Entre hoje e amanhã decorrem no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, as primeiras Jornadas sobre a Regulação dos Mercados de Telecomunicações. Promovidas por dois centros de investigação da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - Centro de Estudos de Direito Público e Regulação (CEDIPRE) e o Instituto Jurídico da Comunicação (IJC) - as Jornadas reúnem especialistas de várias áreas com o propósito de discutir os novos modelos de regulação nas Telecomunicações, Televisão Digital e Internet.



O TeK aproveitou a oportunidade para fazer algumas perguntas a Vital Moreira, presidente do CEDIPRE e um dos dinamizadores desta iniciativa, a propósito da Regulação na área das Telecomunicações.


TeK: Defende uma separação clara entre as responsabilidades do Governo e dos
órgãos reguladores, nomeadamente nas Telecomunicações. Porquê?

Vital Moreira:
Defendo a desgovernamentalização da regulação em geral, e não somente nas telecomunicações. As autoridades reguladoras devem ser independentes nas suas missões, obviamente no quadro das leis e das opções de política definidas pelo Governo. Não se trata de afastar o Governo, trata-se sim de separar as funções políticas e legislativas, por um lado, que lhe devem competir, e as funções de regulação propriamente ditas, de índole menos política e mais neutra, que devem caber a reguladores independentes, mais técnicos. O que está em causa são fundamentalmente funções de nível administrativo (funções regulamentares, de supervisão e fiscalização, aplicação de sanções).

A razão fundamental para a desgovernamentalização da regulação da regulação está em que ela deve ser tanto quanto possível independente da conjuntura política e da mutação de maiorias políticas e de governos. Só desse modo é que se garante aos operadores económicos uma estabilidade e previsibilidade do ambiente regulatório que é essencial para projectar investimentos e implementá-los. Segundo, dada a neutralidade política dos reguladores, eles estão em melhores condições para assegurar a igualdade de tratamento dos operadores e a imparcialidade regulatória, ambas essenciais ao funcionamento de uma economia de mercado. Terceiro, a independência política dos reguladores permite-lhes resistir melhor do que os políticos às pressões dos operadores, visto que os segundos são sempre vulneráveis às razões e às conjunturas eleitorais.

De resto, a independência dos reguladores é um traço essencial da regulação moderna, tanto na tradição norte-americana, que tem mais de um século, como na sua versão europeia, desde a importação do modelo americano há uns vinte anos atrás.



TeK: Pensa que na actual conjuntura de telecomunicações algumas situações
seriam evitadas através desta separação e de um reforço da autoridade do
regulador? Refiro-me nomeadamente ao adiamento do UMTS e à questão da
interligação da OniWay.

V.M.:
Em Portugal não falta independência ao regulador das comunicações. Pelo contrário, os estatutos da Anacom não perdem de modo algum na comparação com os das demais entidades reguladoras. Em certos aspectos a Anacom é mesmo a que tem maiores garantias legais de independência (por exemplo, impossibilidade de recondução dos reguladores). O mesmo se passa com os seus poderes de autoridade, embora ela compartilhe com as demais autoridades reguladoras entre nós uma certa ineficácia dos instrumentos sancionatórios.

Nem o adiamento da UMTS nem o caso Oniway têm a ver com algum défice de independência ou de autoridade da entidade reguladora.



TeK: Quer comentar o braço de ferro que se tem mantido entre os operadores
móveis e a Anacom em relação à interligação da OniWay? Quais os poderes da
Anacom para impor as suas deliberações e até onde os operadores podem ir
para impedir a Anacom de efectivamente obrigar a essa interligação?

V.M:
O "braço de ferro" tem a ver com controvérsias jurídicas sobre dois pontos: primeiro, saber se a Oniway, que tem uma licença para operar em UMTS, podia ser autorizada pela Anacom a operar em GSM, como foi; segundo, saber se a decisão de interligação da Anacom a favor da Oniway foi uma decisão administrativa (nesse caso definitiva e executória, salvo suspensão por um tribunal administrativo) ou uma decisão arbitral (nesse caso recorrível para os tribunais comuns, com efeitos automaticamente suspensivos). Postas as coisas nestes termos litigiosos (a que não é alheia alguma imprecisão da segunda das referidas decisões da Anacom), o desfecho depende agora essencialmente dos tribunais. É evidente que, como autoridade administrativa que é, as decisões da Anacom estão submetidas ao escrutínio dos tribunais, quanto à sua conformidade com a lei. Trata-se portanto de "percalços" naturais num Estado de Direito.




TeK: Qual lhe parece ser para os próximos anos, o sentido da evolução da
regulação em Portugal na área das telecom. Estamos a ir na mesma direcção
dos outros países da UE?

V.M.:
Sendo comuns a todos os países as tendências de evolução do sector, é natural que as tendências da regulação sejam também as mesmas, ressalvadas algumas idiossincrasias mais particulares em cada país. Com a abertura completa do mercado, a consumação do mercado interno a nível da UE, a globalização, os novos desafios serão essencialmente os mesmos por todo o lado. Uma das mudanças porventura inevitáveis será induzida pela convergência das telecomunicações com o audiovisual, implicando uma idêntica convergência de regulador e de mecanismos regulatórios, o que por enquanto só ocorreu na Itália.


TeK: Num mercado totalmente liberalizado faz sentido manter um regulador?
Porquê?

V.M:
É de duvidar se o sector das telecomunicações é susceptível de uma "liberalização total", pelo menos num prazo previsível. Não está no horizonte uma total concorrência nas redes, pelo que continuará a ter sentido regular o "direito de passagem" dos operadores às redes existentes, em condições equitativas e transparentes. As limitações do espectro radioeléctrico continuarão a ser um factor de constrangimento. E depois, mesmo que a liberalização fosse total, sempre restam as "obrigações de serviço universal", aliás garantidas pelo direito comunitário, que requerem a existência de uma entidade reguladora, que supervisione e assegure a sua prestação e que regule o seu financiamento ao operador ou operadores encarregados dessas mesmas obrigações. Por isso, não creio estar no horizonte a dispensa de uma autoridade reguladora sectorial.


TeK: As jornadas da regulação que está a dinamizar trazem algum valor
acrescentado em termos de discussão do tema? A questão não tem já sido
suficientemente discutida?

V.M:
Basta olhar para o programa das Jornadas para ver duas importantes mais-valias: por um lado, a agenda inclui as quatro principais áreas em que actualmente se desdobra o sector (telefonia fixa, telefonia móvel, televisão digital e Internet); por outro lado, há questões que vão ser abordadas pela primeira vez de forma integrada (caso da televisão digital e da Internet). Por outro lado, num sector que exibe um enorme dinamismo e inovação, estas jornadas serão uma ocasião privilegiada para fazer o ponto da situação e detectar os sinais de novos desenvolvimentos. Em terceiro lugar o "mix" proposto quanto aos participantes - reunindo operadores, reguladores e especialistas independentes - permite colher uma imagem multifacetada da problemática das telecomunicações, incluindo a reflexão académica que vem sendo desenvolvida nesta área, nomeadamente pelos dois institutos da Faculdade de Direito de Coimbra que organizam este evento. Finalmente, com a contribuição de eminentes palestrantes estrangeiros (por exemplo o presidente da entidade reguladora italiana) estas jornadas proporcionarão igualmente uma oportunidade excelente para traçar comparações e tomar conhecimento de experiências alheias.

Se algo se pode dizer do sector das telecomunicações é que ele nunca está "suficientemente discutido", pela simples razão que está em permanente mutação.



Fátima Caçador