Rui Modesto já produz vídeos para o YouTube praticamente desde o início da plataforma em 2007, e nos últimos 10 anos dedica-se a full time ao seu trabalho como produtor de conteúdos: criar guias, reviews e apresentar videojogos aos seus seguidores. Conhecido como Rurikhan, nome que dá ao seu canal, o produtor de 38 anos explicou ao SAPO TEK que a origem do seu nick foi a tentativa de conciliar o seu nome Rui, com aqueles que são atribuídos aos anões, em homenagem à raça que mais gosta de escolher nos jogos MMO.

O seu primeiro vídeo foi exatamente para World of Warcraft, a explicar a classe de tank no jogo. E a partir daí passou a dedicar muito do seu tempo a criar guias específicos para os jogos. Ou seja, não basta ao criador de conteúdo mostrar os jogos que joga, como especializar-se e aprofundar conhecimentos, para que depois o próprio explique à sua comunidade as mecânicas. “A minha ideia quando comecei a fazer vídeos era só para falar de jogos que me interessavam, que na altura era só MMOs, nomeadamente WoW que ainda hoje é muito jogado”. Diz que agora vê quais os jogos que leva para o canal que funcionam e especializa-se nos mesmos. Atualmente é o Monster Hunter Rise que é destacado no canal.

Aprendeu a falar inglês com Star Wars e adotou a língua para o YouTube

Se tropeçar no seu canal, muito provavelmente não vai reconhecer o criador, porque todos os seus vídeos são em inglês. Ao contrário de muitos portugueses que tentam a sua sorte para criar um alcance internacional, Rui Modesto não tem sotaque na sua dicção e até engana os americanos, que pensam mesmo que o streamer é compatriota. Quando começou a fazer vídeos, na altura ninguém em Portugal sabia o que era o YouTube e como o sistema de parceria não havia em inglês decidiu continuar com o seu projeto em inglês.

No entanto, apesar de ter uma audiência estrangeira, tem muitos fãs portugueses. “Quando tenho oportunidades de fazer colaborações em português não hesito, para compensar”, refere o criador, destacando que ainda abriu um outro canal em português, mas não tinha tempo para tudo e teve de o abandonar.

E como aprendeu a falar inglês? “Aprendi a falar inglês a ver filmes de Star Wars, via o Episódio IV vezes sem conta, em loop, e as legendas estavam muito boas, pois comecei a associar os textos com as palavras e comecei a fazer as frases. Os meus pais, como viram que tinha interesse no inglês, compraram-me aqueles cursos em cassete para fazer. E eram muitas cassetes”. Na escola nunca precisou de estudar inglês e isso refletiu-se nas notas. “Quando estive na universidade, tinha três níveis de inglês à escolha e escolhi o mais elevado. Se fizesse os trabalhos não precisava de ir a exames, bastando-me uma média de 12. Mas tive um 9 no final e decidi então fazer. No final obtive 18 valores em inglês”.

Com 39 anos, nem sempre o YouTube e o Twitch foram a sua fonte de rendimento. Antes de se dedicar a tempo inteiro, Rui Modesto trabalhou em empresas que faziam stands e exposições em espaços como a FIL. Também passou pela impressão digital e consultaria em TI, derivado ao seu curso de engenharia informática que tirou. Quando descobriu a sua vocação com os vídeos deixou tudo para se dedicar a 100% ao seu canal no YouTube. “Esta é uma carreira muito instável, com uns meses muito bons, outros maus, ou porque o conteúdo que fazemos já não é relevante. Como Rui Modesto não quer cobrir os jogos que são poupares, mas sim aqueles que mais gosta, essa decisão acaba sempre por ser muito má para o negócio, afirma. Até porque, afirma, é péssimo em forjar emoções, e se não estiver a divertir-se com o jogo os seus seguidores vão notar.

O poder dos algoritmos das plataformas

Rui Modesto afirma que entre as mudanças observadas, desde que começou até ao presente, nas plataformas como o YouTube e o Twitch, são os seus algoritmos. Diz que atualmente não se pode criar vídeos do que goste, “tudo tem a ver com o que o criador está a fazer, se é algo que interessa à plataforma, ou não. Se a plataforma estiver interessada no que fazes vai-te ajudar, até estende o tapete vermelho ao criador”. Refere que a parte difícil é identificar aquilo que o YouTube está interessado: “neste momento está a acontecer o crescimento do mercado de beleza e o YouTube adora vídeos de beleza e maquilhagem, vglogs, pessoas que reportam como está a sua família e as coisas que faz no dia-a-dia, conteúdo que onde é difícil haver uma opinião polarizante”.

Rurikhan
Rurikhan

Deixa o alerta de que quem pretende começar a fazer vídeos sobre a área dos videojogos, terá neste momento a vida complicada em termos de crescimento, porque está sobrelotada. Afirma ainda que no caso do Twitch, os criadores não se devem focar exclusivamente nesta plataforma porque não tem algoritmos eficazes para dar a conhecer os canais a um novo público.

“No Twitch não há oportunidade de crescimento, mesmo com um host de alguém grande, não contribui com oportunidades de descoberta”. Salienta que a estratégia é escolher uma plataforma de apoio ao Twitch, como o TikTok. E depois de crescer no TikTok tentar puxar para o Twitch.

Questionado se está a fazer aquilo que gosta, Rui Modesto diz que gostava de ter maior presença no Twitch, mas os vídeos no YouTube ocupam muito tempo. Utiliza a plataforma mais na “desportiva”, visto que tem duas crianças pequenas e não pode dedicar mais tempo livre à plataforma. Mas é o YouTube que “lhe paga as contas”.

Uma das imagens de marca pelo qual é conhecido é o seu chapéu australiano. “Quando jogava Dark Souls tinha um cabelo ondulado, muito difícil de arranjar, e como utilizava a webcam era sempre um problema de manhã ter o penteado em condições. Por isso decidi arranjar um chapéu, e como não tinha nenhum pedi ao meu pai, que me deu um modelo australiano”. Quando Rurikhan estreou essa nova imagem, o seu público adorou e obrigou-o a utilizar sempre, batizando-o como o “Hat of Souls”. Esse primeiro chapéu acabou por se estragar com o tempo e o que utiliza atualmente foi comprado por um fã na Austrália e enviado para si. Agora, Rui Modesto não utiliza tanto o chapéu, mas sempre que recebe uma doação ou subscrição, utiliza-o com um movimento de agradecimento.

Rurilhan
Rurilhan

Descrevendo o seu público, Rui Modesto diz que é difícil, pois as mudanças constantes nos algoritmos das plataformas ditam também mudanças nas pessoas que assistem. “Mesmo com muitos milhões de subscritores, as visualizações vêm praticamente de fora, apenas uns 30% são do público fiel, o resto é orgânico”. Como o seu trabalho acaba por ser ligado à ajuda sobre as mecânicas dos jogos, e sobretudo ligado a uma mensagem de não desistir quando algo é difícil, o seu público acaba por adotar esta postura, estando sempre pronto a ajudar os restantes, sendo pessoas tolerantes, e sobretudo, a serem inclusivos.

Sente ainda que durante a pandemia o seu canal foi um ponto de refúgio a muitos seguidores, mesmo antes, pessoas que passam por momentos difíceis acabam por se abstrair com os seus vídeos. E isso serve como motivação para o criador, por estar a ajudar, algo ampliado pela pandemia. “Tento ler todos os comentários e ajudar, a reconfortar as pessoas, visto que o ser humano foi feito para interagir uns com os outros. Considero que é importante irmos à casa das pessoas, pessoalmente costumava levar uma consola para os amigos e divertir-me com eles.

A rotina de um streamer e os números

Para Rui Modesto, o principal desafio e dificuldade no seu trabalho como como criador de conteúdo e streamer é manter o foco e a concentração. E dá o exemplo de como é feito o seu trabalho no jogo Monster Hunter em que fez guias das 14 armas do jogo, mas para poder ensinar, tem de aprender primeiro. Diz que são os vídeos mais desafiantes para si, até porque necessita de lutar contra a inspiração (ou melhor, a falta dela), pois depois de ter um objetivo definido basta executar.

Rurikhan
Rurikhan

Depois afirma que na sua profissão, numa área ligada ao gaming, quando não estão a sair novos jogos, o desafio é encontrar conteúdo para fazer: “Às vezes posso passar um dia inteiro em frente ao computador a pensar o que vou fazer e chego ao fim do dia e não fiz NADA, e é horrível, das piores sensações de vir trabalhar para o estúdio [localizado num armazém do seu pai] e há vezes que venho para aqui e estou um dia inteiro em que não faço absolutamente nada e depois à noite vou para casa e fico a sentir-me horrível”, explica-nos, salientando que não se consegue forçar o processo criativo. Mas se há dias que não consegue produzir um único vídeo, outros saem espontaneamente de forma interessante.

Relativamente aos números, as estatísticas do seu canal diz que é a parte mais difícil da sua profissão, “porque às vezes vês vários comentários a pedirem-te que faças alguma coisa, fazes isso, e depois não se reflete nas visualizações”. Mas salienta que o deixa mais frustrado no que diz respeito aos números é o impacto que estes têm em vídeos futuros. “Da maneira como os algoritmos funcionam no momento, se tiver uma média de visualizações por vídeo de 10 mil, direcionado a um determinado nicho, ótimo, mas se quiser fazer um vídeo de um assunto completamente diferente, e esse vídeo tiver 500 visualizações. Isso vai ter impacto no próximo vídeo que fizer, mesmo que seja novamente do conteúdo habitual”.

Rui Modesto diz que isso é um problema muito sério no YouTube, e é o seu único problema com os números. Diz que faz vídeos sobre o que gosta, e mesmo que não sejam os mais esperados pela comunidade e se reflitam nos números, apenas tem receio no impacto depois no algoritmo. Diz que o seu escape é o jogo Final Fantasy XIV, um jogo que não tem o mesmo impacto no canal que os seus restantes títulos.

Mas considera que precisa de encontrar um balanço num mercado feito de altos e baixos. Quando está para sair um jogo, como o recente Monster Hunter Rise, sabe que o canal vai estar em alta, depois perde o interesse, e o canal volta a descer. “É algo que não vale a pena stressar muito, desde que dê para ir vivendo. Mas esta é uma atividade que eu não aconselho ninguém a largar os seus empregos e começar a fazer vídeos para o YouTube. É uma péssima ideia. Agora fazer os vídeos como um hobbie, mantendo o seu trabalho, a ver se a coisa pega, essa é a maneira correta de fazer”. Destaca que os números podem ser a coisa mais desmotivante para um criador.

O desafio de conciliar trabalho e família

O YouTube trouxe boas oportunidades a Rui Modesto, que diz ter mesmo trabalhado para outras empresas enquanto estava a fazer criação de conteúdo. Teve também oportunidades de patrocínio, embora não tenha aceite muitos, salientando que apenas se associa a marcas e produtos que achasse que as pessoas que o seguem iriam gostar. “Continuo muito seletivo nas escolhas e apenas aquelas que me interessam, e não que seriam apenas benéficas a nível financeiro”.

Um dos problemas que os criadores de conteúdos sentem é conciliar o trabalho com o tempo passado com a família e amigos, e isso não exceção para Rui Modesto. “Tenho muita dificuldade em conciliar porque é complicado dizer à família que tem de ficar a trabalhar até às 3 da manhã porque está a fazer uma colaboração com uma pessoa que está no Japão ou nos Estados Unidos, sendo algo difícil de explicar”.

Diz que tudo é à base de timing, visto que uma coisa é interessante no YouTube durante uma semana, e se não tirar partido da euforia em torno de um jogo, que é um tema quente, depois é tarde, os números vão descer. “É necessário capitalizar tudo isso, e portanto, nesse período é complicado estar com família e amigos, e quanto estás na indústria dos videojogos é difícil explicar aos teus pais que não podes aparecer porque estás a jogar um jogo até tarde”.

Acrescenta que como pai, essa conciliação ainda é mais difícil, ainda que agora já esteja melhor. “Mas há certas alturas em que começas a duvidar de ti mesmo e começas a pensar no que estás a fazer, e que devias era estar a passar mais tempo com os filhos, e a mente prega muitas partidas desse género”.

Por fim, o SAPO TEK pediu alguns conselhos a Rui Modesto a quem está a começar ou a querer fazer conteúdos para o YouTube. “Não aconselho a focarem-se apenas numa única plataforma. Nem que seja o Twitter, fazendo uma screenshot ou vídeo para o Twitter. O Instagram e TikTok como apoio também”. Por outro lado, não aconselha a saírem de uma situação financeira e profissional estável para se dedicarem ao YouTube. Salienta que muitos jovens só olham para o lado “jogar”, quando há todo o um trabalho de pesquisa, edição, aprender novos softwares de edição e técnicas.