Em 2015, o Meerkat e o Periscope estrearam-se nos mercados de aplicações. Com foco na transmissão de vídeos em direto e na construção rápida de audiências, as apps não tardaram a disseminar-se entre os internautas. A segunda, bem mais do que a primeira, abriu caminho à popularização dos diretos feitos por utilizadores e embora o YouTube já o permitisse desde há uns anos atrás, o impulso de popularidade que o Periscope recebeu depois de ter sido adqurido pelo Twitter abriu (ainda mais) as portas à imediaticidade da comunicação feita online.
A funcionalidade foi posteriormente adotada por outras plataformas, e abriu uma "caixa de Pandora" cujas consequências ainda estão longe de serem conhecidas.
Tudo o que se passa através do Facebook Live
No Facebook, começou em 2015. Inicialmente batizados como Facebook Mentions, os livestreams foram primeiro disponibilizados para utilizadores certificados e seis meses depois começaram a chegar às contas de todos os utilizadores "comuns", já com o nome "final" de Facebook Live.
A proposta da rede social bateu facilmente a das concorrentes. Embora "inspirada" na alegada originalidade das outras aplicações, a extensa base de utilizadores da rede social, que por esta altura já aponta aos dois mil milhões como meta a bater, facilitou a ultrapassagem.
O sucesso deste novo fenómeno já tinha sido garantido nas suas primeiras formas. Durante a curta história desta tecnologia, registam-se fenómenos bizarros como grupos constituídos por milhares de pessoas a assistir a paredes a secar, pedestres a atravessar poças de água e até à circulação de viaturas numa rotunda holandesa durante horas a fio. A esta receita, que parece resultar natural e, por vezes, independentemente dos conteúdos transmitidos, o Facebook juntou-lhe anúncios, desenvolvimento técnico, parcerias comerciais e articulou-a com outros recursos e técnicas para garantir o seu sucesso.
Um ano e meio após a introdução do livestreaming na plataforma, os diretos continuam a ser boas ferramentas de comunicação entre as empresas, celebridades, eventos, marcas e o seu público. Mas, paradoxalmente, num universo de vídeos quantitativamente dominado pelas contas profissionalizadas, são os vídeos dos utilizadores que reservam um espacinho na história dos Lives. Porém, raramente pelos melhores motivos.
Homicídios, violações, suicídios e torturas em direto
No passado mês de julho ocorreu um dos exemplos mais mediáticos. Diretamente do estado norte-americano do Minnesota, uma mulher iniciou uma transmissão de vídeo após o seu marido, Philando Castile, condutor do carro onde seguia, ter sido abordado pela polícia local. A utilizadora, conhecida no Facebook como Diamond Reynolds, assistiu a uma discussão entre o oficial e o seu companheiro. Tentou acalmar as hostes, mas quando o seu marido confessou que transportava, legalmente, uma arma, Reynolds acabou por transmitir inadvertidamente, em direto, o seu homicídio quando este foi alvejado sete vezes pelo agente.
Apesar de "cruas" e indiscriminadas, a natureza gráfica das imagens e a gravidade dos conteúdos transmitidos subiram de tom. Atualmente, uma breve pesquisa no Google pode mostrar que, em direto, no Facebook, já foram exibidas violações, suicídios, assassínios e torturas. Nenhum destes fenómenos aconteceu apenas uma vez. E embora os sucessivos tiroteios entre a polícia e as comunidades afro-americanas não possam ser assuntos inferiorizados relativamente aos demais acontecimentos grotescos que têm vindo a ser transmitidos na rede social de Mark Zuckerberg, a intenção com que cada transmissão foi feita distingue-os substancialmente.
Quando Reynolds iniciou a transmissão, no passado dia 6 de julho, a utilizadora fazia-o sem saber como terminaria. Apesar de lhe poder ser imputada uma certa precaução, dados os recorrentes incidentes entre a polícia e as comunidades afro-americanas, Reynolds fazia-o sem qualquer crueldade. Sem querer chocar, mas querendo proteger-se de uma eventualidade que acabou por se registar. Em contrapartida, esta segunda-feira, quando um utilizador sueco decidiu transmitir em direto a violação em grupo de uma mulher, durante três horas seguidas, as intenções, por sua vez, não se podem julgar tão nobres quanto as de Reynolds.
Neste caso, cujas justificações serão difíceis de escrutinar (se as houver), levantam-se questões que deverão ser centro de um debate sério. Deverá o Facebook dar total liberdade aos seus utilizadores para publicar e transmitir qualquer tipo de conteúdos, incorrendo no perigo de se tornar numa montra do grotesco que todos podem ver, independentemente da sua idade ou sensibilidade, sem avisos prévios?
A resposta não será fácil de formular. Para Tito de Morais, fundador do portal online miudossegurosna.net, "a liberdade, seja na Internet ou fora dela, implica responsabilidade". "Sou mais apologista da responsabilização do que do controlo que geralmente implica restrições à liberdade. No entanto, numa perspectiva preventiva, acho que se temos conhecimento prévio de que se vai cometer um crime, temos obrigação de o evitar e tal pode justificar algumas medidas de controlo", disse em conversa com o TeK.
Se por um lado podemos alegar que imagens desta natureza não devem ser gratuitamente disseminadas pelo risco de choque do público e por poderem cruzar-se com a vista de menores, por outro, podemos igualmente alegar que estes vídeos contribuíram de forma essencial para a imputação de culpas e para a detenção dos responsáveis pelos delitos registados. Se por um lado é possível alegar que a rapidez e a imediatidade da comunicação pode ajudar a agilizar respostas por parte de quem de direito, por outro, podemos alegar que, se estas não chegarem à vista de quem pode realmente responder, a facilitação dada a estas publicações podem levar à mediatização, à eternização e à normalização destes fenómenos, mesmo entre um feed composto por fotografias de amigos e familiares, numa rede que foi construída para aproximar pessoas. Tito de Morais atesta a necessidade de se filtrar publicações desta índole. Em entrevista, o responsável disse achar "que se deve evitar banalizar publicações dessa natureza, sobretudo os casos de suicídios em direto ou em diferido, dado serem conhecidos potenciais efeitos de replicação desse tipo de ações [...] a televisão, o cinema e os vídeojogos adotaram sistemas de classificação etária e de conteúdos como forma de minimizar os potenciais efeitos negativos desse tipo de acontecimentos. Dada a inexistência e até ineficácia desse tipo de classificação na Internet, sobretudo em transmissões em directo, torna-se mais difícil controlar esse tipo de publicações".
Na verdade, desde há muito tempo que a internet também serve de depósito a um conjunto de conteúdos de carácter duvidoso. No entanto, a questão acerca deste fenómeno vem à tona quando estas publicações passam a acontecer no maior ponto de encontro da era digital.
É sabido que o Facebook disponibiliza um conjunto de ferramentas que ajudam na prevenção de comportamentos de risco, como o suicídio. Tito de Morais sublinha-o. "Se os utilizadores pesquisarem por "suicídio" no Centro de Ajuda do Facebook [...] encontrarão resposta a inúmeras questões relacionadas com o tema, nomeadamente se forem confrontados com publicações de utilizadores com ideias suicidas". No entanto, nenhuma dessas se revela eficiente nestes contextos.
Sobre o debate, será provavelmente consensual que tem de haver uma atitude nova e adaptada por parte do Facebook para filtrar este tipo de diretos. Mesmo dentro do seu atual leque de possibilidades, numa plataforma social onde todos os dias são publicados conteúdos sensíveis pela sua comunidade de quase dois mil milhões de utilizadores, as decisões tomadas contra os vídeos efetivamente ofensivos podem demorar várias horas a materializar-se numa ação consequente. Por isso, a questão mantém-se: até que ponto devem ser toleradas inovações que potenciam comportamentos preocupantes como este?
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