‘São 8 horas da manhã e está na hora de ir para o trabalho. O assistente pessoal do smartphone envia uma notificação a dizer que há vias congestionadas. Qual o melhor caminho a seguir? Será que ainda há estacionamento disponível? Se também tivesse tempo para terminar o relatório… Talvez chamar um táxi ou um Uber seja o mais indicado. Aproveito o tempo da viagem para acabar o documento e quem sabe se sobra tempo para aquela chamada que está há dias para ser feita’

Esta é uma situação que para muitos portugueses já é uma realidade. As grandes cidades como Lisboa e Porto têm disponíveis serviços em aplicações móveis que permitem chamar um carro com motorista, bastando dizer onde está e para onde quer ir. O caso da Uber é o mais conhecido pois é a empresa que está a romper, à escala global, com os dogmas da mobilidade.

O testemunho é dado na primeira pessoa pelo diretor-geral da Uber Portugal, Rui Bento. “Pela receção muito positiva e crescente procura dos nossos utilizadores, sentimos que temos vindo a contribuir para proporcionar uma mobilidade mais simples, segura e conveniente nestas cidades”.

A Uber é no entanto apenas uma peça deste grande dominó que é o segmento dos transportes, ainda que já esteja a mudar as regras do jogo por completo. O diretor executivo da startup Veniam, João Barros, explica.

“A concorrência fará com que os táxis melhorem os seus serviços. Haverá uma grande pressão dos utentes para que os transportes públicos acompanhem essa revolução tecnológica, que consiste em grande medida em dar informação em tempo real a todos os que interagem com os serviços de transporte. No ramo da distribuição e da entrega de bens e mercadorias, assistiremos a fenómenos muito parecidos, em que as frotas e os dados são partilhados por várias entidades de forma a reduzir custos e a oferecer melhores serviços”.

Haver uma oferta integrada entre mobilidade privada e pública será também um dos grandes desafios a ser ultrapassado, pois isso ajudará a tornar uma cidade verdadeiramente inteligente.

“As grandes cidades debatem-se com o desafio de proporcionar uma mobilidade conveniente a números crescentes de pessoas, enquanto procuram reduzir os congestionamentos de tráfego nas estradas. Uma cidade inteligente deve combinar diferentes tipos de modos de transporte numa cadeia fluída e integrada. Isto envolve as infraestruturas de transporte existentes, como o comboio ou o autocarro, aliadas a novos conceitos de mobilidade como aplicações de ride-hailing, carsharing ou bikesharing”. Esta é a visão da Uber.

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Como resultado de tudo isto o CEiiA, centro de engenharia e inovação na área da mobilidade, acredita que em breve existirão as ‘redes sociais de mobilidade’, plataformas que integram “utilizadores, serviços, infraestrutura, dispositivos e todo o tipo de sensores de forma dinâmica – cada um de nós é uma sonda de informação e serviços”.

“A mobilidade será cada vez mais encarada como um serviço, ou seja, as pessoas querem apenas ir de um ponto para outro, e não se preocupam tanto com a posse de um veículo mas apenas com a possibilidade de se deslocar, o que obrigará a desenvolver novos serviços mas, acima de tudo, a integrar de forma inteligente as várias ofertas já existentes”, salienta o responsável pela divisão de sistemas inteligentes da entidade, Luís Reis.

O Porto já é um bom exemplo deste cenário conectado. Graças ao esforço conjunto de várias entidades, a cidade nortenha é neste momento um exemplo a ser seguido por outras cidades - não só portuguesas como de todo o mundo.

“O Porto é hoje considerado a nível mundial como um caso de estudo no impacto que os veículos em rede podem ter não apenas como meio de transporte, mas como elementos ativos de uma plataforma do tipo smart city. Para além de permitirem aos clientes e operadores de transportes saberem sempre onde e em que estado estão os muitos veículos em movimento, este tipo de plataformas utilizam os veículos como sensores para recolherem grandes quantidades de dados urbanos e melhorar a qualidade de vida, desde o controlo de tráfego, à monitorização ambiental e à recolha inteligente de lixos, entre muitas outras aplicações”, detalha João Barros, da Veniam.

Melhores transportes, melhores cidades. Pode então o desenvolvimento da mobilidade fazer-nos mais felizes?

“Por exemplo, com o aumento dos transportes partilhados são necessários menos veículos e menos locais de estacionamento, libertando espaço para mais espaços verdes e permitindo a criação de vias dedicadas para bicicletas e pequenos veículos elétricos parecidos com skates. Ao constatarem que podem caminhar e circular mais à vontade nestes novos espaços, os cidadãos muito provavelmente terão uma tendência ainda menor a utilizar o automóvel próprio, que fica mais caro, não contribui para a saúde e é muito mais poluente”, defende o CEO da startup.

Ser verde vai estar na moda

‘Não dá para entender. O barril do petróleo está cada vez mais barato e não há maneira do preço da gasolina baixar em correspondência. Se isto continua assim qualquer dia estou só a trabalhar para o carro. E como se não bastasse, o meu ‘bolinhas’ já não tem idade para andar em determinadas zonas da baixa lisboeta por causa dos níveis de poluição. Se ao menos fosse tão fácil ter um carro como é ter um aspirador ou um smartphone…’

Se ainda não é, vai andar muito perto disso. O CEiiA considera que uma parte deste ‘plano mestre’ da mobilidade passará obrigatoriamente pelos veículos movidos a energia elétrica. Atualmente o cenário ainda não é animador - os últimos dados oficiais são de dezembro de 2015 e apontavam para a existência de apenas 1.180 carros elétricos nas estradas portuguesas.

O panorama tem no entanto tendência a mudar com o avançar dos anos, mas dependerá da resposta que a evolução tecnológica der.

“Para um crescimento continuado dos veículos elétricos, é importante que duas tendências se materializem: por um lado, o desenvolvimento tecnológico deverá continuar a tornar as limitações destes veículos, como a autonomia das baterias e o seu tempo de carregamento, cada vez mais residuais; por outro lado, cada vez mais consumidores deverão perceber que os veículos elétricos de hoje já respondem adequadamente à maioria das necessidades de mobilidade nas cidades”, analisa Rui Bento, da Uber Portugal.

A subsidiária da gigante norte-americana assume mesmo o compromisso de “continuar a abraçar o desafio de estimular a adoção de tecnologias que tornem a mobilidade nas cidades melhor para os utilizadores, mais rentável para os parceiros e mais sustentável para as cidades”.

Apesar de serem vendidos poucos carros elétricos, o nosso país está ‘psicologicamente’ preparado para esta realidade, como explica o CEiiA. “Portugal desenvolveu um conjunto de condições de base interessantes, como um quadro legal, regulamentar e de fiscalidade específico e uma infraestrutura abrangente, interoperável, presente nas principais cidades. No entanto, é importante continuar a trabalhar nas melhores condições para que o país possa tirar partido do crescimento deste mercado. Não tendo uma indústria automóvel ao nível de outros países europeus, desenvolveu um pequeno cluster de mobilidade elétrica com soluções de excelência para o mercado global”.

E os veículos elétricos começam a entusiasmar até nos segmentos de média e alta gama, casos do Tesla Model X ou do BMW i8 Spider. Mas se está interessado em carros ecológicos talvez deva ficar atento ao Chevrolet Bolt. Foi apresentado este mês na maior feira de tecnologia do mundo, a Consumer Electronic Show, e já é visto como o primeiro veículo elétrico verdadeiramente direcionado para as ‘massas’.

Boss up Portugal!

‘Epá, aquilo nos EUA é que é fixe! Eles já têm carros na rua que conduzem sozinhos. Há dias um até foi mandado parar pela polícia por andar devagar, foi mesmo engraçado. E claro, os britânicos que também são espertos já estão a apostar na mesma área. Cá em Portugal é que não há nada disso!’

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É um facto que em algumas áreas tecnológicas Portugal está habituado a assistir de fora, limitando-se a esperar pelas novidades e a adaptar-se às exigências das mesmas.

No caso da mobilidade e dos transportes o nosso país pode estar numa posição única: o CEiiA e a Veniam são disso exemplo; enquanto o primeiro está a desenvolver projetos a nível europeu, a segunda está cotada como uma das startups mais promissoras de todo o mundo.

E há mais neste ‘Portugal da mobilidade’. “Sendo Portugal um território de relativamente pequena dimensão, é possível perspetivar o país como um mercado modelo para novas soluções que possam ser testadas e implementadas localmente e exportadas para os mercados globais”, considera Luís Reis, do centro de investigação CEiiA.

Fica um exemplo em concreto: “Uma área em que Portugal se pode destacar é na criação de locais para teste de novos serviços de transporte on-demand com base em veículos autónomos. Começamos a ter indícios muito fortes que esse tipo de serviços e tecnologias irão dominar a mobilidade urbana no futuro. A Europa está muito atrasada em relação aos Estados Unidos e à Asia. Portugal pode fazer a diferença com uma aposta clara nesse sector”, defendo o CEO da Veniam sobre este tema.

E se o segredo é a alma do negócio, os portugueses podem ser os grandes catalisadores desta aposta no país. “Uma característica importante que temos observado nos utilizadores portugueses é a sua abertura para abraçar novas tecnologias - isto reflete-se em taxas de crescimento elevadas de utilizadores ativos, e de número médio de viagens por cada utilizador na plataforma da Uber em Lisboa e no Porto”, exemplifica Rui Bento.

“Dada esta afinidade tecnológica, vemos em Portugal um mercado extremamente interessante para testar e lançar produtos que poderão eventualmente ser exportados para contextos internacionais”.

Mas há ainda trabalho para ser feito. Se no caso dos serviços de transporte como a Uber é necessária legislação que permita enquadrar estes negócios disruptivos, a existência de uma estratégia bem delineada será obrigatório para ter um sector de mobilidade de gabarito.

João Barros detalha bem este ponto específico. “Em primeiro lugar, é preciso definir os modelos de governo e de negócio dos transportes públicos. Estes devem ser estáveis, de forma a que seja possível fazer apostas estratégicas de médio-longo prazo. Em segundo lugar, vale a pena identificar fontes de financiamento alternativas, nomeadamente programas europeus e receitas de publicidade digital e dados, e canalizar estas receitas adicionais para investimentos em novas tecnologias e serviços, nomeadamente de veículos on-demand e partilhados. O governo central fará bem em confiar mais nas autarquias para a gestão da mobilidade urbana de forma integrada, até porque as questões dos transportes afetam diretamente o planeamento e ordenamento do território”.

Tudo a andar sobre rodas

Claro que muitos destes conceitos vão demorar a chegar ao mercado e vão demorar ainda mais a estarem acessíveis à maioria da população. Mas este é claramente um olhar para o futuro, com base em premissas fortes e não em ‘achamentos’.

Talvez o futuro seja isto mesmo: você a preparar o dia de trabalho num carro elétrico de condução autónoma que passa por estradas muito menos apinhadas de veículos, mas com passeios mais cheios de pessoas. E conseguiu este carro apenas recorrendo ao telemóvel, a mesma ‘chave’ de entrada para autocarros, comboios, barcos e quem sabe aviões. A vida nas cidades, sobretudo nas grandes cidades, pode melhorar, mas a questão da mobilidade será importante para todas as localidades, grandes e pequenas.

Em povoações de menor dimensão os transportes públicos talvez serão os maiores motores de mobilidade, comunicando todos entre si para que não tenha de esperar 40 minutos ao frio sem saber se o autocarro ainda vem ou se acabou de passar.

A tecnologia serve para resolver desafios e o da mobilidade é muito interessante. Se forem tomadas as melhores opções, muitas das ‘boas respostas’ podem sair de Portugal para o mundo.

Rui da Rocha Ferreira