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Apresentado para aprovação no Conselho Europeu de Sevilha, que decorreu sexta e sábado, o plano de acção e-Europe foi criticado por conter poucas referências sobre a temática da acessibilidade dos cidadãos com necessidades especiais às tecnologias da informação e da comunicação, e principalmente no que toca às tecnologias emergentes, como a televisão digital terrestre e os telemóveis UMTS para as redes de terceira geração.



Pelo contrário, segundo as associações e activistas individuais que denunciaram a ausência de medidas concretas no novo programa, na anterior edição, o e-Europe 2002, a Comissão Europeia estabeleceu como uma das suas principais prioridades a participação dos cidadãos com necessidades especiais.



Neste sentido, o documento que serviu de base a esse programa definiu medidas como a criação de uma rede de centros de excelência em "design para todos", e a criação de normas de acessibilidade para as tecnologias da sociedade da informação. Para além disso, aconselhou também a recolha e análise da legislação específica em vigor nos Estados-membros e a adopção de regras de acessibilidade no desenvolvimento de conteúdos para a Internet.



Uma das pessoas que se destacou nesta campanha de activismo contra "a falta de ambição" do novo e-Europe 2005 foi Francisco Godinho, professor da Universidade de Trás os Montes e Alto Douro (UTAD) e engenheiro de reabilitação que, nos últimos três anos, foi responsável por várias iniciativas com vista ao desenvolvimento de conteúdos para a Internet acessíveis para as pessoas com deficiência.



Francisco Godinho ficou conhecido principalmente por ter sido o responsável pela Petição pela Acessibilidade da Internet Portuguesa. que foi aprovada em 30 de Junho de 1999 pela Assembleia da República. Mas este delegado do Information Society Technologies Committee (ISTC) da Comissão Europeia, organizou ainda iniciativas como as ciber-enfermarias ou mais recentemente o projecto de desratização do software. No seu site Acessibilidade.net, pode-se ficar a par de todos as questões mais importantes e recentes ligadas a esta temática.



TeK: Na sua opinião, o que é que piorou, no que respeita à acessibilidade dos cidadãos com necessidades especiais, com a passagem do e-Europe 2002 para o e-Europe 2005?

Francisco Godinho: No inicio do eEurope a participação dos cidadãos com necessidades especiais era uma das 10 prioridades identificadas pela Comissão Europeia. No Conselho Europeu de Santa Maria da Feira de Junho de 2000 foram aprovas acções concretas nesta área no âmbito do plano de acção eEurope2002. Passados apenas dois anos, o novo plano de acção eEurope2005 foi submetido ao Conselho Europeu de Sevilha sem nenhuma ambição ou inovação nesta área, nomeadamente no que diz respeito às tecnologias emergentes, como a televisão digital terrestre e as comunicações móveis de terceira geração dos telemóveis UMTS.

TeK: Que acções é que realizou a nível pessoal com vista a alertar para este potencial retrocesso? Existiram outras associações nacionais e europeias que representantes das pessoas com deficiência que apoiaram o seu esforço?

F.G.: Em finais de Abril já suspeitava que o eEurope2005 não iria ser ambicioso em relação às pessoas com necessidades especiais. Na tentativa de modificar esse trajecto, iniciei em 6 de Maio um debate sobre este assunto no fórum de discussão "eEurope - linha de acção: Pessoas com Deficiências".

Este fórum europeu, actualmente com 160 membros, foi criado por mim durante a Presidência Portuguesa da União Europeia para discutir precisamente as iniciativas para cidadãos com necessidades especiais no âmbito do eEurope.


Em 20 de Maio escrevi directamente ao comissário europeu Erkki Liikanen a pedir explicações sobre os objectivos da Comissão, uma vez que o documento sobre o eEurope2005 não era público. Em 27 de Maio, no dia anterior à aprovação desse plano, o Comissário Liikanen respondeu-me mostrando-se aberto a sugestões. Eu enviei-lhe as minhas sugestões passadas 7 horas.


No dia 5 de Junho a Plataforma Europeia das Pessoas Idosas enviou uma carta ao Comissário Liikanen e aos Ministros da UE responsáveis pelas Tecnologias de Informação alertando para a completa ausência de iniciativas para pessoas idosas. No dia 7 de Junho o Fórum Norueguês de Telecomunicações para utilizadores com deficiência enviou também uma carta ao Comissário Liikanen manifestando preocupação pela ausência de acções relacionadas com a acessibilidade.



TeK: Quais é que acha que foram as verdadeiras razões para este relegar da questão da acessibilidade pelas autoridades comunitárias?

F.G: O interesse por esta área é muito fraco. Estou a lembrar-me de uma situação embaraçosa que ocorreu na Conferência Ministerial Europeia sobre Sociedade da Informação e do Conhecimento organizada pela Presidência Portuguesa da UE em 10 e 11 de Abril de 2000.


Esta conferência foi constituída por oito sessões relacionadas com as 10 prioridades iniciais do eEurope e cada sessão deveria ser presidida por um Ministro da UE. Para presidir a sessão sobre "Cidadãos com Necessidades Especiais" não houve nenhum Ministro interessado. Tivemos que escolher um presidente entre os oradores.



TeK: O que é que pode ser feito na área da televisão digital e nos telemóveis de terceira geração, com vista a aumentar a acessibilidade a essas novas tecnologias por parte das pessoas com deficiência?

F.G.: Em termos de acesso há quatro preocupações fundamentais a ter em conta: a acessibilidade das interfaces, a acessibilidade dos conteúdos, a largura de banda para serviços especiais e condições económicas ajustadas à natureza social desta população, dado que para um surdo a comunicação por vídeo é fundamental mas não pode estar no escalão económico das empresas.


Para lá da acessibilidade, está o que pode ser feito com estas tecnologias em benefício destas populações. Por exemplo, a transmissão de um filme estrangeiro dobrado em português com descrição de imagens via Televisão Digital Terrestre para um cego ou um serviço remoto de interpretação em língua gestual através de um telemóvel UMTS para um surdo.



TeK: Comparativamente, em que nível de desenvolvimento é que a União Europeia e, em particular, Portugal, se encontram nas questões ligadas com a acessibilidade face aos Estados Unidos e aos países asiáticos?

F.G: Os Estados Unidos estão claramente mais avançados que o resto do mundo nesta matéria, quer pela existência de uma importante rede de centros de engenharia de reabilitação, quer pela legislação ou mesmo pela força das organizações ligadas à deficiência.


Portugal deu recentemente alguns passos importantes: foi o primeiro país na Europa a comprometer-se com a acessibilidade dos conteúdos Web da Administração Pública e a valorizar propostas para cidadãos com necessidades especiais nas candidaturas às licenças UMTS, tendo sido o segundo pais europeu a adoptar medidas de acessibilidade à Televisão Digital Terrestre. Quanto aos países asiáticos, não tenho muita informação mas julgo que estarão muito próximos da UE.



TeK: Considera que os Webdesigners e os programadores estão sensibilizados para a acessibilidade das pessoas com necessidades especiais aos sites da Web e a software informático?

F.G: Na área da Web registou-se uma evolução muito positiva nestes três últimos anos. Quanto ao software, estamos na estaca zero. A grande diferença está precisamente na importância que se deu a cada área. Os Webdesigners e os programadores de software precisam, em primeiro lugar, de ver alguém a dar o exemplo, de recursos que os ajudem a aprender o mais depressa possível e por último que o seu esforço seja reconhecido.



TeK: Como é que surgiu e quais são os objectivos da Aliança Nacional para a Acessibilidade do Software (ANASOFT), uma associação da qual o senhor é um dos principais promotores?

F.G: A ANASOFT surgiu no dia 3 de Dezembro de 2001, como forma de assinalar o terceiro aniversário do início da Petição pela Acessibilidade da Internet Portuguesa e o tema escolhido para o Dia Europeu da Pessoa com Deficiência - Design para todos. Ficou assente que a apresentação pública desta Aliança seria feita em seminário a organizar no primeiro semestre de 2002 sobre este tema, o qual aconteceu no passado dia 7 de Junho no auditório da Microsoft Portugal. O objectivo é promover a concepção, o desenvolvimento e a comercialização de software acessível ao maior número possível de utilizadores, incluindo pessoas com deficiências.



TeK: No dia 18, apresentou uma proposta de alteração à legislação sobre segurança e saúde aplicada ao software utilizado no trabalho que foi enviada para a Secretaria de Estado do Trabalho. Poderia explicar qual é o conteúdo desta proposta?

F.G: Tratou-se no fundo de identificar características inerentes ao software, nomeadamente a interface com o utilizador, que minimizam o esforço físico, cognitivo e da visão do utilizador. São características de flexibilidade, acessibilidade, usabilidade e compatibilidade. Algumas destas características coincidem com regras de acessibilidade para utilizadores com deficiência. Isto significa que podem ter implicações no posto de trabalho de uma pessoa com deficiência.



TeK: Em que é que consiste o projecto de desratização do software que é organizado por si?

F.G.: A desratização do software é uma expressão que pretende chamar a atenção para o problema do uso excessivo do rato, também conhecido por "doença do rato". Não se pretende retirar a possibilidade de usar o rato ou outro dispositivo apontador equivalente, mas sim ter também a alternativa através do teclado, para possibilitar um uso mais rápido ou para quem já sente dores ao movimentar o rato. Esta questão também é vital para uma pessoa cega, uma vez que não vê o cursor do rato. Sem alternativa do teclado, o software torna-se inacessível.



TeK: Como é que avalia a atitude do actual governo em relação aos acesso das pessoas com deficiência às novas tecnologias, em comparação com o anterior?

F.G.:
O actual Governo não se comprometeu a fazer nada nesta área. O anterior teve a ousadia de aprovar em Conselho de Ministros uma iniciativa nacional para os cidadãos com necessidades especiais na Sociedade da Informação.


Fui convidado pelo ex-ministro Mariano Gago a colaborar no arranque desta iniciativa que teve como preocupações iniciais a implementação da resolução de Conselho de Ministros sobre a acessibilidade dos sites da Administração Pública, a iniciativa eEurope durante a Presidência Portuguesa da UE e a criação da Unidade ACESSO na dependência do seu gabinete. Em Novembro de 2000 deixei o Ministério mas continuei a coordenar as actividades que desenvolvia na UTAD em sintonia com os objectivos do professor Mariano Gago.



TeK: Nos últimos anos, o seu nome esteve sempre associado às principais iniciativas e campanhas de activismo a favor da acessibilidade dos cidadãos com necessidades especiais em Portugal. O que é que o levou a seguir a via do activismo?

F.G: Bom, a característica de activista já vem do meu tempo de estudante universitário. Julgo que se manifestou quando promovi a criação do Núcleo de Estudantes de Engenharia Electrotécnica da UTAD em 1989. Na altura foi quase uma revolução porque não existiam associações representativas dos alunos de licenciatura. Foi também nessa fase que comecei a interessar-me pela tecnologia ao serviço da autonomia e da qualidade de vida das pessoas com deficiência. Em Março de 1990 organizei em colaboração com o Centro de Suporte a Pessoas Deficientes da IBM a exposição "Ajudando as Pessoas com a Tecnologia".



TeK: Pensa continuar?

F.G:
Sim. Em Julho irei apresentar ao Governo e à Alta Autoridade para a Comunicação Social uma proposta de criação de um canal de televisão para conteúdos adaptados a necessidades especiais na rede de Televisão Digital Terrestre. Nesta altura em que todos procuram entender o que é serviço público de televisão é oportuno lembrar que há muitas pessoas neste país que não têm acesso a um filme estrangeiro por dificuldades de leitura das legendas.