O impacto do jogo online nos problemas de adição é difícil de medir com precisão, mas a perceção generalizada de quem trabalha nesta área é que têm aumentado de forma significativa, até porque tem acontecido o mesmo com a oferta disponível e as formas de acesso. O smartphone deixou tudo a um clique de distância e isso também é válido para uma aposta num casino online, ou num site de apostas desportivas.

Pedro Hubert trabalha em adições aos jogos há mais de 20 anos, quando os problemas com o jogo cresciam nos casinos físicos, à volta das slot machines e dos jogos de roleta. Nos últimos anos, o psicólogo que fundou e dirige o Instituto de Apoio ao Jogador admite que o jogo online foi ocupando um espaço de relevo nos casos de adição. A “adição tem muito a ver com a intensidade da aposta” e a mecânica dos jogos online tem um grande apelo a esse nível.

A pandemia deu o mote para que muita gente tivesse o seu primeiro contacto com estes jogos, por diversão. Muitos ficaram-se pela diversão, noutros casos, os efeitos dessa exposição manifestam-se agora, com o aumento do número de pedidos de ajuda que duplicaram ou triplicaram desde então, admite o especialista.

Os dados do Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos mostram que no final de março existiam 3,68 milhões de registos em sites de jogos e apostas online, mais 20% que no mesmo período do ano passado. É um número que não basta para perceber com rigor quantos portugueses jogam online, mas ajuda. É preciso ter em conta que cada jogador pode estar registado em mais do que uma plataforma, mas também que muitos jogadores podem apostar apenas em sites não licenciados, que não entram nestas contas, e onde ainda ficam quase metade das apostas online feitas em Portugal.

Mas há outros indicadores. Também no fim de março, mais de 166 mil pessoas tinham ativos pedidos para se manterem excluídas dos sites de jogos e apostas online. “Se tivermos em conta que nos jogos a dinheiro um adito afeta uma média de cinco pessoas à sua volta, percebe-se a dimensão do problema”, sublinha Pedro Hubert.

Os principais grupos de risco no jogo são hoje os jovens e os seniores, pela amostra que chega ao IAJ, na esmagadora maioria homens (80%). Os números apurados pelo SICAD também apontam holofotes aos mais jovens. Não chegam para demonstrar categoricamente que a legalização e o consequente acesso facilitado e mais publicitado ao jogo online fez aumentar os problemas com o jogo, mas mostram que foi a partir da mesma altura que o número de pessoas com uma relação problemática com o jogo começou a aumentar. Nos jovens é onde essa evolução é mais notória.

SICAD - jogo online em jovens 18 anos (2021)
SICAD - jogo online em jovens 18 anos (2021) créditos: SICAD

Em 2012, 0,6% da população tinha problemas com o jogo ou patologia associada. Em 2017 (dois anos depois da legalização do jogo online) esse indicador subiu para 1,8%, no universo global da população entrevistada, com idades entre os 15 e os 74 anos.

“O último estudo não mostra um aumento da problemática. Mostra que se mantém [estável o número de portugueses que jogam], o que existe é uma prevalência maior de problemas com jogo entre os 25 e os 34”, como destaca Manuel Cardoso, subdiretor geral do SICAD. Quatro por centro dos inquiridos nesta faixa etária tem problemas de jogo, 1% dos casos são muito graves (patológicos).

Nos inquéritos que o Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências faz todos os anos aos jovens que participam no Dia da Defesa Nacional também se nota uma evolução. “Há um aumento desde 2015, dos 53 para os 60%, nos jovens que jogam online, mas aquilo que é a preocupação maior está na prática de jogos online a dinheiro, que passou de 15,8% para 18,3%, em 2021”.

Videojogos: utilização abusiva também está a aumentar

Um universo mais difícil de caracterizar é o do jogo problemático ou patológico associado aos videojogos, mas o facto é que ao Instituto de Apoio ao Jogador chegam também cada vez mais casos, associados tanto à utilização de jogos de tiros como de role play games. “Há muitos universitários a jogar 9 ou 10 horas por dia”, alerta Pedro Hubert.

Fazer a fotografia geral do problema, no entanto, “é difícil, não havendo ainda instrumentos de medida para ver quando é patologia e perceber quando começa a ser problemático”, admite Manuel Cardoso. “Ainda não temos um instrumento de medida, como temos para o álcool ou para as ilícitas, que aplicamos na população geral e se ultrapassar determinados valores conseguimos perceber que há um problema”, explica o responsável.

O caminho está a ser feito e o SICAD tem vindo a acrescentar questões aos inquéritos que faz, sobretudo junto dos jovens, para criar o tal modelo de referência para a análise do que fazemos online e como fazemos.

A atuação do serviço dirigido por João Goulão nesta área do jogo tem no entanto sido limitada por um vazio legal, prestes a ser ultrapassado. Foi promulgado pelo Presidente da República no início de setembro, o diploma que prevê converter o SICAD no Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências. Espera-se que daqui saia um reforço da capacidade de resposta e combate aos comportamentos aditivos, voltando a juntar num mesmo organismo as atribuições de planeamento, coordenação e intervenção no terreno.

A mudança amplia as atribuições do organismo, em áreas de intervenção como o jogo. "O diploma das estruturas de coordenação, que define as atribuições do diretor nacional, é só para o álcool e drogas.[Hoje], a direção-geral tem competência, mas o diretor nacional, que é por inerência o coordenador nacional, não tem", explica Manuel Cardoso. Na prática, isso traduz-se em constrangimentos na articulação com outras entidades, no acesso a dados e, consequentemente, no planeamento de estratégias e concretização de ações concretas.

Enquanto isso, no terreno aumentam os pedidos de ajuda. Entre 2021 e 2022, aumentou em 100, o número de pessoas em tratamento para problemas de jogo, segundo dados também fornecidos pelo SICAD. Há mais capacidade técnica nos serviços para identificar e lidar com este tipo de problemas hoje, mas a capacidade humana de resposta continua aquém do desejável. Não há por isso como saber quantas pessoas estariam em tratamento, se todas tivessem acesso fácil a um. “Ainda estamos na fase de precisar de alcançar capacidade para responder a todos os que nos procuram“, admite Manuel Cardoso.

Como e onde pedir ajuda?

Na alçada do SICAD estão dois recursos que fazem uma primeira ligação entre serviços públicos de apoio e tratamento e quem precisa. A Linha Vida (1414), que recebe e encaminha pedidos de ajuda todos os dias úteis. No site do serviço há também um espaço aberto a inscrições com pedidos de ajuda. O utilizador responde a um questionário e deixa um contacto, que será devolvido por uma unidade de saúde da área de residência.

“Quando sentirem que têm um problema não tentem resolver sozinhos, procurem ajuda” apela Pedro Hubert, sublinhando que a taxa de sucesso dos tratamentos é hoje elevada. O IAJ é outra via para pedir e receber ajuda, já no domínio da oferta privada, onde é possível encontrar também várias clínicas especializadas.

As comunidades de Jogadores Anónimos também têm um papel importante nesta equação e são usadas por muitos no suporte aos processos de tratamento e recuperação.

Nos casos de adição aos videojogos que chegam ao IAJ 95% dos pedidos são feitos pelos pais. Nos casos relacionados com uso abusivo de jogos a dinheiro há uma distribuição idêntica, entre o número de pedidos feitos pelos próprios e por familiares.

Os primeiros sinais de alerta, sublinham os especialistas, estão sempre na relação com o jogo e na interferência desta com outras relações e prazeres na vida dos jogadores. Uma primeira forma de avaliar esse nível de risco pode ser com a resposta ao questionário de autoavaliação para problemas de jogo, disponível no site do SRIJ.

Este artigo integra um especial que o SAPO TeK vai publicar ao longo da semana e que vai também abordar o peso do jogo online ilegal, as ferramentas de jogo responsável à disposição de quem joga e a visão de especialistas sobre sinais de alerta e formas de lidar com a exposição dos mais jovens aos ecrã.