TMI – Too much innovation
Por: Gustavo Homem (*)

Saí do escritório deixando os emails e rss feeds entregues à sua própria sorte. Entrei no café em frente para uns minutos exclusivos de galão e torrada. O menu aparece estático à minha esquerda em dois pequenos monitors TFT. Sim, estático. Sim, em dois monitores que assim o mostram o dia todo.

Do outro lado, pouco acima das cabeças dos empregados de balcão, um monitor de 50 polegadas apresenta nada menos do que 2 “rodapés” com headlines a passar em scroll rápido, uma secção com imagens de diversos pratos que vão alternando em crossfade e outra, a maior, a passar
notícias do mundo. Os clientes, em silêncio, observam sem reacção à medida que comem. À saída
escolho pastilhas elásticas na caixa de pagamento. As mais modernas disponíveis chamam-se CLIX
3D.

Entro no táxi que me levará à estação e logo por azar é um daqueles que já vêm com monitor. É
velho, ruidoso, tem a suspensão nas últimas e espirra fumo negro. Mas tem um monitor. Começa a
publicidade. “Não vale a pena desligá-lo que ele liga-se sozinho a seguir”.

Entrei no comboio onde não tenho tomada (porque viajo em 2ª) e um monitor exibe um programa a
que qualquer agência de rating de programas daria abaixo de B-. Fujo para o bar onde me espera
uma escolha difícil: cerveja quente, bolos gordurosos e sanduiches com maionese duvidosa.
Escolho uma água sem gás. A meio da água toca o telefone. Um antigo colega de curso está a
regressar de um congresso de Demografia onde, segundo afirma, se falou mais de inovação do que
de bebés.

TMI. Assim se chama o nosso problema de 3 letras. Com a obsessão da inovação, Portugal esqueceu-se de como fazer bem as coisas simples.

Queremos ter um TGV, mas aos cidadãos que sustentam a linha do Norte (umas das poucas
rentáveis segundo consta) vendemos cerveja quente e maus bolos. Queremos ter submarinos, mas
não conseguimos fazer contas de somar (creio que se soubéssemos não teríamos que pedir 10% a
mais todos os anos só para pagar a despesa do Estado). Queremos fibra óptica, mas deixamos rolos
de cabo “ao pendurão” nas melhores fachadas portuguesas. Queremos novo software que não raro
vem com velhos problemas. Queremos Segurança Social, mas não incentivamos os nascimentos.
Queremos qualidade, mas não a sabemos exigir. Queremos democracia, mas não votamos. E
queremos água quente em casa, mas o esquentador desliga-se a meio do banho.

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Agora o banho acabou. O esquentador desligou-se e ficámos molhados à espera com o sabão no
corpo. Da torneira sairá, com muita sorte, água morna. E grande parte da “inovação” que até agora
nos fascinou não nos será de todo útil. Talvez seja tempo de voltarmos às coisas simples: contas
certas, bons serviços, bens duradouros, produtos nacionais. Português, Inglês, Civismo e
Matemática. Mais musculatura e menos maquilhagem.

Dito por alguém ligado à tecnologia isto pode parecer incoerente. Não é. A própria tecnologia
precisa de encontrar um equilíbrio melhor entre a inovação e a estabilidade. A constante renovação
e obsolescência de produtos (por vezes com ciclos de meses e nenhum valor acrescentado) impede
que sobre estes assentem serviços estáveis. O moving target de alguns destes dificulta a certificação.

E há áreas de negócio que, para poderem inovar na sua especialidade, necessitam de estabilidade
tecnológica. A indústria evolui mantendo muitas vezes as mesmas falhas. A inovação por feature
count
deixou de lado a fiabilidade.

Ora, a boa inovação é a que simplifica, aperfeiçoa e dura: o Multibanco, as Lojas do Cidadão, o
Pordata, os serviços públicos online, o MBNET, as Normas Abertas no sistemas do Estado... são
inovações indiscutíveis, duradouras e, acima de tudo, com um propósito.

Vejamos um bom
exemplo: o Multibanco nacional assenta em computadores (nas máquinas ATM) sob qualquer
critério considerados mais que obsoletos e - aparte as crescentes situações de roubo por retroescavadora
- apresenta um uptime digno do nosso respeito e elogio. O Multibanco português tem
um conjunto de funcionalidades superior ao disponível em muitos outros países. Boa engenharia,
excelente uso da tecnologia. E o que dizer de sites como o http://transparencia-pt.org,
http://despesapublica.com e http://demo.cratica.org, que têm deixados os seus contrapontos oficiais
a comer pó?

Nas últimas eleições presidenciais o pivot José Alberto Carvalho (JAC) passou o serão de pescoço
curvado e braços contraídos a mexer no seu iPad. Isto, é claro, não sem antes informar os
telespectadores que tinha um iPad (não um tablet note-se, um iPad) que lhe permitia manipular a
informação projectada à sua frente. É ridículo promover o produto da moda daquela época num
programa de serviço público. Mas isso até parece coisa pouca comparado com o espantoso que é
prescindir de um operador na regie e dar cabo das costas a mexer num iPad para que todos vejamos
que em função disso a projecção se altera. JAC um pivot importante num momento importante, não
esteve disponível para o público porque esteve a operar o seu iPad. Nas mais recentes eleições
legislativas, João Adelino Faria da RTP imitou JAC na sua aparição anterior (“tenho aqui uma
táblete, concretamente um iPad”) enquanto JAC, quiçá ainda com torcicolos da noite presidencial,
preferiu usar um “monitor iPad gigante” onde sob pressão do seu indicador se alterava a imagem
doutro monitor... localizado às suas costas. Só visto. São daquelas inovações que valem tanto como
um penico em carbono, mas perdem bastante mais em usabilidade.

Não se pense, no entanto, que o iPad de JAC é o nosso problema. Este iPad é apenas o sintoma, tal
como os menus-de-pastelaria-em-TFT, os monitores de publicidade em táxis e os rolos de fibra “ao
pendurão”. O modernismo provinciano que nos invadiu é pródigo em exemplos onde o consumo
diverge dos interesses da nossa economia e a adopção da tecnologia só-porque-sim não faz de nós
cidadãos mais capazes. E se isto afecta profissionais de topo como JAC, em que medida afectará o
comum cidadão? Não se vê, comparativamente, o mesmo entusiasmo na adopção de conhecimentos
de Economia ou Política, que em tanto afectam o nosso bem estar em todos os prazos. Pelo
contrário. São assuntos que, contrariamente ao que seria útil, cada vez nos interessam menos.

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Resta-nos, pois, resolver isto: se a Portugal a Sociedade da Informação chegou em força, estamos
ainda longe, muitíssimo longe, da Sociedade do Conhecimento. Que espécie de inovação nos levará
até lá?

(*) director técnico da Angulo Sólido