Neil Harbisson nasceu com uma condição, chamada acromatopsia, que faz com que veja o mundo a preto e branco. Desde 2004 que vive com uma antena implantada na cabeça, com tecnologia que regista as frequências das cores e que as traduz para sons, dando-lhe a oportunidade de percepcionar a cor de forma diferente. Para o artista e ativista, a tecnologia é mais do que uma parte do seu corpo, a tecnologia é a sua identidade.
Numa entrevista à margem do IDC Security Roadshow 2023, onde participou como orador, Neil Harbisson explica ao SAPO TEK que a tecnologia que tem implantada no corpo tem vindo a evoluir ao longo do tempo. “Hoje chamo-a antena. No início chamava-a eyeborg porque o meu objetivo era ter uma espécie de terceiro olho”, conta.
Inicialmente, o sistema, que desenvolveu em conjunto com Adam Montandon, era exterior, sendo composto por uma webcam, um par de auscultadores e uma ligação a um computador.
No entanto, o eyeborg não era prático e o projeto acabou por evoluir para uma antena com um chip que vibrava consoante a frequência das cores. A melhor forma de utilizar o sistema seria mesmo implantá-lo na cabeça.
O procedimento foi feito por uma via menos convencional, uma vez que os profissionais de saúde que tinha contactado na altura não o permitiam por motivos éticos, tendo sendo realizado por um cirurgião que manteve o anonimato.
A antena, que está permanentemente implantada, tendo-se fundido ao seu crânio, passou a ser um novo órgão sensorial. No que toca à evolução da tecnologia, Neil conta que “há dois tipos de upgrades, do órgão e do sentido”.
O interior da antena, composto por fibra ótica, não se altera, mas o tubo exterior já passou por algumas mudanças. “Mudou porque ‘envelhece’ e se torna menos flexível com o passar do tempo”. A própria cor também se alterou, de preto para prateado, numa decisão relacionada com a absorção de calor da tonalidade mais escura.
“O sentido também evoluiu. No início só registava 25 cores, depois 360 e, mais tarde, frequências ultravioleta e infravermelhas”, detalha, acrescentando que a ligação à Internet, via Bluetooth, foi uma das últimas grandes mudanças.
A ligação permitiu que outras pessoas passassem capazes de lhe mandar sinais de cores. Através dela, Neil conseguiu também ligar-se a sensores na Estação Espacial Internacional para ouvir cores que nunca tinha experimentado na Terra.
Com a ligação à Internet chegou outro grande desafio: ser fisicamente hackeado. Ao longo dos quase 20 anos em que tem a antena implantada Neil só foi hackeado uma vez, com alguém a enviar-lhe sinais de cor sem a sua permissão.
Para evitar que o mesmo voltasse a acontecer, Neil decidiu parar a ligação à Internet e começar a utilizar a Blockchain. “Precisas de desbloquear conteúdo num NFT para te ligares à minha cabeça”, explica.
Neil acredita que, no futuro, a Blockchain poderá ser mesmo uma forma de manter a segurança de quem tem tecnologia implantada. “Creio que isto será o que a maioria das pessoas vai fazer quando tiverem Internet nos seus corpos: elas usarão a Blockchain para permitirem ligações".
“Não sinto que estou a usar tecnologia. Sinto que sou tecnologia”.
Como partilhado pelo artista e ativista durante a sessão no IDC Security Roadshow 2023, o seu cérebro mudou desde que começou a ouvir cores. Hoje, já não sente diferença entre a tecnologia e o seu cérebro, motivo pelo qual se identifica como um ciborgue: “não sinto que estou a usar tecnologia. Sinto que sou tecnologia”.
Através deste órgão sensorial, que lhe permite ouvir cor, a forma como percepciona o mundo mudou, algo que se passou a traduzir, por exemplo, na maneira como se veste e como cria arte. Mas não é tudo, ir a uma galeria de arte ou a supermercado, ou até olhar para uma pessoa são experiências completamente diferentes.
A forma como o mundo o perceciona também mudou. É certo que, ao vê-lo, as pessoas tentam sempre decifrar o que a antena na sua cabeça é, mas, Neil conta que, se antes as reações eram apenas de estranheza ou choque, ou até risos, hoje “tem uma opinião mais séria”.
“As opiniões vão de um extremo ao outro”, afirma. Por um lado, há quem considera que o que está a fazer “é algo muito mau ou uma afronta a Deus”. Por outro, há quem olhe para tudo de uma forma extremamente positiva. “Hoje, as pessoas têm algo a dizer e antes não tinham”, realça.
As questões éticas da modificação do corpo através da tecnologia são uma preocupação para muitos. Para Neil há limites que não devem ser ultrapassados, por exemplo, quem tenciona modificar o corpo deve fazê-lo somente a si e de uma forma que não prejudique outras pessoas.
Ser adulto é outro dos requisitos importantes. “Há muitos adolescentes que se interessam por este tema. Acredito que têm primeiro de experienciar o mundo com os seus próprio cérebro e sentidos”, afirma.
“Deves poder ter a liberdade para decidir quantos órgãos ou sentidos queres ter”, realça Neil Harbisson, acrescentando que, cada pessoa deve ser capaz de “descobrir os seus próprios limites”.
É esta mesma liberdade que defende a Cyborg Foundation, fundada em 2010 por Neil Harbisson e Moon Ribas, também artista e ativista ciborgue. A fundação quer “dar resposta a quem está interessado em “desenvolver novos órgãos ou sentidos através da tecnologia”, defendendo os direitos de quem se identifica como um ciborgue e apoiando a cultura gerada em torno desta comunidade.
A ideia de que, no futuro, todos seremos substituídos por tecnologia não é nova, mas, recentemente, voltou a ganhar força com a popularização de soluções de IA, como o ChatGPT, com muitos a questionarem-se sobre o impacto nas suas vidas e na forma como funcionamos em sociedade. Mas será que a solução passa por tornarmo-nos seres tecnológicos? Neil Harbisson acredita que sim. “Ao fundimo-nos com a tecnologia passamos a ser tecnologia e evoluímos com ela”, sublinha.
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