Carta aberta aos professores sobre Software Livre
Por Associação Ensino Livre(*)

Caro(a) professor(a),

Nas próximas semanas, as escolas e universidades portuguesas vão voltar a encher-se de vida. Os recreios, as salas de aulas, as salas dos alunos e de professores vão ser palco de encontros, reencontros e também de desencontros. Agora que se inicia um novo ano lectivo, queremos aproveitar esta ocasião para partilhar consigo algumas ideias sobre Software Livre e princípios associados.

Antes de mais, importa esclarecer o significado deste conceito. Entende-se por Software Livre o conjunto de programas de computador distribuídos mediante uma licença que respeite as seguintes quatro liberdades:

  • Liberdade 1: Liberdade de executar o programa para qualquer fim.
  • Liberdade 2: Liberdade de estudar como o programa funciona e de modificá-lo de forma a que possa corresponder às suas necessidades ou intenções.
  • Liberdade 3: Liberdade de redistribuir cópias, de modo a poder ajudar o próximo.
  • Liberdade 4: Liberdade de poder melhorar o programa e de tornar as suas melhorias públicas, para que toda a comunidade possa beneficiar.

Talvez se imponha concretizarmos com um exemplo, para clarificar. Entre os vários programas de computador disponibilizados pelo projecto OpenOffice.org (http://www.openoffice.org), encontramos um processador de texto, uma folha de cálculo e um programa para criação de apresentações.

Como são Software Livre, podemos utilizar estes programas para qualquer fim, instalá-los em qualquer local e tantas vezes quantas as que considerarmos necessárias sem que isso implique qualquer pagamento de licenças ou pedido de autorização.

Tratando-se de Software Livre, podemos instalar estes programas na universidade, na escola, na associação, em casa ou noutro local qualquer sem ter que pagar licenças nem incorrer em infracção!

Podemos fazer cópias destes programas e distribuí-las pela comunidade, pelos amigos, pelos alunos, encarregados de educação, colegas, etc. Se tivermos conhecimentos para tal, podemos modificá-los e adaptá-los às nossas necessidades e distribuir essas versões modificadas.

Mas qual será o impacto de utilizarmos Software Livre nas nossas escolas e universidades? A Associação Ensino Livre defende que a utilização de Software Livre nas escolas...

  • traz benefícios económicos para o sistema educativo e para todos nós;
  • permite criar e utilizar software mais diversificado e adequado à realidade e às necessidades dos professores e das instituições de ensino;
  • concretiza a aprendizagem de valores fundamentais para a vida em sociedade;
  • constitui uma forma de assegurar a prioridade das preocupações de índole pedagógica e científica e a independência do sistema de ensino relativamente às estratégias comerciais e económicas de empresas específicas;
  • permite preparar melhor os alunos e as escolas/universidades para o presente e para o futuro, promovendo a inovação e criatividade.

Acreditamos também na partilha de conteúdos educativos, na importância dos conteúdos abertos enquanto meio de construção de uma cultura de conhecimento acessível a todos e construída por todos.

Estamos seguros de que os passos cada vez mais visíveis neste campo que têm sido percorridos em Portugal e no Mundo constituem exemplo da grande relevância destes temas que vos apresentamos.


  1. Benefícios económicos para o sistema educativo

    As principais vantagens económicas da utilização de Software Livre são sustentadas por um facto inegável: a esmagadora maioria do Software Livre é distribuído de forma gratuita. Pelo contrário, a utilização de software proprietário nas escolas, isto é, software que não é distribuído de acordo com as quatro liberdades referidas acima (por exemplo, Microsoft Office), implica o pagamento de avultadas verbas para o seu licenciamento.

    Sugerimos a consulta dos dados relativos aos ajustes directos, disponibilizados pelo portal dos Contratos Públicos (http://base.gov.pt), ou através do motor de pesquisa desenvolvido pela Associação Nacional para o Software Livre (http://transparencia-pt.org), para construir uma noção mais completa e informada sobre o valor das quantias anualmente despendidas pela administração pública portuguesa em licenças de software proprietário,

    Acresce ainda que, mesmo quando as aplicações proprietárias são "oferecidas" às comunidades educativas, é necessária alguma cautela com eventuais custos menos visíveis: funcionalidades disponibilizadas mediante um pagamento adicional, necessidade de pagamento de novas licenças aquando da actualização para novas versões, custos com suporte técnico ou manutenção, impossibilidade de mudar para outro fornecedor devido ao lock-in de informação em formatos proprietários (i.e., informação que não pode ser aberta em mais nenhum programa a não ser o daquele fornecedor específico), etc.

    Não obstante o acima exposto, esta vantagem incontornável não é a mais importante ou significativa. A defesa da utilização de Software Livre radica em razões mais profundas do que o seu custo económico. Não é uma questão de preço, é uma questão de liberdade.

  2. Liberdade de modificar o software para responder às necessidades e criar novos desafios

    As licenças de Software Livre permitem que as aplicações possam ser modificadas e redistribuídas com essas mesmas modificações. Ou seja, qualquer professor ou aluno, se assim o desejarem e tiverem as competências ou a vontade de aprender necessárias, podem modificar a aplicação, introduzir melhorias ou adequá-la às suas necessidades, e distribuir as suas versões modificadas. Imagine um professor ou um grupo de professores que tem a vontade e as competências necessárias para traduzir para português uma aplicação que só existe em língua inglesa ou desenvolver novas funcionalidades para uma aplicação já existente. Se a aplicação for Software Livre não existe qualquer restrição, pagamento ou proibição.

    Mesmo que este não seja o seu caso pessoal, ou o da sua instituição de ensino, certamente compreende a importância da preservação desta liberdade. Por exemplo, a Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto adequou a distribuição de Software Livre Ubuntu para que contivesse o software adequado aos cursos leccionados na FEUP (http://linux.fe.up.pt/portal/distros/feuplive). Uma pesquisa rápida na página oficial da aplicação Moodle (http://moodle.org) revela inúmeros módulos e temas desenvolvidos por professores ou escolas que permitem expandir as funcionalidades ou modificar o aspecto da versão original.

  3. Valores fundamentais - solidariedade, partilha, trabalho, colaboração

    As comunidades do Software Livre são bastante dinâmicas e funcionam assentes nos princípios da colaboração e dos contributos mútuos, envolvendo: pessoas que escrevem o código do programa, pessoas que fazem traduções para várias línguas, outras que se dedicam ao marketing e divulgação, outras ainda que escrevem tutoriais, utilizadores que relatam os problemas encontrados, utilizadores que partilham as criações efectuadas com os programas, etc. O modo de sobrevivência destas comunidades é o trabalho em equipa e a colaboração em massa. Por outras palavras, utilizar Software Livre também significa participar em comunidades espalhadas pelo globo construídas diariamente em torno de valores como a solidariedade, a partilha, a colaboração e a responsabilidade.

    Além disso, acontece frequentemente que as contribuições de um dado aluno e/ou professor são rapidamente disseminadas por todo o mundo e reconhecidas por um conjunto alargado de indivíduos. Este reconhecimento pelo contributo e trabalho desenvolvido eleva a confiança empreendedora dos alunos.

  4. Evitar a armadilha do lock-in

    Existem algumas armadilhas relacionadas com o vendor lock-in que talvez lhe sejam familiares. Por exemplo, quantos de nós já tivemos problemas a tentar partilhar com colegas ficheiros de texto, de imagem, com diapositivos de apresentações, com vídeos? Quantos de nós já optámos por não mudar de programa apenas porque perderíamos a possibilidade de aceder à informação entretanto produzida com o mesmo? Quantos de nós já fomos forçados a adquirir licenças para novas versões dos programas porque os mesmos deixaram de ser seguros ou funcionais? Todos estes problemas derivam do chamado vendor lock-in. Como não é possível estudar o código-fonte dos programas proprietários, modificá-los e partilhar as alterações, ficamos “presos” aos mesmos e à informação por eles criada. A utilização de Software Livre elimina ou atenua a maioria destes problemas.

    Em primeiro lugar, porque os programas livres são em geral compatíveis com normas abertas internacionais, permitindo a troca livre de informação. Para mais informação sobre este tópico, recomendamos a leitura de um manifesto e de um guia publicados pela Associação Ensino Livre (http://www.ensinolivre.pt/?q=node/144 e http://www.ensinolivre.pt/?q=node/148 - a actualizar em breve).

    Em segundo lugar, porque um fornecedor ou empresa não pode impôr a sua vontade e estratégia comercial sobre o programa livre que temos instalado. Por exemplo, se for descoberta uma falha ou erro grave de funcionamento num qualquer programa livre, existem várias soluções possíveis: confiar na capacidade da comunidade para resolver o problema; resolvermos por nós próprios ou colaborar com outros na solução; e, só por último, solicitar a ajuda de uma empresa. Repare que mesmo neste último caso, terá sempre a possibilidade de sondar várias empresas em busca daquela que presta o melhor serviço, por oposição ao que aconteceria se utilizasse um software proprietário. Porquê? Porque essas várias empresas podem estudar o código dos programas livres e podem modificá-lo, corrigi-lo e melhorá-lo. No caso do software proprietário, apenas a empresa detentora dos direitos sobre a aplicação tem permissão para introduzir melhorias ou correcções.

    Mesmo quando o Software Livre é desenvolvido tendo em vista objectivos comerciais, e existem imensos casos de sucesso económico construídos em torno do desenvolvimento de Software Livre ou de serviços a ele associados (i.e. formação, manutenção, etc.), o negócio não é assente em práticas ou políticas empresariais que restrinjam as liberdades do utilizador. O utilizador possui sempre a liberdade de instalar, copiar, analisar, estudar, modificar e redistribuir as aplicações. Para ter uma noção das empresas em Portugal que funcionam nestas condições, visite por exemplo a página da Associação Portuguesa de Empresas de Software Open Source (http://www.esop.pt).

    Em resumo, utilizar Software Livre significa não ficar sujeito à estratégia comercial e prioridades definidas por uma empresa específica. Significa não ficar sujeito às suas decisões relativamente a aspectos tão importantes como os custos financeiros de aquisição e de actualização das aplicações, o ritmo, direcção de evolução e desenvolvimento de novas funcionalidades e, até, o próprio prazo de vida da aplicação.

  5. Construção de competências adequadas ao mundo em que vivemos, de inovação e criatividade

    A cidadania plena na Sociedade em Rede implica a construção de competências relacionadas com o modo de funcionamento dos computadores e da Internet. Se a possibilidade de estudar, analisar e modificar o código-fonte das aplicações de Software Livre traz benefícios óbvios para quem pretende construir conhecimento na área da informática, não é menos verdade que as oportunidades de aprendizagem proporcionadas pelo Software Livre podem ultrapassar em muito o âmbito restrito da informática.

    Nos alicerces do panorama tecnológico actual encontramos eixos fortemente compostos por processos de mudança, diversidade e inovação. Neste contexto, é legítima a preocupação com o futuro dos alunos que constroem as suas competências em torno da utilização de um sistema operativo proprietário ou de um conjunto de ferramentas proprietárias. Em primeiro lugar, porque os produtos desta natureza obedecem primeiramente à estratégia comercial de uma empresa específica e terão a sua existência justificada apenas enquanto produtos economicamente viáveis. Em segundo lugar e não menos importante, porque, dada a existência de restrições de vária ordem (preço, monopólios, falta de interoperabilidade, etc.), os alunos/professores/instituições que o utilizam não são estimulados a uma cultura de mudança, de inovação, de experimentação, de melhoria das suas práticas, de criatividade, essenciais tanto na informática como em todos os sectores.

    Utilizar Software Livre significa abraçar um mundo composto por diversidade e inovação, implica processos de avaliação de alternativas, defende a liberdade de escolha. A opção pelo Software Livre traduz a valorização da construção de competências em Tecnologias da Informação e Comunicação em detrimento da valorização de competências de utilização de aplicações específicas vendidas por empresas específicas. Significa também a promoção de uma atitude face às TIC que favoreça a criatividade e a participação activa, a colaboração e o consumo crítico. Esta atitude irá reflectir-se positivamente nas competências de longo prazo dos nossos alunos, futuros profissionais.

  6. Em que estado estamos?

    Hoje em dia, são imensos os projectos de Software Livre mundialmente conhecidos e indispensáveis ao ecossistema das tecnologias da informação. Por exemplo, a maior parte dos servidores web, os computadores que nos apresentam as páginas na Internet, utiliza o Software Livre Apache. Para navegar nessas mesmas páginas, milhões de utilizadores utilizam o programa livre Mozilla Firefox. Para produzir documentos de escritório, podemos utilizar os programas fornecidos pelo projecto OpenOffice.org tal como fazem milhões de outros utilizadores e organizações. Os exemplos multiplicam-se e, para estas mesmas funcionalidades que acabámos de referir, existem dezenas de outras alternativas com qualidade. Para mais informações sobre programas livres, sugerimos uma visita ao sítio web da Associação Ensino Livre (http://www.ensinolivre.pt), a consulta do “Guia do Software Livre para Escolas, Alunos e Professores” (http://www.ensinolivre.pt/files/guiasoftwarelivrev11.pdf) ou uma passagem pelo SourceForge (http://sourceforge.net), um dos maiores repositórios de Software Livre.

    Actualmente, são já muitos os exemplos de escolas e outros organismos espalhados pelo mundo inteiro que mergulharam na utilização de Software Livre. A título meramente exemplificativo, pela sua magnitude e impacto educacional, mencionamos os casos da Junta Autónoma da Extremadura (http://lwn.net/Articles/193402/), do Brasil (http://www.softwarelivre.gov.br/noticias/meccomlinux/) e da Rússia (http://www.ensinolivre.pt/?q=node/180).

  7. Conteúdos abertos

    Gostaríamos de terminar esta carta referindo ainda um outro tema que é muito caro ao movimento do Software Livre e que achamos da maior pertinência referir no início deste novo ano lectivo: os conteúdos abertos. Designam-se por conteúdos abertos aqueles conteúdos que são construídos e disponibilizados respeitando em grande medida as quatro liberdades associadas ao Software Livre. Para ilustrar o conceito, usaremos como exemplo o trabalho produzido pelo Consórcio OpenCourseWare, entidade internacional que agrega reputadas instituições de ensino e investigação (http://www.ocwconsortium.org/members/consortium-members.html). Os membros deste Consórcio partilham materiais educacionais que podem ser usados, adaptados e partilhados por qualquer pessoa com restrições mínimas. Estas restrições são estabelecidas por licenças do tipo Creative Commons (http://creativecommons.org) e podem obrigar a redistribuir o material adaptado mediante a mesma licença, a dar crédito ao autor original do trabalho, a uma utilização não-comercial, etc.

    Para avaliar correctamente o potencial impacto educacional de iniciativas deste género, imagine que cinco universidades portuguesas decidiam publicar online os materiais de apoio de todos os seus cursos mediante licenças do tipo Creative Commons. Para além do óbvio reforço da sua presença online e prestígio, estas instituições estariam a permitir que professores de todo o país, de todos os níveis de ensino e áreas, pudessem ter acesso a esses materiais. Os professores poderiam então adaptá-los às suas necessidades específicas, melhorá-los e redistribuir as melhorias, divulgá-los nas suas aulas. Alunos e professores teriam assim acesso a um recurso valiosíssimo, como aliás já acontece com os conteúdos em língua inglesa disponibilizados pelos membros do OpenCourseWare e de tantos outros projectos internacionais similares.

    Se se identifica com os princípios associados aos conteúdos abertos, deixamos aqui o desafio: este ano lectivo, partilhe os seus materiais educacionais mediante uma licença Creative Commons.

Para alguns professores, esta carta foi como um reencontro entre amigos que já se conhecem. Para outros, terá sido uma novidade ou descoberta que, espera-se, possa ser o início de uma nova amizade.

A todos, desejamos um ano lectivo recheado de boas novidades e de muito sucesso profissional.

(*) Esta carta foi originalmente publicada no site da Associação Ensino Livre

Nota da Redacção: Foi feita uma correcção à designação do nome da associação, que em algumas referências aparecia escrita de forma incorrecta.