João Diogo Ramos, tal como qualquer adulto na casa dos 40 anos, teve a sua juventude ligada aos primeiros microcomputadores de jogos, neste caso o ZX Spectrum. Ao longo dos anos, o engenheiro informático, natural de Cantanhede, foi amealhando um espólio impressionante de computadores e artigos eletrónicos totalmente ligados ao ZX Spectrum, tendo-se tornado um dos mais respeitados colecionadores a nível internacional.
E nasce uma ideia pensada durante anos
Depois da criação de uma exposição dedicada ao computador inventado pelo britânico Sir Clive Sinclair, com o apoio da Câmara Municipal de Cantanhede, o sucesso convenceu a autarquia a ceder um espaço de exposição permanente, tendo como base o espólio de João Ramos, incluindo os que foram produzidos por empresas que mais contribuíram para o seu desenvolvimento, como é o caso da Timex, que teve uma fábrica nos anos 1980 onde se fabricaram os 2048, uma variante do microcomputador.
“A ideia esteve a marinar durante vários anos”, refere João Ramos em entrevista ao SAPO TEK, salientando a sua veia comunicadora e extrovertida usada para explicar aos amigos que visitavam a sua casa e admiravam a sua coleção de computadores. “Dei, por isso, por mim a pensar que não fazia sentido limitar isto apenas às pessoas que conhecia”. O colecionador tinha também uma motivação pessoal em fazer essa coleção para contar uma história que lhe pareceu meritória a todos os que a quisessem ouvir.
“Apesar de todo este projeto estar a crescer de uma forma não planeada, a verdade é que fui dando passos que mostram que a ideia ia estando sempre presente – mesmo que de forma subconsciente”, explica o colecionador, referindo que uma vez viu num site de vendas online um hotel no Alentejo a renovar os seus televisores e a vender os seus antigos CRT. “Como sempre achei que o aspeto estético é fundamental – apesar de ter pouca sensibilidade ou paciência para o tema – imediatamente chateei meio mundo até ir lá buscar os televisores, todos iguais, para hoje ter enquadrados na exposição. E eles estiveram guardados num sótão durante um par de anos, ou seja, não foi algo feito já com a necessidade presente”.
Questionado como foi a experiência de abrir um museu temático em plena pandemia de COVID-19, destaca o pesadelo da logística. “É ter de vender um sonho a pessoas que quero convencer a vir partilhar a sua história e depois ver os planos todos a derrapar ou terem de ser adiados pelo contexto pandémico”.
O colecionador explica que o projeto do museu Load ZX Spectrum tem trabalho acumulado de vários anos, mas as primeiras faces visíveis começaram em 2019, entristecendo-se por não conseguir inaugurar com um evento de arromba, mais do que uma vez planeado. “Infelizmente é a situação que temos e claro que temos de nos adaptar e implementar todas as medidas necessárias (planos de contingência e afins) para lidar com a situação. Aí a experiência da equipa da Câmara Municipal é essencial e facilita muito o processo”, explicou João Diogo Ramos.
O seu primeiro contacto com um “Speccy” deu-se aos oito anos: “Tive dois porque o primeiro avariou, queimou a ULA (que na altura não sabia o que era). Ambos de 48K em modelo inglês. Como qualquer criança foram os jogos que me atraíram inicialmente, mas foi rapidamente o gosto pela programação e pela descoberta de como funcionava aquela caixa mágica que me deram um rumo para a minha vida profissional”. O informático aprendeu a programar sozinho, no Spectrum, com a ajuda de livros e revistas. Anos depois, antes mesmo de entrar para a faculdade para seguir informática, chegou a ir com um amigo a uma final das Olimpíadas de Informática em Lisboa.
A ligação de Cantanhede e Portugal ao ZX Spectrum
O museu nasceu em Cantanhede por diferentes motivos, explica o colecionador. O primeiro por ser natural da terra, tendo voltado a viver onde nasceu, desejando dessa forma contribuir para a valorização do seu concelho. “Depois porque mesmo sendo talvez mais difícil reunir alguns apoios, dá-me muito mais gozo fazer um projeto destes fora de uma das grandes metrópoles nacionais, ainda o torna mais especial”. Para si, é mais cómodo e gratificante ter os computadores “à porta de casa” e desta forma continuar a dedicar-se ao seu trabalho de investigação e estudo que não quer abdicar.
Cantanhede está mesmo no centro do país, uma posição estratégica capaz de atrair visitantes mais a sul ou a norte, considerando que tem boas acessibilidades e autoestradas no concelho. Por outro lado, o concelho tem apostado na inovação, como o Biocant e a Expofacic, e claro, destaca que na zona se come e bebe bem.
E porque no fundo não existem coincidências, o ZX Spectrum tem velhas ligações a Cantanhede: “alguns dos primeiros jogos (atualmente conhecidos) feitos para os computadores da marca Sinclair, foram concebidos pelo José Oliveira, nascido na Tocha (concelho de Cantanhede)”.
Explicando o impacto da Timex em Portugal e a sua fábrica na Quinta dos Medronheiros, em Lazarim, João Diogo Ramos relembra que o mundo era muito diferente na altura e não globalizado. “A circulação e taxação de bens colocaria muitos entraves adicionais que talvez tenham sido mais facilmente ultrapassáveis pela existência da TIMEX em solo nacional”. O colecionador acrescenta que para comprovar isso é o facto de que a maioria dos portugueses desta geração tiveram o primeiro contacto na computação através do ZX Spectrum, “mais até do que noutros Países em que se sentia mais a presença de outras alternativas”.
E como seria colocar uma dessas máquinas que corriam jogos com cassetes de áudio nas mãos desta geração digital? “Se uma criança de oito anos conseguia, estou certo que facilmente aprendiam. Poderiam era estranhar todo o trabalho porque naturalmente a vida é vivida com outro ritmo e intensidade e o ponto de partida é totalmente diferente”.
João Diogo Ramos destaca ainda a noção da dificuldade dos jogos associados aos títulos do Spectrum. “Claro que a nossa memória tem tendência a exagerar, mas essa ideia do elevado grau de dificuldade está presente nas nossas recordações. E isso tornava os jogos ainda mais viciantes por muito limitados que fossem a nível gráfico”. Para o colecionador, o fenómeno do nosso cérebro preencher as lacunas na informação jogava a favor do Spectrum, “visto que a perceção que tínhamos dos jogos era normalmente melhor do que o próprio jogo, derivado das limitações do computador”.
Uma das mais maiores e completas coleções do Spectrum em exposição
O informático salienta que o museu é composto por mais de 90% de peças da sua coleção pessoal. “É uma coleção muito completa – uma das maiores – mas tem um propósito que é cumprir a missão de contar esta história”, frisa. Ainda assim, refere que nos últimos tempos tem recebido muitas doações de pessoas que se querem associar ao projeto e que confia na equipa para dispor os seus artigos doados, os quais merecem visibilidade na sua página do Facebook.
Pontualmente recebe objetos emprestados de outros colecionadores, quando têm artigos que não dispõem. “Mas confesso que evitamos ao máximo empréstimos porque criam dificuldades logísticas acrescidas pelo que têm de ser peças importantes para a história (ex: temos um protótipo da Timex que veio de outro colecionador amigo, o Henrique Souto)”. Salienta ainda os donativos muito especiais de pessoas da equipa da Timex Portugal, “que, naturalmente pelo simbolismo e carater único de alguns dos objetos, vieram reforçar em muito a história que contamos”, refere o colecionador em palavras de agradecimento a quem tem ajudado a aprofundar o conhecimento desta história “tão Portuguesa”.
Mesmo considerando uma exposição de uma coleção muito completa, João Diogo Ramos ainda não sabe dizer ao certo quantas peças tem disponíveis no museu, pois ainda está a concluir o inventário do que foi exposto e o seu espólio “é significativamente maior”. No entanto, explica que se olharmos peça a peça, apontaria para cerca de mil artigos expostos, incluindo revistas, livros, cassetes, computadores, periféricos e outros.
Sobre os principais pontos de interesse, o colecionador refere que tudo depende sempre dos interesses dos visitantes, sendo necessário ajustar o conteúdo ao aos mesmos. Lista, no entanto, todos os antecessores do Spectrum, que inclui o raro MK14, assim como um dos ZX Spectrum mais antigos conhecidos atualmente, com o número de série 829, considerando os milhões que se venderam dos diferentes modelos, e que está listado no top 12.
Também poderá encontrar protótipos da Timex Portugal, tal como o TC3256, ainda incompleto, o TENET e uma interface que nunca foi lançada, a TS1245, com a respetiva documentação técnica. Salienta ainda, na área das alternativas da época, o computador mítico ENER1000 da Universidade de Coimbra.
Em termos de organização, João Diogo Ramos garante que os visitantes vão encontrar a exposição mais completa alguma fez feita sobre o ZX Spectrum e tudo o que as empresas associadas fizeram. “Vão encontrar um espaço pensado de raiz para contar a história deste pequeno computador que deixou uma marca tão intensa em tantos de nós. Um espaço que conta com a parte histórica, mas também com diversos apontamentos que permitem aquela foto de recordação que estamos certos vão querer levar para casa. Aliás, fotos e filmagens é algo que incentivamos a fazer à vontade”.
Quanto à estrutura do museu, esta conta com as seguintes secções explicadas pelo seu curador:
- Sir Clive Sinclair: falando da vida deste inventor inglês para compreender o trabalho do homem por detrás da invenção;
- Funcionamento de um Computador: dando uma breve explicação de como funciona um computador e como foi possível fazer um computador mais acessível a nível de custo;
- Sinclair: apresentando a linha de computação da Sinclair com todos os modelos lançados pela marca nos vários períodos da sua vida;
- À Volta do Mundo: que contém computadores da linha e compatíveis vendidos em partes do Mundo tão distintas como América, Europa e até Ásia;
- TIMEX: uma das zonas mais ricas da nossa exposição que explica o motivo da TIMEX se ter envolvido e detalha esta e outras partes da história da ligação a Portugal;
- Sala Anos 80: Recriação de uma sala com decoração da época e um Spectrum original em funcionamento;
- Outros Computadores à Época: Com outros computadores da época que se afiguravam como alternativas, mas também algumas preciosidades como o referido ENER 1000 ou um dos Macintosh que eram assinados pela equipa da Apple;
- Experimentação / Mediateca: Uma zona onde o visitante pode experimentar jogos e afins; ler um livro ou revista ou recordar as cassetes e capas de jogos da sua infância;
- Aparelhos de Medida: A Sinclair também produziu multímetros, osciloscópios e afins que ainda hoje existem sob a marca Thurlby Thandar e que aqui podem ser observados;
- Veículos Elétricos: A visita termina com um dos ex-libris, a parte de mobilidade elétrica, com o famoso triciclo elétrico Sinclar C5 e outros objetos menos conhecidos.
Apesar de estar tudo a postos, a organização ainda não tem uma data para a inauguração formal, devido ao contexto da pandemia, que já alterou os seus planos. Mas garante que a abertura será no dia 17, ficando para mais tarde alguns eventos mais formais de celebração do espaço, com o convite de oradores nacionais e internacionais que já estão previstos.
Quanto a horários, o museu vai funcionar de terça a sábado, num horário para já previsto das 10-18 horas, mas que pode sofrer alterações. O domingo dia 18 será também aberto, para distribuir os primeiros visitantes da sua abertura, mas pede aos interessados para acompanharem as informações no seu website oficial e página do Facebook. Relativamente aos preços, nesta fase será de entrada gratuita, mas no futuro irá ser cobrado um valor simbólico por bilhete para ajudar a manutenção do dia-a-dia do museu.
O museu conta com alguns apoios e mecenas que se associaram ao projeto, refere o curador. “Na nossa página temos identificados os primeiros que se associaram como a Critical Software que acreditou no projeto desde a primeira hora, ou as associações do sector como a APDC e a ASSOFT. Há conversações com diversos outros que espero que percebam agora o alcance e ambição deste projeto. Nasce de um hobby, mas representa toda uma geração que teve a oportunidade de crescer com computadores em casa, numa homenagem única no Mundo e com que tantas pessoas se identificam”.
Falámos do passado, mas e o futuro do Spectrum?
Não poderia acabar a entrevista sem falar no revivalismo em torno do microcomputador, o ZX Spectrum Next e a opinião do especialista, que se mostrou impressionado, mas cético em relação à vontade em retornar a marca. “O ZX Spectrum Next é um projeto de crowdfunding que nasce originalmente no Brasil. Depois foi apadrinhado por muitas pessoas importantes da comunidade do Spectrum e projetou-o para este patamar impressionante. Tem licença de quem detém a marca, mas não tem qualquer ligação que possa significar qualquer vontade em retomar a marca”.
No entanto, na sua opinião pessoal, gostou muito do projeto, que desde cedo mereceu o seu apoio e até tem um exemplar da primeira campanha e até um protótipo doado por um português, o Miguel Guerreiro, que esteve envolvido na fase inicial em alguns trabalhos.
“Já enquanto curador do Museu acho fenomenal o que o Next tem conseguido porque é, mais uma vez, um exemplo de empreendedorismo. Além disso é uma das últimas criações com toque do Rick Dickinson, o designer original do Spectrum e que também se envolveu ativamente. E alguém que é capaz de em 1 mês reunir 2 Milhões de dólares de 2.500 apoiantes, merece a minha admiração”.
Mas as críticas ao projeto fazem parte do processo: “Claro que há críticas que são feitos ao projeto, mas isso faz parte. O Next não deixa de ser o representante mais conhecido de uma tendência que existe com diversos outros equipamentos como o ZX Uno, Harlequin, etc. e que mostram que o Spectrum continua bem vivo”.
Apesar de ser uma máquina comercialmente extinta, ainda existe uma vasta comunidade de produtores independente que produzem jogos com todo o espírito dos clássicos. O curador do museu refere que acompanha indiretamente porque tem na sua equipa pessoas ativamente envolvidas. “O André Leão, o Pedro Pimenta, o Filipe Veiga, o Marcus Garret (no Brasil), são apenas algumas das pessoas com quem falo diariamente e que estão associados ao Planeta Sinclair e à revista Espectro por exemplo. E no âmbito desses trabalhos acompanhamos todo esse fenómeno”.
Realça mesmo que o Planeta Sinclair está ativamente envolvido em muitos desses lançamentos e na sua cobertura, além do nobre trabalho de preservar todo o espólio Português, conhecido ou não, do ZX Spectrum, ZX81, etc. “Não me esquecerei nunca de quando em conversa com o André percebi que houve este ano um fim-de-semana em que foram lançados quase 20 novos jogos de Spectrum”.
E com toda esta temática, ainda joga? “Por falta de tempo não sou jogador. Preservo as recordações de infância dos jogos que me marcaram – e eram tantos – mas não tenho tempo para jogar com este hobby, a minha vida profissional e o desporto (ténis de mesa) que também pratico federado”. Mesmo a sua máquina arcade que tem em casa só é ligada duas ou três vezes por ano para manutenção, pela falta de tempo.
Relativamente aos velhos tempos, recorda a época dourada do Spectrum de muita “jogatana” com títulos como Bruce Lee, Barbarian, Tiger Road, Renegade, Robocop, Chase H.Q., Match Day, Daley Thomson Decathlon… Ou os clássicos Chuckie Egg, Pyjamarama, Back to school e School Daze ou mesmo os simples, mas viciantes, High Noon e Jumping Jack...
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