Como em muitas outras realidades, os últimos meses de pandemia tiveram impacto na área dos serviços financeiros. Se por um lado 2020 foi o ano do digital, podendo dar vantagem às fintech, por outro resultou numa recessão geral da economia, com as respetivas consequências para todos os negócios.
O ano de 2021 começou, por isso, diferente e com novos desafios: neste momento as fintech “querem-se” mais maduras, com modelos de negócio já com provas dadas e, sobretudo, com grande foco na rentabilidade, apontou Hugo Oliveira, Head of Financial Services & Government da Capgemini Portugal, em entrevista ao SAPO TEK, comentando os resultados do mais recente “World FinTech Report 2021”
Da análise da Capgemini e da Efma sobressai igualmente o maior investimento dos bancos tradicionais no digital, assistindo-se à disponibilização de vários serviços e produtos neste formato ou mesmo a criação de marcas totalmente digitais para um subconjunto de produtos. Para o responsável da área de serviços financeiros da Capgemini Portugal, as novas estratefias não significam que o trabalho de transformação digital da banca esteja feito, mas denota que a mentalidade está na direção certa.
SAPO TeK: O que sobressai no Fin Tech Report 2021 estudo? Que maiores diferenças apontariam face aos dados do estudo anterior, do lado das fintechs e da banca “tradicional”?
Hugo Oliveira: No ano de 2021 o estudo revela-nos um mercado maduro, no qual já se assiste a alguma saturação e a uma maior dificuldade para novas fintechs surgirem com uma ideia de negócio inovadora na qual ainda não exista já algum player a operar.
A maior evidência deste facto ressalta da clara tendência de os investidores preferirem apostar em fintech mais maduras, com modelos de negócio já com provas dadas e, sobretudo, estando o mercado mais maduro, com grande foco na rentabilidade. Porém, o estudo sublinha que ainda há poucas fintech a apresentarem resultados operacionais positivos de forma recorrente, o que obviamente coloca desafios acrescidos no que diz respeito à captação de capital.
SAPO TeK:O mercado das fintech mudou no último ano com a pandemia ou só se adaptou? A nova realidade trouxe mais obstáculos ou mais vantagens às fintech?
Hugo Oliveira: Por um lado, 2020 foi o ano do digital e é certo que a maior parte das fintech estavam mais bem preparadas nesse aspeto, porque o seu negócio se alicerçava numa jornada de cliente totalmente digital e numa filosofia de “born digital”, ao contrário dos bancos.
No entanto, e por outro lado, foram também confrontadas com a recessão da economia e com os respetivos impactos nas instituições financeiras. Consequentemente, registaram não só um pior 'cost-to-income' a nível operacional, como um acréscimo substancial do nível de risco, quer de liquidez, quer, e sobretudo, de segurança (com os ciberataques a crescerem de forma exponencial). Deste modo viram-se confrontadas com a necessidade de constituir reservas adicionais de capital face aos planos de negócio originais, num cenário de menor “apetite” pelo risco por parte dos investidores.
Por seu turno, as fintech mais maduras e robustas, tiveram mais meios para acomodar o impacto da crise sanitária e viram na pandemia uma oportunidade de crescimento do seu negócio, enquanto as demais fintechs enfrentaram maiores dificuldades no contexto da pandemia.
SAPO TeK: Na vossa opinião, que oportunidades poderão estar mal aproveitadas ou a escapar às fintech?
Hugo Oliveira: A edição deste ano do estudo, revela que o grande desafio para as fintech é o caminho para a rentabilidade, dado que o mercado se começa a tornar mais maduro e a ser menos pautado pelo “sentimento” de start-up.
Nesta medida, o estudo sugere 4 passos para a evolução da fase atual, a da maturidade, para a fase seguinte, a da rentabilidade:
- a diversificação do portfólio das fintech, como forma de reter não só a sua base de clientes, mas também de transformarem clientes que apenas valorizam o preço, em clientes que valorizam produtos e serviços disponibilizados pelas fintech (e como tal, dispostos a pagar por isso);
- a orquestração de um ecossistema, ou a adesão a vários, como forma de fortalecer o portfólio, mas mais do que isso, como caminho para a transformação numa “one-stop-shop super app” para os clientes;
- a adaptação e a diferenciação dos pricing models aos da banca tradicional, com alternativas à tradicional comissão por transação ou produto;
- a expansão geográfica como forma de manter a fase de crescimento, conquistar novos mercados e, consequentemente, obter novas fontes de receitas.
SAPO TeK: No FintechReport 2021 também caraterizam o investimento dos bancos tradicionais no digital e parece-me que a relação com as fintech continua “difícil”. Vai mudar algum dia?
Hugo Oliveira: A função das fintech tem sido a de desafiar o status quo da banca. Mostrar outra forma de fazer banca e de fazer chegar os serviços financeiros aos clientes, colocando pressão nos modelos tradicionais que privilegiam os produtos em detrimento de modelos mais focados no Customer Experience e muito data-driven.
O mercado é igual para todos e tal como vão surgindo novos bancos (‘challengers’) em que não se levantam dificuldades de relacionamento, com as fintech, em teoria deveria seguir-se o mesmo princípio, mas as “regras do jogo” não são as mesmas. Alguns dos principais custos para os bancos são os associados ao cumprimento dos requisitos regulamentares, incluindo i) a manutenção das funções de controlo interno, ii) o cumprimento dos requisitos de liquidez e iii) a realização de auditorias externas, muitas vezes impostas pelos diversos supervisores, o que não se verifica tanto no caso das fintech.
No entanto, conforme as fintech vão crescendo, vemo-las cada vez mais a solicitarem licenças bancárias por forma a poderem prestar mais serviços aos seus clientes e a competirem com os bancos tradicionais. Por essa via, as fintech acabarão necessariamente por incorrer também nesses custos associados às atividades regulamentares.
Os próprios reguladores, a partir do momento em que a quota de mercado das fintech seja representativa, e considerando o eventual risco sistémico associado, também as quererão regular, pelo que será expectável que no médio/longo prazo deixe de existir esta disparidade, o que contribuirá para uma melhoria da relação entre as fintech e os bancos.
SAPO TeK: A pandemia criou igualmente vários obstáculos à banca tradicional. Sentem que o setor aproveitou a oportunidade para mudar mentalidades e transformar realmente os seus produtos e serviços? Os bancos estão a mudar?
Hugo Oliveira: O encerramento do atendimento presencial fez com que, claramente, o digital tenha sido uma prioridade e para os bancos que ainda não o tinham, a transformação digital passou definitivamente a estar no topo da agenda.
Temos vindo a assistir à disponibilização de vários serviços e produtos de forma totalmente digital, num ritmo claramente acelerado em 2020 e que continua em 2021. No entanto, isto não significa que o trabalho está feito. Longe disso. A mentalidade é que está na direção certa.
Será interessante sublinhar também outra tendência que se verifica na banca: em muitos casos, a estratégia passou pela criação de marcas totalmente digitais para um subconjunto dos seus produtos, que permitiu ultrapassar mais rapidamente as dificuldades de transformar o banco como um todo, e assim endereçar os segmentos de mercado que valorizam este tipo de banca. Existem poucos casos em Portugal, mas internacionalmente foi uma tendência bastante acentuada. As fintech tiveram uma enorme influência nesta “transformação”, porque elevaram muito as expectativas dos clientes e definiram novos standards para o sector financeiro.
SAPO TeK: No geral, quais os maiores desafios colocados ao setor financeiro neste momento?
Hugo Oliveira: Após as várias crises a que assistimos nos primeiros 20 anos do século XXI, ficou claro que os bancos têm de partir do pressuposto que devem estar sempre prontos para cenários VUCA (volatility, uncertainty, complexity, and ambiguity).
É necessário assegurar que as várias linhas de negócio são rentáveis, mas também sustentáveis e, ao mesmo tempo, que se encontram novas linhas de negócio.
A esse respeito, o banking 4.X, conforme mencionado no World Retail Banking Report 2021, produzido pela Capgemini e pela EFMA, surge como uma das formas de, mais facilmente, encontrar novas linhas de negócio com elevados índices de rentabilidade. Para que tal seja possível, o maior desafio é lidar com os sistemas legacy e conseguir converter os sistemas core em sistemas mais modernos, que potenciem arquiteturas mais ágeis e flexíveis, e dessa forma, usufruir mais facilmente das potencialidades oferecidas pelos ecossistemas criados pelo open banking.
SAPO TeK: Como antecipam a evolução do setor ao longo deste ano? O que é possível prever?
Hugo Oliveira: O setor continuará sob grande pressão para se transformar. Essa transformação envolve o assegurar que as expectativas dos seus clientes são cumpridas, que as suas operações são tão eficientes quanto possível, que estão a par com as das fintech, e ainda que operam tendo em conta a sustentabilidade e os princípios do ESG (Environmental, Social and Governance) - muito pressionados pelos eventos recentes e pelas gerações de consumidores mais jovens (Millennials e Geração Z), que já compõem uma fatia relevante do mercado.
Os bancos que não o fizerem estarão apenas a competir por preço, num mercado de consumidores cada vez mais exigentes e informados, e com as várias fintech a criarem alternativas bastante viáveis. Pelo que esta não será a estratégia que criará maior valor para os acionistas. A transformação digital continuará a ser o motor de muitas destas alterações, mas as competências não serão meramente de TI. As práticas de Service Design e UX/UI serão igualmente fundamentais na criação de jornadas de cliente apelativas, para que os bancos consigam criar diferenciação e, dessa forma, aumentem/ mantenham a sua base de clientes.
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