Já passou pelas nossas notícias várias vezes, a maior parte delas apontada como exemplo entre um grupo de mulheres portuguesas que se distinguem em áreas que ainda vão sendo dominadas pelos homens – mas não por muito tempo, na opinião de Elvira Fortunato.

Professora catedrática e investigadora na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, Elvira Fortunato gere o CENIMAT - Centro de Investigação em Materiais da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, no campus da Caparica.

Foi aí, com a sua equipa, que desenvolveu o primeiro transístor de papel, anunciado em 2008, que por sua vez lhe rendeu 2,5 milhões de euros e a distinção com o primeiro prémio na área da Engenharia do European Research Council (ERC). Foi o início de uma carreira de sucesso que, com certeza, tem ainda muitos frutos para dar.

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TeK: Ser investigadora e, principalmente, na área das engenharias já vai sendo mais comum nos dias que correm? Sentiu dificuldade em afirmar-se enquanto mulher?

Elvira Fortunato: Sim, hoje em dia começa a ser mais comum a existência de mulheres em engenharias que antigamente eram mais escolhidas por homens, contudo também depende um bocado do tipo de Engenharia, por exemplo nas áreas mais químicas ou mais bio há sem dúvida uma predominância feminina, contudo essa predominância tem vindo a ser esbatida nos últimos anos.

Pelo facto de ser mulher, nunca senti qualquer tipo de dificuldade ou facilidade muito embora trabalhe numa área de investigação que é mais dominada pela classe masculina.

TeK: Quando entrou na universidade havia mais mulheres na turma? Hoje em dia como estão os cursos de engenharia na Faculdade de Ciências e Tecnologia da UNL no que diz respeito ao género feminino?

Elvira Fortunato: Quando entrei havia praticamente 50% de cada, mas também entrei numa área nova, na altura Engenharia Física e dos Materiais (neste momento os dois cursos estão separados e eu optei pelo ramo de Materiais) o que despertou um interesse mais homogéneo uma vez que para além de ser um curso novo, acabava por incluir disciplinas com algum contacto com as engenharias mais tradicionais e outras completamente novas em Portugal.

TeK: A Engenharia Física e de Materiais não foi uma primeira escolha, mas de qualquer forma o que a levou a optar pelo curso e não por outro? Correspondeu às expectativas que tinha?

Elvira Fortunato: Na realidade foi a segunda escolha e estou neste momento muito contente por não ter entrado na primeira opção, pois de certeza que não teria chegado onde cheguei hoje! Na altura pesou o facto de ser uma engenharia nova e por outro lado uma universidade também nova, isto é, poder participar num projeto praticamente desde o seu início foi algo bastante aliciante. Isto tudo ainda com a vantagem de ter nascido e morar em Almada o que em termos logísticos me dava e deu uma enorme vantagem.

TeK: O que pode apaixonar alguém pela Engenharia de Materiais, neste caso uma mulher?

Elvira Fortunato: A área de materiais não tem um género de preferência é uma área extremamente importante, necessária e fundamental para tudo até para o desenvolvimento societal ao longo dos anos. Basta ver que as várias épocas da nossa história têm nomes associados a materiais face à importância que esses materiais tiveram na sociedade, a idade da Pedra, do Bronze, Ferro, e por outro lado é uma área que corta transversalmente todas as áreas do conhecimento. Cada vez mais a inovação surge do cruzamento de áreas diferentes, isto se falarmos mais em termos de investigação, mas mesmo em termos de empregabilidade na área da engenharia cada vez mais os alunos quando saem da universidade e chegam às empresas ficam a saber que vão ter de aprender muita coisa ou quase tudo, aí sim de uma forma mais específica e direcionada. Aquilo que a universidade dá e capacita são as ferramentas e a ginástica de raciocínio, tudo o resto será aprendido depois. Face a esta realidade os engenheiros de materiais estão numa posição de vantagem relativamente a outras engenharias mais convencionais.

Por fim, sendo os materiais tão bonitos e importantes é difícil que não nos apaixonemos por eles, eu no meu caso em particular cada vez gosto mais e cada vez me sinto mais apaixonada por esta área.

TeK: Assume-se como uma mulher de trabalho mas também uma mulher de família. Rouba tempo onde (ou a quem)? Sente que teve de fazer cedências em algum momento da sua vida em alguma destas partes da sua vida? Houve algum momento em que tenha sido mais complicado gerir todas as “tarefas” a que se dedica?

Elvira Fortunato: Esta questão ainda quarta-feira, no encontro de mulheres que se realizou no Porto na Women Summit, tive oportunidade de mencionar que a vida é uma PARTILHA e deve ser acima de tudo EQUILIBRADA. É evidente que em tudo o que fazemos temos de optar, até quando vamos a um restaurante fazemos a nossa escolha. É lógico que não nego que trabalho muito e que levo muito trabalho para casa, mas também tento proporcionar á minha filha em conjunto com o meu marido (temos a sorte de trabalhar na mesma área e de nos complementarmos) momentos acima de tudo muito enriquecedores em especial aqueles em que estamos juntos. Por exemplo o trabalho que faço não o encaro nem é para mim uma obrigação, mas sim uma paixão, eu gosto muito do que faço e como sou um bocado perfeccionista tento fazê-lo sempre da melhor forma. Aliás eu costumo dizer que nós cientistas somos como os artistas, nunca estamos satisfeitos e estamos sempre à procura da perfeição, no fundo é isso que nos move e não nos deixa parar, a nossa arte é a ciência. Ora, sendo esta profissão tão apaixonante e ao mesmo tempo desafiante nada melhor que a partilhar com quem mais gostamos e neste caso a minha filha. Face às muitas viagens que temos de fazer, sempre que as mesmas aconteçam em período de férias escolares ela vai connosco e tem sido uma experiência fascinante pois conhece muitos países, várias universidades algumas das mais cotadas em termos de rankings o que lhe irá proporcionar no futuro escolhas bem mais conscientes e acima de tudo ter uma visão mais alargada e integrada do mundo.

Relativamente a gerir várias tarefas ou a ter de optar, uma das vantagens que nós mulheres temos é a capacidade multitasking e eu até gosto, acho que consigo utilizar mais a minha capacidade de raciocínio se tiver de fazer várias coisas ao mesmo tempo. Por outro lado acho que não me sentiria completamente realizada se só fizesse investigação ou me dedicasse a 100% à minha atividade profissional, sinto-me muito mais completa e feliz pelo facto de conseguir de alguma forma ter este equilíbrio.

TeK: Qual a maior adversidade que encontrou a nível profissional? O que é menos fácil? E qual pensa ter sido o seu melhor momento até agora?

Elvira Fortunato: Não tenho tido adversidades a nível profissional, posso dizer que sou uma privilegiada pois tenho a sorte de fazer o que gosto o que nem sempre é possível.

Em termos profissionais o meu melhor momento foi quando recebi uma bolsa do ERC (European Research Council) que me permitiu não só consolidar a investigação que já vinha fazendo mas acima de tudo criar mais riqueza científica e partilhar essa riqueza com outros investigadores. Sinto-me muito orgulhosa de ter conseguido equipar um laboratório de Nanofabricação único numa universidade portuguesa e com isso o grupo no qual estou inserida e que é liderado pelo Prof. Rodrigo Martins (meu marido) passou a ter um reconhecimento internacional ainda maior. Sem falsas modéstias somos neste momento quer na área da eletrónica transparente quer na área do papel eletrónico uma referência internacional. Mas isto também só é possível de ser conseguido devido ao trabalho de toda uma equipa, as coisas não surgem do nada, é preciso muito trabalho e muita resiliência e quem o disser está a faltar à verdade, agora ao fim destes anos todos parece que é tudo muito fácil, mas foi muito difícil, mas também desta forma tem outro sabor. Somos o que somos e conseguimos ter o que temos porque somos um grupo e funcionamos dessa forma, aliás seguimos um provérbio africano que diz “Se quiseres chegar rápido vai sozinho, se quiseres chegar longe vai acompanhado.”

TeK: Como estão os transístores em papel? Quais os últimos desenvolvimentos?

Elvira Fortunato: Neste momento continuamos a trabalhar em força nesta área, temos vários projetos não só europeus como nacionais e estamos a trabalhar por exemplo de forma direta no âmbito de um contrato que acabámos de assinar com a Imprensa Nacional Casa da Moeda precisamente nesta área. Isto também é muito importante pois mostra que as empresas nacionais estão a olhar para as universidade de uma forma mais proactiva e no fundo permitir que o conhecimento que temos acumulado passa para o lado empresarial. Esta é umas das formas onde a contribuição universitária e dos centros de investigação poderão ajudar no crescimento económico de Portugal.

TeK: Na área da investigação, tenciona “contar-nos” mais alguma novidade nos próximos tempos?

Elvira Fortunato: Como sabe, somos muito criativos e muito embora tenhamos um tronco comum temos sempre muitos frutos, aliás não gostamos de ter todas as bolas no mesmo cesto. Continuamos a trabalhar nas duas áreas que mencionei anteriormente e que no fundo são as áreas em que temos conseguido ganhar mais projetos, contudo temos trabalhos de investigação e teses de doutoramento em áreas como as células fotovoltaicas utilizando sistemas híbridos para uma maior captação de energia solar recorrendo à plasmónica; testes de diagnóstico rápidos e em papel para a deteção de doenças e vários bioindicadores utilizando a tecnologia lab-on-paper; materiais e dispositivos eletroquímicos com especial destaque para os materiais e dispositivos eletroquímicos e termocrómicos e nanoeletrónica com especial destaque para a exploração de óxidos metálicos à nanoescala e com multifunções.

Como boa notícia posso em primeira mão dizer que vamos ampliar as nossas infraestruturas com uma parceria entre a FCT-UNL e a Câmara Municipal de Almada, de forma a potenciar a ligação do que fazemos em termos de investigação com o tecido industrial na península de Setúbal.

TeK: Foi convidada a integrar a Estrutura de Aconselhamento Científico (EAC) da Comissão Europeia. Como encarou o convite do Professor Carlos Moedas? Na prática o que faz este grupo? Desde o final de 2015, já foram chamados a dar os vossos contributos em alguma questão?

Elvira Fortunato: Na realidade não foi um convite mas sim uma candidatura e fui selecionada num conjunto de cerca de 150 candidaturas a nível europeu. Esta minha nova função muito embora seja mais a nível de aconselhamento científico para futura decisão política tem sido uma experiência muito enriquecedora. Em primeiro lugar permitiu-me ter uma noção muito mais integrada da Europa e por outro lado como é um grupo de sete cientistas de várias áreas, todas diferentes nos permite fazer uma abordagem de um determinado problema sob vários ângulos e pontos de vista. Isto é extremamente importante, pois para além de todos os estudos se basearam na transparência e em evidência científica permite ter logo à partida um retorno de como o problema é visto e encarado sob várias vertentes. Por exemplo o primeiro estudo que fizemos foi na área das emissões de CO2 de veículos ligeiros, pois aquilo que se observa é que o teste que é utilizado hoje em dia está muito afastado das condições reais de circulação dos veículos (cerca de 40%) pelo que é necessário introduzir um novo ciclo de teste, teste esse que ao ser proposto tem por base os dados científicos dos vários peritos e estudos internacionais assim como a participação dos próprios fabricantes, irá ter uma aceitação muito mais credível. No fundo este grupo funciona como uma ferramenta da própria comissão e que tem por objetivo ajudar a que as decisões políticas incluindo por exemplo legislação da União Europeia, caso venham a ser efetuadas tenham uma base sólida e transparente de suporte.

Gostaria ainda de mencionar que parte do sucesso que este grupo de alto nível está a ter depende também e muito de um secretariado altamente profissional e de excelente qualidade, seria impossível o grupo estar a trabalhar desta forma caso não tivesse este suporte.

Estes estudos sendo públicos permitem também que a sociedade esteja cada vez mais bem informada permitindo-lhe também fazer as melhores opções.

TeK: Na Europa e em Portugal em particular, continuam a existir poucas mulheres nas Ciências e Tecnologia. Porque é que acha que isso continua a acontecer? É algo cultural? O que poderá ajudar a mudar esta realidade?

Elvira Fortunato: Penso que hoje a realidade é um pouco diferente, se englobarmos a área científica na generalidade até temos mais mulheres, dados recentes indicam que já existem mais licenciadas assim como mais doutoradas em Portugal, pode não ser igual para todas as áreas do conhecimento, mas podemos dizer que atualmente (e vai continuar assim nos próximos anos) já somos uma maioria e inevitavelmente iremos ter no futuro uma maior igualdade entre géneros no que concerne a cargos de chefia.

É lógico que no passado e se tivermos em linha de conta que as mulheres nem acesso ao conhecimento tinham, não podemos esperar que os números sejam revertidos de uma forma imediata, aliás se analisarmos a atribuição dos prémios Nobel, podemos verificar que desde o seu início foram atribuídos pouco mais de 800 dos quais 50 a mulheres, mas se tomarmos como referencia os últimos 15 anos temos já 20 mulheres galardoadas. Estes dados no fundo refletem a história, o passado que tivemos mas acima de tudo projetam um futuro muito mais justo e equilibrado.