A ideia foi defendida por Cédric Manara, Copyright Counsel da Google, que esteve em Lisboa como orador no curso de Inteligência Artificial de PLMJ, onde estão a ser abordados diversos aspetos da evolução da tecnologia na relação com o direito.

A sessão foi focada na convivência entre a Inteligência Artificial (IA) e a propriedade intelectual, e Cédric Manara mostrou com exemplos práticos da Google a forma como a empresa está a aplicar a tecnologia de machine learning desde 1998, e como tem evoluído para se ajustar aos enquadramentos legais e às exigências da indústria que quer proteger os direitos das suas obras.

A verificação do conteúdo ilegal na internet e o combate aos conteúdos relacionados com abuso de crianças online são dois dos casos de utilização de tecnologia de identificação de conteúdos, mas com taxas de sucesso diferentes e contextos diferenciados. O Copyright Counsel da Google lembra que o trabalho feito na área de combate à exploração sexual das crianças não pode ser comparado ao dos conteúdos ilegais, porque neste caso há muitas situações diferentes, que têm de ser avaliadas.

“Quem tem direitos sobre uma determinada obra? Não há uma base de dados unificada e uma forma de verificar”, explica Cédric Manara. “Há situações em que não se sabe quem é dono de quê, como uma situação que foi estudada em que duas pessoas captaram a mesma fotografia, no mesmo local e no mesmo milissegundo […] não podemos esperar que e tecnologia resolva todos os assuntos”, sublinha.

O YouTube está a aplicar há mais de 10 anos uma tecnologia de Content ID para identificar violação de direitos de autor nos vídeos, e algumas organizações, como a Disney, são bastante determinadas em impedir qualquer tipo de utilização abusiva das suas imagens. “O Content ID foi uma solução de mercado para um problema empresarial. Desenvolvemos uma ferramenta que servia os interesses da indústria e que é baseada no reconhecimento de imagens, comparando vídeos”, refere. Mas esta ferramenta pode ser ajustada aos interesses, em termos de tempo de utilização, tipo de uso e até restrições geográficas.

Mesmo assim, Cédric Manara reconhece que esta tecnologia tem limites, até porque é um jogo do gato e do rato com os utilizadores que estão sempre a testar e a descobrir novas formas de contornar os sistema de reconhecimento aplicados pelo YouTube. “Temos utilizadores a jogar sempre com os limites. Cortam o filme em algum ponto, aceleram a imagem, apresentam ecrãs dentro de ecrãs, ou usam o efeito de halo, mas estamos sempre a avançar e o machine learning ajuda”, afirma.

E onde entra a Inteligência Artificial nisto? Cédric Manara lembra que a tecnologia e as máquinas não resolvem tudo. “O reconhecimento funciona, é eficiente mas não é perfeito. Há limites”, refere, explicando que é difícil ensinar uma máquina a perceber um contexto, uma paródia, onde a utilização de uma obra protegida é aceitável no “fair use” do copyright.

“Temos 10 anos de experiência em tecnologia de reconhecimento de conteúdos e ainda temos desafios. Vemos isso todos os dias em que testamos os limites de reconhecimento de conteúdo”, admite. “As máquinas são estúpidas, fazem o que lhes dizem e o campo de direito de autor é complexo decidir o que é certo”, justifica ainda.

Mas mais do que a própria tecnologia, Cédric Manara está preocupado também com o enquadramento legal, e a forma como as restrições ao direito de autor podem afetar o desenvolvimento da inteligência artificial.

Nos Estados Unidos o ambiente é favorável, admitindo o fair use das obras protegidas para âmbitos de investigação, o que tem permitido desenvolvimentos importantes, mas o executivo da Google diz que na Europa as medidas de proteção são mais restritivas e que isso pode impedir que as empresas e investigadores no espaço europeu consigam acompanhar esta evolução.

“É fácil fazer machine learning, há ferramentas open source, é barato e temos informação à mão, mas pode gerar problemas de copyright aos investigadores”, explica. Para Cédric Manara a falta de acesso a obras recentes pode levar a que os investigadores “ensinem” os sistemas de inteligência artificial só com dados que já estão em domínio público, e que são antigos, provocado por isso engano nesta aprendizagem.

Para o executivo da Google, a legislação europeia está a tratar os dados processados como material de copyright e isso impede inovação. Cédric Manara lembra que a nova diretiva que está a ser preparada tem uma clausula de exceção para as organizações não comerciais, mas questiona se esta é a política certa e se é a forma de encorajar as startups, referindo mesmo que quem quiser mesmo desenvolver inovação nesta área o melhor é mudar-se para os Estados Unidos, onde a política de fair use protege os investigadores.

Manuel Lopes Rocha, Partner de PLMJ e responsável pelo desenvolvimento deste curso, admite que Cédric Manara se referia às leis europeias de direito de autor, que comparativamente com a legislação norte americana são mais rígidas. “Na generalidade, as leis dos EUA, no que respeita à Propriedade Intelectual, são mais “industry friendly”. Há, até, aquela graça que diz que  a cada inovação, nos EUA se faz um negócio, enquanto na Europa se faz uma lei. Como todos os exageros, tem um fundo de verdade…”, explicou ao SAPO TEK.

O advogado especializado em direito de autor afirma que a IA é o grande desafio também na área legal. “Há quem diga que é o maior desafio para o Homo Sapiens desde a invenção do fogo. Desde logo vai ter um impacto significativo nas profissões jurídicas, modificando muito a forma de trabalhar, de decidir, de contratar”, justifica. E a este soma-se também o “enorme desafio do blockchain, não só nas criptomoedas, mas em tudo, incluindo a gestão do Direito de Autor”, para além da questão da personalidade jurídica dos robots.

Mesmo assim não acredita que possa existir nos próximos tempos um quadro regulador global. “Códigos éticos, sim, começam a proliferar e a ser vivamente aconselhados. Um quadro regulador global, tenho grandes dúvidas que seja possível nos próximos tempos. E, atenção, que o pano de fundo é a luta tremenda entre os EUA e a China pela liderança nesta área. A Europa conta pouco, apesar dos esforços consideráveis do Presidente Macron. O resto está à vista”, afirma.