Os casos de partilha de fotografias e vídeos de abuso sexual de crianças e jovens multiplicam-se, e as imagens correm muitas vezes por vários canais na internet, na dark web mas também nos sites na “clear web” e em grupos de mensagens instantâneas, antes de serem apagadas. Algumas vão continuar a ser partilhadas online, apesar dos esforços das autoridades e de várias entidades que lutam contra os conteúdos ilegais na internet, com danos permanentes para jovens e crianças abusados.
Ricardo Estrela admitiu ao SAPO TEK que este é o tipo de crime online que mais o preocupa no dia a dia de casos que chegam à Linha Internet Segura. A linha, que é coordenada pela APAV desde 2019, tem duas vertentes de atuação, com um apoio telefónico à população e vítimas de cibercrime e uma vertente de hotline, que faz parte do consórcio internacional InHope.
Em 2022 foram analisados mais de 800 casos na hotline, sendo que 611 eram referentes a conteúdos de abuso sexual de menores e 190 foram classificados como discurso de ódio. O número de imagens categorizadas como conteúdos de abuso sexual de menores foi de 878.
“Estamos a viver um período em que existem uma grande disseminação e partilha de conteúdos de abuso sexual”, alerta o coordenador da Linha Internet Segura, dizendo que esta partilha “é fácil demais devido à gravidade”.
A partilha das imagens e vídeos em grupos de serviços de mensagens, em especial o Telegram, é uma das situações apontadas como mais complexas.
Sempre que um conteúdo ilegal é identificado, a Linha Internet Segura tem vários instrumentos para agir, em ligação com as autoridades como a Polícia Judiciária, com quem existe um memorando de entendimento que conta com regras definidas nas denúncias, mas também através da rede InHope, uma plataforma internacional.
Ricardo Estrela explica que a primeira abordagem é determinar a origem do conteúdo, e perceber se está ou não alojado em Portugal. Se estiver é encaminhado à PJ com todos os detalhes, se não é preciso referenciar o país onde o conteúdo está alojado para que o site seja desligado ou bloqueado, o que permite às autoridades manterem o acesso à informação.
Apesar do número de imagens categorizadas como conteúdo de abuso sexual de menores pela Linha Internet Segura, a maioria dos casos não tem conteúdo alojado em Portugal, mas existem situações onde se verifica que as vítimas menores são de origem brasileira e por isso a articulação é feita com as autoridades do país.
Muitas das plataformas online, como a Google, a Meta (que é dona do Facebook, Instagram e Messenger) ou o TikTok, e plataformas de alojamento, conhecem o trabalho da Linha Internet Segura e dos seus parceiros internacionais e facilitam o acesso a programas de “trusted flagger” que garante maior eficácia na denúncia. A principal dificuldade está na ligação ao Telegram, “Existem formulários de reporte e denúncia, mas a minha experiência desde 2019, e em especial desde 2020 quando muitas atividade passaram para o Telegram, nunca foi dado feedback”, justifica Ricardo Estrela.
Maioria das vítimas são mulheres, 30% com idades até aos 17 anos
Durante o ano de 2022 a APAV respondeu, na Linha Internet Segura, a 1.236 processos de atendimento e apoio. O maior número de casos, 100, dizem respeito a burlas, seguindo-se o sextortion, em que são usados conteúdos sexuais para ameaçar as vítimas e extorquir dinheiro. 40 dos casos dizem respeito a furto de identidade, 27 a gravação e fotografias ilícitas e 24 a violência doméstica.
A indicação é que cada vítima pode ser alvo de mais do que um tipo de crime, mas a Linha Internet Segura tipifica também o Perfil da Vítima, sendo que 46,9% são do sexo feminino, e que a idade de quem procura o apoio ou da vítima varia entre os menores de 10 anos e maiores de 65 anos.
Mais de 30% são menores de idade, com menos de 17 anos, mas a maior prevalência está na faixa etária dos 18 aos 24 anos. Nas restantes faixas etárias a distribuição é semelhante do número de vítimas que procuraram apoio e atendimento, o que também se pode dever aos casos de burlas registados, e em especial de burlas românticas, que no último ano foram direcionadas sobretudo a mulheres com mais de 35 anos, em esquemas de crime organizado através de redes sociais.
Danos na saúde mental de quem trabalha nesta área
A necessidade de analisar as imagens e vídeos tem um impacto também nos técnicos de apoio à vítima. Ricardo Estrela admite que é um trabalho difícil, mas tem sempre de existir quem faz a análise dos conteúdos e das situações, sendo que nestes casos o elemento visual acaba por ter um efeito mais grave no que diz respeito à saúde mental.
“Lidamos com o pior do pior que se pode encontrar online e volta e meia conseguimos ser surpreendidos com o grau de crueldade que certas situações trazem”, confessa.
Existem várias estratégias que são adotadas, e na APAV há apoio de psicólogos aos técnicos da associação. Os dois técnicos que trabalham na linha reservam tempo específico para esta análise, que é sempre feita em conjunto, e por vezes é preciso tirar tempo para compartimentar a situação. Mas é preciso também ter um sentido de missão.
“Tem de sentir que o bom que está a fazer supera a dificuldade do trabalho, com sentido de missão, que está a ajudar que sejam investigadas situações que podem tirar crianças e jovens de situações de perigo em que se encontram”, reconhece.
Os impactos estão identificados também em técnicos de outras organizações internacionais e podem não se revelar de forma linear. Ricardo Estrela diz que é o trauma vicariante e que pode só manifestar-se perante uma mudança, como por exemplo quando os técnicos têm filhos.
Ricardo Estrela tem 33 anos e começou como voluntário da APAV em 2016, tornando-se técnico de apoio à vítima em 2017. Com formação na área jurídica, é coordenador da Linha Internet Segura e admite que estar à frente do projeto foi também uma oportunidade de começar a estudar mais cedo as situações que surgem no digital, e que cada vez se interligam mais com outros casos a que a Associação de Apoio à Vitima tem de responder.
“Esta questão é transversal em todas as situações de crimes que se ligam com pessoas. Mesmo nos casos tradicionais de violência doméstica começaram a ganhar peso do digital, com uso de violência sexual e recurso a imagens e a redes sociais e mensagens”, explica.
“Já se nota muito na APAV essa dissolução entre práticas criminais no mundo offline e que continuam no online”, alerta, referindo as questões de violência sexual baseada em imagens, cyberbullying . “Uma das grandes preocupações que temos é de tentar dotar as pessoas de ferramentas para que diminuam a exposição a essas situações”, explica Ricardo Estrela.
A Linha Internet Segura quer que as pessoas se sintam à vontade para recorrer ao apoio da APAV, de forma anónima, e tem acesso a plataformas e ferramentas que ajudam a bloquear a partilha e divulgação de imagens, como o STOP NCII (Parar a partilha de imagens intimas partilhadas sem consentimento). Nesta plataforma é criada uma impressão digital da imagem que faz com que sejam bloqueadas as tentativas de upload, o que minimiza a exposição das vítimas.
O coordenador da Linha Internet Segura tem também expectativas positivas em relação à legislação que está em desenvolvimento na Europa, e em especial a Lei dos Serviços Digitais, pela responsabilização das plataformas em relação aos relatórios de transparência, que vão permitir perceber melhor as ameaças e os mecanismos que estão a ser usados para minimizar as situações de risco.
Nos planos está a continuação do trabalho de apoio e de sensibilização para os riscos, que é feito com o Centro Internet Segura e o Centro Nacional de Cibersegurança, e ainda o desenvolvimento de novas formas de comunicação que possam ser mais próximas dos jovens.
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