Durante o BIG Festival que se realizou no Brasil, o SAPO TEK encontrou uma das figuras lendárias da indústria de videojogos: David Brevik, ex-vice-presidente da Blizzard e o criador de Diablo. Depois da sua saída da Blizzard, fundou a Flagship Studios e criou Hellgate London, um ambicioso videojogo que viria a ser um fracasso. A carreira de David Brevik levou-o a empresas como a Turbine, a Gazillion Entertainment, estando ligado a títulos como Marvel Heroes e o lançamento chinês de Path of Exile.
Atualmente, David Brevik dedica-se à industria indie, por um lado através da distribuidora Skystone Games, que tem ajudado a lançar jogos independentes no mercado, inclusivamente um brasileiro, como tem o seu próprio estúdio, a Graybeard Games, onde “mete as mãos na massa” nas suas pequenas produções, como It Lurks Below.
O SAPO TEK esteve à conversa para perceber a evolução da indústria desde os seus tempos da Blizzard e também perceber o estado atual da empresa que o acarinhou com Diablo. Leia a entrevista completa.
Veja na galeria imagens do BIG Festival:
Quão diferente é a indústria de videojogos atualmente em comparação com o tempo em que lançou Diablo na Blizzard?
São tantas as diferenças que se torna difícil de as apontar. Penso que existem duas grandes mudanças que mudaram a indústria, mais que tudo. A primeira é a distribuição digital. Nos velhos tempos, a única forma de lançar um jogo e alcançar uma audiência era colocá-lo numa prateleira nas lojas, era preciso fabricá-los, transportá-los nos camiões e fazer todo o trajeto demoroso até ao lançamento. As editoras pediam grandes margens dos lucros, pelo menos 80% do dinheiro, porque podiam, era a única forma de colocar os jogos à venda era através destas máquinas de distribuição.
Mas a distribuição digital foi uma grande vitória para a indústria, como o Steam que liderou o caminho, mas agora temos muitos outros, como a Apple Store, a Google Play, as lojas digitais da Nintendo, PlayStation e Xbox, por exemplo. Foi “game changing”, pela possibilidade de eliminar o intermediário.
A segunda grande mudança é a facilidade com que agora se fazem jogos. Nos velhos tempos não haviam manuais, instruções, não havia nada. Quando decidias fazer um jogo para a Nintendo, não havia dev kits ou parecido, davam-te os esquemas e diziam-te: “boa sorte, espero que consigas fazer algo!” Tínhamos mesmo de ser um mago de computadores para compreender o que se estava a passar. Mas atualmente, os motores são realmente fáceis de utilizar, a maior parte das questões técnicas já foram resolvidas para ti, o que abre portas a uma grande audiência, permitindo mais pessoas fazerem jogos.
Essas duas coisas tiveram uma grande influência em mim e para a indústria, mudando a forma como os jogos são feitos e distribuídos. Muitas pessoas podem agora fazer jogos, dando voz a diferentes culturas, dando origem a vários tipos de propostas. Por outro lado, isso também está a tornar o mercado bastante sobrelotado, com tanta gente a fazer coisas de qualidade, o que é um desafio de se sobressair. No tempo de Diablo havia 50 ou 100 lançamentos de jogos por ano, agora temos cerca de 1.000 jogos lançados semanalmente, seja no PC, consolas, mobile, etc. É impossível sequer conhecermos todos estes jogos e por isso, existem vantagens e desvantagens.
No tempo de Diablo havia 50 ou 100 lançamentos de jogos por ano, agora temos cerca de 1.000 jogos lançados semanalmente, seja no PC, consolas, mobile, etc. É impossível sequer conhecermos todos estes jogos e por isso, existem vantagens e desvantagens
E se Diablo fosse lançado atualmente, mesmo a definir um género como o fez na altura, considera que o jogo voltaria a ter o sucesso que teve?
Eu penso que sim. Diablo era tão diferente de tudo o resto que existia. E fizemos diferente de propósito, com objetivos específicos, embora familiar, com grandes diferenças. O jogo foi moldado e inspirado em velhos RPGs que corriam em Unix, os títulos em ASCII, que as pessoas conheciam bem, mas nós colocámos gráficos em cima, oferecemos uma boa interface de utilizador e tornamo-lo fácil de jogar.
Quando fizemos o pitch de Diablo fomos rejeitados muitas vezes por diversas editoras. A maioria delas dizia que os RPGs estavam mortos, ao que respondíamos que se tratava de uma nova forma no género, mas eles não entendiam.
Ainda assim, quando Diablo saiu já havia o “hype” de ser o novo jogo da Blizzard…
Sim, nós fizemos esse “hype”, mas dois ou três anos de nos juntarmos à Blizzard ninguém queria saber do jogo. Erámos a Condor nessa altura, tentávamos vender a ideia, mas ninguém queria. Os RPGs que havia na altura eram coisas como Dungeons & Dragons, com seis personagens que controlávamos ao mesmo tempo, por turnos, com um ritmo lento e histórias complexas. O que queríamos fazer era livrar-nos disso tudo e tornar o género mais acessível, mas ninguém compreendia isso.
Mas temos de dar o crédito à Blizzard, que viu o potencial do jogo, dizendo-nos que compreendia o que estávamos a tentar fazer e que parecia uma boa ideia. Não queríamos fazer mais um jogo com elfos e dragões, mas sim um outro tipo de fantasia, mais negra e com uma arte mais pesada. Os nossos visuais quebraram tendências da altura e o gameplay era igualmente muito diferente.
Muitos não sabem, mas na altura havia um jogo de NHL na consola, o NHL 96, penso, e o que adorávamos naquele jogo é que no fim de premir alguns botões, passados uns minutos, estávamos a jogar hóquei, era realmente rápido. E a maioria dos RPGs obriga a rolar todas as estatísticas para as personagens, a criar histórias de fundo, definir a imagem das mesmas, demorando cerca de duas horas até que começássemos mesmo a jogar. Focamo-nos a criar uma experiência em que os jogadores entravam rapidamente no jogo, explorar uma masmorra e matar monstros.
Ainda sobre a Blizzard, o que se passa atualmente com a empresa na sua perspetiva, os problemas com os trabalhadores, a polémica com o sistema de monetização de Diablo Immortal?
Eu não sei o que aconteceu com a Blizzard e deixa-me triste. Penso que muitas das pessoas que construíram a alma e o núcleo da Blizzard, que ajudaram na sua reputação, já saíram. As pessoas significam tanto neste negócio e quando saem, é algo mais preocupante do que aquilo que o público geral sabe. As novas pessoas que entram não têm a mesma mentalidade, têm ambições diferentes. E isso muda tudo numa empresa e acontece em diversas outras, com as pessoas a saírem.
Mudando de assunto, mas mantendo-o nos velhos tempos, no primeiro dia do BIG Festival vi-o com uma camisa do Hellgate London, o seu primeiro jogo depois de ter saído da Blizzard, mas que infelizmente foi um “flop”. Na sua opinião, porque é que o jogo foi um fracasso?
Ainda continuo muito orgulhoso de Hellgate London. Mas infelizmente não correu como esperaríamos, embora a ideia do jogo era realmente muito boa. Tinha demasiados bugs, estávamos a introduzir um novo modelo de negócio na altura, com muitos parceiros de negócio e fomos demasiado ambiciosos. Houve muitas coisas que fizemos de errado, não havendo uma coisa em particular que devemos culpar, mas demasiadas coisas estranhas no desenvolvimento. E posso dizer que foi quase um milagre de o jogo sequer ter sido lançado.
O que me deixa triste é não ter tido sucesso, porque foi verdadeiramente o primeiro shooter looter, que atualmente já é um género. Primeiro fazer Diablo e depois Hellgate London foram dois grandes contributos de géneros à indústria. Borderlands e Destiny são alguns dos exemplos do género que Hellgate London introduziu. Não foi apenas estar um pouco à frente do seu tempo, mas cometemos diversos erros na produção e uma grande ambição para o mesmo. No entanto, aprendi imenso a fazer esse jogo.
Atualmente está concentrado em pequenos projetos e vi recentemente um tweet em que dizia que era possível criar pequenos projetos, com qualidade profissional, com um preço de venda entre os 3-5 dólares. Esta é a mensagem perfeita para trazer para um evento indie como o BIG Festival?
Penso que isso seja mesmo uma possibilidade e algo que estamos à procura de fazer. Não se trata apenas de eu fazer essas pequenas coisas, mas porque noto que existe uma tendência de mercado nesse sentido. Existe muita competição no mercado e uma das formas em que te podes destacar é vender os jogos baratinhos. Se os venderes baratos não vais fazer tanto dinheiro, mas poderás ter mutias mais vendas e mais notoriedade, que pode ser bom para o próximo projeto. É um tipo de balanço que tem de ser feito que faça sentido no mercado. O Steam, no momento, tem tantos jogos e opções, por isso como fazer para se destacar? Uma das formas é o seu preço.
As pessoas estão sempre à procura de jogos baratos e de boas promoções, por exemplo, Vampire Survival que saiu e vendeu muitas cópias porque as pessoas estão dispostas a pagar 3 ou 4 dólares para passarem algumas horas entretidas. E o jogo “explodiu” e isso levou-me a pensar que existe alguma tendência neste modelo e que devíamos estar atentos. Por outro lado, acredito que está para chegar uma nova recessão global e por isso temos de pensar como vamos antecipar esse problema.
E o que está neste momento a fazer?
Estou a fazer muitas coisas. Sou o presidente da Skystone Games, uma editora de jogos indie e estamos a trabalhar com diversos developers, mesmo aqui no Brasil estamos a falar com pessoas. Publicamos recentemente um jogo de um estúdio brasileiro, que está disponível no Game Pass, o Spacelines From the Far Out da Coffeenauts. Temos outros jogos que estamos a editar.
Também tenho o meu estúdio independente para fazer os meus próprios projetos, a Greybeard Games. Também estou a fazer o design de um jogo, como consultor, para a Take 2/Zynga, um título de PC. Também estou a prestar serviços de consultor para outro RPG que está a ser produzido. As pessoas mandam-me informações, eu devolvo o feedback. Tenho muitos empregos atualmente…
Sente falta dos tempos de Diablo e pensa voltar a fazer uma grande produção ou planeia manter-se nesta industria indie?
Não vou ficar “agarrado” ao desenvolvimento de indies. Estou a desenvolver indies, mas também estou a fazer consultadoria para um grande jogo da Take 2/Zynga. Mas em algum ponto irei voltar a fazer uma grande produção.
Olhando para este BIG Festival, que conselhos deixaria para os novos developers que estão a começar a sua carreira na produção de videojogos?
Daria imensos conselhos, aliás, vou ter uma talk no BIG Festival exatamente sobre essa temática. De como obter uma ideia e analisá-la se vai funcionar, como tornar esse jogo uma realidade, como definir a audiência para o mesmo, e todos os passos necessários no processo. Ou seja, fazer um jogo no mundo atual, que é muito diferente da forma como fazíamos nos anos 1990. Basta olhar para as mudanças que ocorreram nos últimos três anos na indústria de jogos. É importante a adaptação à mudança dos tempos, dar os passos corretos para que tenham sucesso.
Costumo dizer que se trata de uma maratona e não um sprint, vão passar muito tempo a trabalhar em algo. Por isso não percam a cabeça, mantenham o foco do jogo de forma razoável, tentar gerir as expetativas. Um jogo no Steam faz em média 1.500 dólares durante a sua vida, o que não é muito dinheiro para um projeto em que se trabalha vários anos.
Falou que Hellgate London apresentou um novo modelo de negócio, mas agora vemos um sistema de Diablo Immortal, que é free-to-play, mas que na verdade se tem de pagar?
Não existe gratuito em free-to-play. Nunca houve. Podes jogar o jogo de forma gratuita, mas não serás um jogador de elite a não ser que invistas dinheiro. É um modelo muito bem-sucedido e que veio para ficar, não vai mudar. Eu pessoalmente não acho que esse tipo de monetização, sobretudo as predatórias ou sistema semi-gambling, sejam os mais corretos e tentamos ficar longe dessas coisas. Mas não vejo mudanças tão cedo, gostemos ou não. O que interessa é que é um sucesso e ouvi um rumor que a Blizzard está a fazer 1 milhão de dólares por dia com Diablo Immortal. Se estão a fazer a coisa correta? Eu não sei, mas sei que estão a fazer 1 milhão de dólares por dia, o que é muito.
No entanto, a Blizzard já não tem a mesma reputação que tinha e os seus jogos também já não são tão bem-sucedidos como eram. Overwatch e Heroes of the Storm não foram jogos bem-sucedidos, não tiveram a performance que a empresa previu ou que Wall Street previsse. E por isso, não é tão fácil como antes. E penso que Overwatch não teve sucesso por não ter mecânicas de battle royale, devido à forma como o jogo foi projetado nem sequer pode ter sido introduzido mais tarde, o que chateou os investidores.
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