Procurando contrariar o estigma de que futebol é para homens, o mesmo para as competições de FIFA nas consolas, Raquel Martinho é atualmente o principal nome no panorama feminino. Veste a camisola do Rio Ave nas competições de FIFA e é bicampeã nacional da modalidade e ainda amealhou a W Masters Champion 2022. Um currículo muito invejável, considerando que joga FIFA competitivo apenas desde 2020, quando tomou o primeiro contacto com o jogo.
Ainda assim, a sua carreira em FIFA é considerada como um hobby, porque a nível nacional, o futebol virtual feminino ainda está a dar os primeiros passos. Com 29 anos, Raquel Martinho é uma bióloga de formação e completou recentemente o doutoramento em ciências biomédicas. E é essa a sua atividade profissional, dá aulas práticas no Instituto de Ciências Biométricas Abel Salazar no Porto.
Dependendo da sua carga horária, a atleta de eSports diz que tenta sempre treinar pelo menos uma ou duas horas por dia, ou mesmo que seja meia hora, “para não perder a agilidade do controlo manual”. Afirma que se tiver uma semana sem jogar, a sua performance diminui. “Mas quando tenho tempo meto quatro ou cinco horas seguidas”, referindo que atualmente um profissional de FIFA tem um horário praticamente laboral, treinando entre seis a oito horas por dia.
Ainda assim, mesmo sendo considerado um hobby, Raquel Martinho lida com a atividade desportiva como se fosse um trabalho e investe todo o tempo que tem nos treinos, referindo que foi por isso que os resultados e as conquistas apareceram.
Traçando o percurso da sua carreira nas competições, a atleta diz que começou a jogar desde pequena no Game Boy Color, sendo o seu jogo de eleição o Pokémon. Já o seu primeiro contacto com jogo de futebol da EA Sports foi FIFA 2008 na PSP. Refere que quando cresceu não teve oportunidade de ter uma PlayStation, apenas quando começou a trabalhar e por isso, considera que o FIFA 2020 foi o primeiro jogo competitivo. “Na altura foi feito o primeiro torneio de FIFA feminino e como tinha descoberto o jogo decidi participar, porque não tinha nada a perder”. Fez um tweet a pedir ajuda para treinar para o jogo e o team manager da Grow Up eSports apoiou-a, levando-a mesmo a ingressar na organização, sendo o seu primeiro emblema.
Antes não existia um cenário feminino, mas a partir de 2021, a FPF eSports criou um torneio oficial para mulheres e desde então tem evoluído. E considera que o panorama português de FIFA feminino é dos melhores a nível mundial, porque já existem competições promovidas pela Federação. Este ano vão haver competições oficiais de 1 para 1 e em pares, sendo consideradas as primeiras do mundo. Afirma que a liga portuguesa, por ter o peso da Federação Nacional de Futebol como background, é única no mundo. Em comparação a outras ligas, em Espanha só existe uma equipa feminina e que na liga italiana, e outras, as competições são abertas a ambos os sexos.
Raquel Martinho considera que existe maior abertura por parte da editora do videojogo e a própria FIFA no apoio ao futebol virtual feminino, que desde o ano passado tem organizado torneios exclusivos. Apesar de haver uma percentagem pequena a jogar o jogo, as entidades veem como uma oportunidade para chamar mulheres às competições e ao título. Aponta também que a importância da inclusão também ajudou a aumentar número de mulheres.
O SAPO TEK questionou à atleta se fazia sentido haver uma separação, no virtual, entre o futebol masculino e feminino. Para Raquel Martinho, as organizações estão abertas a toda a gente. A questão passa pelo investimento que os clubes fazem, normalmente direcionada a homens. Diz que em Portugal apenas o Benfica tem uma jogadora profissional, a Diana, porque é um clube com mais orçamento.
“As equipas não têm orçamento para investir nas mulheres”, destacando que quando isso acontece, os resultados aparecem, dando o exemplo de uma jogadora brasileira e outra alemã que conseguiram qualificar-se para as competições principais.
Mas aponta sobretudo aos valores monetários dos prémios dos torneios serem baixos e pouco chamativos para incentivarem as equipas a investirem nas mulheres. A questão de não haver equipas mistas prende-se sobretudo porque as mulheres não têm ainda nível para jogar contra os homens. E por isso acha muito importante que se continuem a realizar torneios femininos, para que haja contacto e visibilidade e mostrar que pode haver nível para competir contra os homens.
Afirma que o futebol feminino ainda vai no início, mas compara com a altura em que o português Francisco Quinzas foi campeão do mundo, em 2011, o masculino também tinha começado há pouco e era bem amador. “Em Portugal existem cerca de 1.000 jogadores masculinos, enquanto que apenas umas 20 ou 30 mulheres jogam”, salientando que é importante haver mais clubes a apostar no feminino, embora haja cada vez mais investimento. Por outro lado, é necessário encontrar o talento, afirmando que são poucas, para já, as mulheres que conseguem competir com os homens, mas acredita que essa fronteira vai deixar de existir daqui em poucos anos.
No seu pensamento, embora não existam competições mistas, considera que os clubes deveriam ser obrigados a ter equipas femininas, de forma a promover essa coesão. Dá o exemplo do seu clube, o Rio Ave, que tem ambas as equipas e todos treinam, uns com os outros, homens e mulheres. Não acredita que exista exclusão, mas sim falta de mais mulheres no contexto competitivo de FIFA.
"Em Portugal existem cerca de 1.000 jogadores masculinos, enquanto que apenas umas 20 ou 30 mulheres jogam."
Questionada se teve oportunidade de jogar e ganhar contra algum dos nomes mais populares de FIFA nacional, salienta que num torneio competitivo ganhou 1-0 a um jogador Pro. E tem a certeza que no online, pelos nomes dos adversários, também já venceu a homens. E muitas vezes recebe mensagens dos adversários, que não sabem que jogaram contra uma mulher.
Com quase 30 anos, Raquel Martinho diz que já não tem a mesma frescura física que os mais jovens, mas enquanto tiver capacidade vai continuar a treinar e a competir. Afirma que tem, sobretudo, um grande papel na comunidade, que pelo seu currículo acaba por uma embaixadora para captar mais jogadores. E diz que o faz de forma proactiva.
Sobre as questões de eventuais assédios por ser mulher, diz que sentiu mais quando fazia streams em 2020. Agora não sente muito, pelo contrário, recebe elogios dos homens, afirmando que nos últimos anos as mentalidades mudaram bastante, sobretudo quando joga online. Afirma que colegas no Reino Unido, por estarem mais expostas a redes sociais como o TikTok, que recebem comentários machistas. Ainda assim, chegou a receber comentários menos próprios, tais como “vai para a cozinha”.
Atualmente, apesar de ainda haver comentários machistas, no geral, a comunidade de FIFA já faz elogios quando joga contra uma mulher ou simplesmente não dizem nada. “As mulheres têm o mesmo direito de jogar”, remata.
Traçando uma análise ao panorama geral de FIFA em Portugal, acredita que haja mais investimento na modalidade no país. E olhando para o seu Rio Ave, acredita que o FIFA é visto com o mesmo respeito que o futebol. Tem uma estrutura dedicada, um treinador, um plantel masculino e feminino. Os treinos são semanais, com mais intensidade no caso de competições, mas aponta o mesmo profissionalismo que o futebol “real”. “Pode ser um jogo, mas para muitos jogadores é o seu trabalho, sejam os atletas que participam no competitivo ou o team manager”. Afirma que os treinos no clube são online, por uma questão de logística. Está no Porto, mas tem uma colega de equipa espanhola e outra no Algarve, juntando-se quando são organizados bootcamps do clube.
Com o doutoramento teve de cortar o seu tempo nas transmissões na Twitch para se dedicar às aulas e estudos. O tempo das streams ficou reservado para treinar, sem desviar a atenção que tem de dar à sua comunidade. No entanto afirma que é importante dar visibilidade à imagem, de ter redes sociais, para dar mostrar o jogador e a equipa. Dá o exemplo de como o jogador JOliveira10 consegue gerir tudo isso.
Sobre as suas referências no FIFA, não hesita a apontar o Tuga810 como o melhor jogador, mas também o RastaArtur, atletas que diz terem elevado a competição a outro nível. Acredita que no futebol feminino é considerada uma referência, devido aos títulos que venceu, mas destaca ainda a Clara e a Bruna do FCP e a Beatriz da Betclick Apogee. Por outro lado, aponta a Sílvia Santos, da Betclick Apogee, como uma das impulsionadoras do FIFA feminino. “A Sílvia está sempre pronta a ajudar, pena que não tem muito tempo para jogar, devido a responsabilidades profissionais”.
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