Em vários países do mundo, e em especial na Europa, preparam-se aplicações que permitem monitorizar os movimentos dos cidadãos infetados com COVID-19 e alertar as autoridades e/ou outras pessoas, de situações de proximidade que possam levar a contágio. As soluções são várias, utilizando diferentes tecnologias, e a Apple e a Google já desenvolveram APIs para permitir integração mais fácil com os sistemas operativos iOS e Android. Mas a polémica tem sido grande com muitos utilizadores e organizações de defesa dos direitos humanos a alertarem para a possível violação da privacidade.
Estas e outras questões foram levantadas em mais um webinar da APDC, dedicado ao Digital Contact Tracing COVID-19, onde participaram José Manuel Mendonça, professor Catedrático da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto e presidente do Conselho de Administração do INESC TEC, que coordenou todo o projeto de criação da aplicação móvel, Paulo Portas, jurista, político, comentador, e Henrique Barros, presidente do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, professor Catedrático da Faculdade de Medicina do Porto e presidente da IEA - International Epidemiological Asociation. Mesmo não concordando em todos os pontos, os três especialistas defenderam soluções de monitorização dos cidadãos, mas sempre com a garantia de cumprimento da ética e salvaguarda da privacidade.
A ideia de que só com a adoção de uma ferramenta de rastreabilidade será possível conter a disseminação da pandemia, sobretudo agora que terminou o Estado de emergência e se começa a fase de “desconfinamento”, esteve subjacente à apresentação de José Manuel Mendonça, que apresentou em detalhe o funcionamento da app STAYAWAY COVID-19.
“Com o fim do desconfinamento, os contactos pessoais aumentarão drasticamente e o rastreio exigirá muito mais do que uma abordagem tradicional”, afirma o professor, que lembra que os sistemas manuais vão ser incapazes e que a informação é cada vez mais incompleta.
A utilização da app é sempre de participação voluntária e recorre à tecnologia Bluetooth para partilhar códigos anónimos e impessoais para que, se um utilizador for diagnosticado com COVID-19, os códigos que difundiu nos últimos 14 dias sejam partilhados publicamente numa plataforma segura. Isso só acontece porém com o consentimento do utilizador e a legitimação por parte de um médico, que confirma a infeção, como sublinha o coordenador do projeto.
As aplicações dos telemóveis, vão descarregar periodicamente os códigos das pessoas que foram infetadas, cruzando a informação. Se houver coincidência há potencial de contágio e o utilizador é alertado pela aplicação, indicando que deverá contactar os serviços de saúde
Este modo de funcionamento já tinha sido explicado em entrevista ao SAPO TEK, e José Manuel Mendonça garante que isto é estruturalmente simples mas que toda a privacidade dos dados é garantida. “Todos os códigos são anónimos, aleatórios e não anonimizados, não saem do telemóvel, só quando voluntariamente e com a certificação do médico os coloca na plataforma”, descreve o professor, adiantando ainda que todos os códigos são eliminados ao fim de 14 dias e que o sistema será alvo de uma avaliação de impacto da Comissão Nacional de Proteção de Dados, sendo o código disponibilizado de forma aberta e auditado pelo Centro Nacional de Cibersegurança.
Os testes da app STAYAWAY COVID-19 estão em curso pela equipa do INESCTEC, com duas startups do seu universo, a keyruptive e a UbiRider e no final do mês, ou seja, daqui a duas semanas, deverá ser publicada nas lojas da Apple e da Google, para ser descarregada e ativada pelos utilizadores portugueses, mas também numa lógica de interoperabilidade com outras soluções europeias que estão a ser desenvolvidas.
Na sua intervenção, Paulo Portas levantou várias questões relacionadas com os direitos, liberdades e garantias, e mostrou-se “tendencialmente a favor” destas soluções, conhecendo os riscos que pode correr. Fazendo um enquadramento do que se passou em modelos autoritários e em democráticos, fez a observação de que “a utilização de ferramentas digitais foram, com diferentes graus de eficiência e eficácia, determinantes nos países asiáticos que conseguiram melhores resultados, lembrando que foram usadas para para quebrar cadeias de contágio e conciliar um confinamento parcial, ou um desconfinamento parcial, com o mínimo de garantias de segurança para a população em termos de saúde pública. “É uma observação de facto, não tem nada de ideológico”, refere.
A forma como a Europa está a abordar esta questão é vista por Paulo Portas com preocupação, porque existe um atraso de mês e meio a dois meses, que afeta a saúde e a economia, mas sublinha que é importante que Portugal se concentre numa boa solução.
“Estamos no início de um desconfinamento parcial e já estamos atrasados, porque há risco de um aumento da contaminação. A única forma de fazer este desconfinamento parcial com segurança é rastrear os contágios”, defende, afirmando que a aplicação será determinante para evitar uma segunda vaga de epidemia. Ainda assim reconhece os riscos que podem advir da utilização dos dados recolhidos para outras finalidades.
Um estetoscópio e uma peça de um puzzle
O epidemiologista Henrique Barros, que lidera o Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, parceiro no desenvolvimento da aplicação STAYAWAY COVID-19, mostrou-se também favorável aos benefícios da utilização da aplicação de rastreabilidade, mas lembra que não substitui o lado humano, fazendo uma comparação com um estetoscópio que ajuda a auscultar e avançando com a visão de que é mais uma peça de um puzzle para ajudar na resposta.
“Há problemas na identificação manual dos contágios. Posso não me lembrar com todas as pessoas com quem estive nos últimos dias”, explica o presidente do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto.
Mas, “para que a eficácia se transforme em eficiência as pessoas têm de usar [a aplicação]”, alerta Henrique Barros, lembrado as contas de Singapura, onde só 20% da população utilizava a aplicação o que faz com que a probabilidade de se encontrarem se reduza a 4%. “A aplicação só é eficaz se 60% das pessoas a usarem”, admite o professor que mostra confiança na segurança dos dados e no facto da chave da libertação da informação estar num médico.
Apesar da incerteza sobre a adesão ao uso da app poder colocar em risco a sua eficiência na identificação das cadeias de contágio, Henrique Barros acredita que a obrigatoriedade “seria a chave para o insucesso” e advoga uma solução de “contágio positivo”, fazendo as pessoas perceberem as vantagens da sua utilização, para se protegerem a elas próprias e às pessoas de quem gostam.
Interoperabilidade com as soluções europeias
Mesmo com a polémica que existe na Europa sobre a adoção de aplicações de rastreabilidade, esta solução é defendida como a mais adequada para o combate estruturado à pandemia em todo o espaço europeu, com uma lógica de interoperabilidade assegurada entre as várias apps adotadas.
É esse o caminho que a equipa do INESC TEC está a seguir adotando as recomendações do White paper sobre interoperabilidade assinado por vários investigadores e implementando a DP^3T Decentralized Privacy-Preservind Proximity Tracing.
José Manuel Mendonça explica que “A maioria dos países europeus fez a sua escolha sobre plataformas completamente descentralizadas, como esta, que são as que asseguram a privacidade dos dados, porque não há dados centralizados, geridos e processados por ninguém, mas isto ainda não está completamente decidido”. A Alemanha, a Inglaterra e a França queriam um sistema um pouco mais centralizado para que as autoridades de saúde pudessem seguir as linhas de transmissão do novo coronavírus mas a pressão da opinião pública e dos especialistas levou a Alemanha a recuar.
“No Reino Unido há uma polémica instalada e a França é o único país que ainda empurra uma solução que é descentralizada nos telemóveis mas que tem um servidor centralizado”, afirma o professor.
A compatibilidade com as APIs desenvolvidas pela Apple e a Google, que ainda estão numa primeira fase, também contribui para esta interoperabilidade e para ganhos de eficiência na utilização da bateria. “A app pode funcionar mesmo que o Bluetooth esteja desligado”, afirma o coordenador do projeto que também garante que funcionará mesmo em modelos mais antigos.
“A Europa vai com 1 mês e meio a dois meses de atraso”, afirmou Paulo Portas dizendo que numa pandemia o tempo é saúde e é economia, e que este atraso deveria estar a ser corrigido a toda a velocidade. “Em todos os países europeus onde se está a preparar o lançamento de uma app para rastreio, há sempre uma controvérsia e temos de estar preparados para isso”
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