde existem indicadores.

Este é um dos grandes focos da senhora Ministra que pediu às suas secretárias de Estado que trabalhassem nesta área para resolver a questão e melhorar o que pudesse ser melhorado.

Do lado dos Registos já tinha referido que vamos olhar novamente para todo o acervo do que é a área registral, desde o civil à área predial, perceber onde podemos criar facilitação e maior integração para simplificar, estar mais próximo, identificar certidões permanentes, onde vamos trabalhar muito também criando a certidão permanente do registo criminal, que deve avançar dentro de um mês ou mês e meio.

Tudo o que conseguirmos desmaterializar é onde vamos trabalhar, com quick wins, mas juntando tudo isto estamos a falar do que é mais importante, que é modernizar a Justiça.

TeK: Então agora a questão do envolvimento das empresas tecnológicas nos pilotos. Esta é uma experiência que já foi usada antes, envolvendo empresas em projetos pro bono no desenvolvimento das soluções, e o que queria perceber é como é que este processo é visto, porque também foi no passado alvo de críticas por envolver empresas multinacionais, não portuguesas, que estão a investir recursos sem garantia de ficar com os projetos.

Anabela Pedroso: Esta é uma questão que temos de ver com algum pragmatismo. Quando fazermos este tipo de testes temos de fazer com empresas que têm capacidade económica para poderem durante um determinado período, 6 meses a 8 meses, poderem disponibilizar tudo, desde hardware e software a pessoas. Mas isso não significa que estejamos a privilegiar estas empresas. Elas têm de facto a possibilidade de participar num primeiro momento neste projetos, mas isto é completamente aberto: toda a informação que estamos a preparar no âmbito destes pilotos está a ser disponibilizada no nosso site, num ambiente quase de blog que dá a conhecer o que estamos a fazer, porque a ideia é que, se o projeto correr bem, no final vai resultar um conjunto de termos de referência que depois colocamos no mercado, aberto a toda a gente, em tudo o que tiver de ser concursado.

Mas há um ponto importante: no momento em que estamos a dar a possibilidade de todas as empresas conhecerem o que estamos a fazer vai permitir que empresas mais pequenas possam olhar para os seus nichos de negócio e perceber onde podem aportar valor, e propor isso mesmo. Porque, como o projeto é aberto, todos os que disserem que têm uma tecnologia que possa trazer valor podem entrar e testar essa tecnologia, e por isso temos um espaço de inovação onde isso pode ser feito.

Mas também não temos preconceitos em usar grandes empresas, multinacionais que têm condições de dar o que precisamos. E não tenho preconceitos de ter empresas nacionais, e até fico muito feliz que empresas nacionais venham bater à nossa porta e propor que usemos a sua tecnologia na Justiça.

Estamos também a trabalhar com o terceiro sector, em áreas que são para nós muito relevantes, como o lançamento da Academia Recode, que vai ser feita com as duas maiores empresas que têm Academias, a Cisco e a Microsoft, mas também com uma organização sem fins lucrativos, a CDI. E este é apenas um dos exemplos, porque vamos contar com outras organizações do terceiro sector. Acreditamos que é a sociedade civil que tem de tomar contas destes projetos. E isto também está ligado à inovação e ao envolvimento das empresas, nestes projetos de pilotagem e de novas formas de fazer.

Fátima Caçador

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