Opinião: O Dilema do Espectador

Por Pedro Alves *

Inúmeros filmes se debruçaram sobre o dilema de alguém que, após algum acontecimento terrível, descobre que toda a gente morreu e se encontra completamente sozinho num mundo inóspito e devastado.

Ainda que a causa possa ser tão imaginativa quanto uma pandemia global ou um ataque de zombies, o mais fascinante nesses enredos é assistir à impotência de alguém para agir perante uma situação da qual lhe falta a mais crucial das informações: "será ela a única pessoa viva?"

Muitas vezes, a única réstia de presença humana provém de uma emissão de rádio ou televisão que sobrevive, ainda que sem ninguém por trás do microfone, transmitindo em loop uma última mensagem de aviso. Esse comunicado pode incluir instruções para os sobreviventes se deslocarem para certo local, onde supostamente estarão a salvo.

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A ironia reside no facto de tal informação absolutamente crucial (pode ser a única hipótese de sobrevivência) perder todo o seu valor por não termos qualquer maneira de saber se mais alguém a estará a ouvir/ver. Até que ponto irá o personagem irá arriscar a deslocar-se ao local nestas condições?

Vem isto a propósito das recentes negociações entre os partidos sobre o formato a adoptar para os debates televisivos e, acima de tudo, da importância que esses mesmos partidos reconhecem ao canal televisivo como forma de esclarecimento e apoio à decisão do voto.

Sem dúvida que a televisão é actualmente um meio poderosíssimo para passar uma mensagem, quanto mais não seja pela vasta percentagem populacional que a ela tem acesso. Mas o espectador encontra-se perante um dilema semelhante, ainda que obviamente em muito menor grau, do sobrevivente solitário dos filmes apocalípticos: "quem mais estará a ouvir o debate e o que pensarão as restantes pessoas dele?"

É que sem esta informação, dificulta-se bastante a tomada de decisão. Felizmente, ao contrário dos filmes, não é complicado encontrar outras pessoas com quem comentar o debate, sejam elas da família, do local de trabalho ou do café da esquina. Porque o debate é o ponto de partida e é na discussão com os pares que formamos muitas vezes a nossa opinião.

Nos últimos anos, e pela primeira vez na história, a tomada de decisão está mais fácil porque se tornou mais fácil discutir. Os canais tradicionais (jornais, rádio e televisão) não conseguem ir além do esclarecimento pois o canal é unidireccional (neste caso, do político para o cidadão).

A Internet veio mudar isso tornando ubíqua e quase universalmente acessível a discussão entre qualquer conjunto de pessoas independentemente da sua localização geográfica. Permitiu que aplicações como o Twitter ou o Facebook dessem rosto à vasta massa anónima que constitui a audiência televisiva.

É como se de repente, as paredes entre todos os lares que estão a assistir ao debate se tornassem transparentes (ou translúcidas para os mais defensores do direito à intimidade) e a verborreia de comentários ecoasse pelos corredores do país. Sim, o ruído pode ser tremendo, mas da mais ruidosa discussão sai muitas vezes uma excelente ideia.

As ferramentas de conversação ainda têm muito que evoluir para este cenário se concretizar - por exemplo, uma rápida pesquisa no Twitter retornou apenas algumas centenas de comentários sobre o debate Sócrates-Portas de 2 de Setembro, muitos deles inócuos ou demasiado resumidos, fruto da limitação dos 140 caracteres por mensagem. Não existe contexto e é muito difícil acompanhar uma conversa. No entanto, isso não impediu que este fosse utilizado de forma relativamente eficaz em países cujo regime não-democrático empola extraordinariamente o dilema do espectador solitário.

No Irão ou na Moldávia não é possível discutir política no café ou no local de trabalho e, por isso, a sensação de isolamento toma outras proporções, justificando a massiva utilização das redes sociais para expôr grupos opositores ao regime, como se viu nas recentes eleições destes países.

Em Abril, largas centenas de tweets por hora marcados com um críptico pman, que não é o diminutivo de Pacman, mas sim de "Piata Marii Adunari Nationale", a maior praça da capital Moldava, mobilizaram milhares de jovens protestantes daquele país.

Durante os protestos no Irão, chegou-se a assistir a uma média de 800 tweets por minuto, criando um ruído tremendo com óbvias repercursões sociais e políticas (ainda que, verdade seja dita, a maioria fosse de utilizadores americanos).

Não podemos ignorar o efeito que esta avalanche de informação deve ter tido sobre pessoas que de repente viram os seus recalcados pensamentos amplificados por milhares de vozes que afinal sempre estiveram ali ao lado. E não podemos ignorar o efeito que, também nas sociedades democráticas, este canal poderá vir a ter quando a conversa se alargar e todos nós possamos tomar melhores decisões.

Não posso deixar de reflectir até que ponto os dilemas dos filmes de que falei no início não seriam resolvidos com uma simples ligação à Internet...

* Coordenador de projecto na Opensoft