O Presidente da República pediu hoje ao Tribunal Constitucional a fiscalização sucessiva do artigo 6.º da Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital em vigor, tendo em conta o "importante debate público" sobre o seu conteúdo.
A decisão de Marcelo Rebelo de Sousa foi anunciada através de uma nota website oficial da Presidência da República. "O Presidente da República decidiu submeter a fiscalização sucessiva de constitucionalidade, o disposto no artigo 6º da Lei nº 27/2021, de 17 de maio, que aprovou a Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital", lê-se na nota hoje divulgada.
No requerimento enviado, Marcelo Rebelo de Sousa refere que a "jurisprudência recente do Tribunal Constitucional traduz uma preocupação cada vez mais marcada e estrita relativamente à necessidade de maior densificação e determinabilidade de conceitos com reflexos em matéria de direitos, liberdades e garantias".
Por outro lado, assinala que se desenvolveu "um importante debate público sobre o conteúdo e modalidades de aplicação das aludidas disposições da Lei nº 27/2021, de 17 de maio, debate com reflexo na própria Assembleia da República, que aprovara esta lei, por larguíssima maioria e sem votos contra, e também não tivesse sido até agora revogado – como chegou a estar proposto – ou alterado, o conteúdo do artigo 6º, que tinha gerado boa parte da controvérsia havida naquele debate".
O chefe de Estado solicita a fiscalização abstrata sucessiva das normas do artigo 6.º desta lei – que promulgou em 08 de maio e que entrou em vigor a meio deste mês – "por violação do direito à liberdade de expressão, previsto no artigo 37.º; do regime material dos direitos, liberdades e garantias, previsto no artigo 18.º; do princípio da proporcionalidade, decorrente do artigo 18.º; do princípio de Estado de direito, consagrado do artigo 2º; da reserva de lei parlamentar, prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 165º; todos da Constituição da República Portuguesa".
O Presidente da República escreve que, "de acordo com uma visão mais marcada e estrita, o disposto no artigo 6º, ao procurar definir o conceito de desinformação e ao estabelecer mecanismos para a sua eliminação, poderia restringir o conteúdo do direito à liberdade de expressão, previsto no artigo 37.º da Constituição".
Segundo o chefe de Estado, "na medida em que esta restrição se manifestasse excessiva ou infundada, sobretudo porque indeterminada, poderia mostrar-se violadora do regime material dos direitos, liberdades e garantias, previsto no artigo 18º, e do princípio da proporcionalidade dele decorrente".
Marcelo Rebelo de Sousa acrescenta que "a lei restritiva de direitos, liberdades e garantias deve possuir uma densidade constitucional suficiente, não assentando em conceitos vagos e indeterminados nem remetendo o essencial do regime para atos que não tenham natureza legislativa, assim respeitando a reserva de lei parlamentar".
No seu entender, as normas em causa "conteriam um conjunto de conceitos vagos e indeterminados". O chefe de Estado dá como exemplos as expressões "narrativa comprovadamente falsa ou enganadora", "ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas"; ou "utilização de textos ou vídeos manipulados ou fabricados, bem como as práticas para inundar as caixas de correio eletrónico e o uso de redes de seguidores fictícios".
O Presidente da República considera que, "em matéria de direitos, liberdades e garantias, o legislador poderia ter tido outro cuidado na definição dos conceitos, sobretudo quando deles fosse deduzível um eventual efeito de censura o qual, ainda que indesejado pelo legislador, não seria suscetível de merecer acolhimento constitucional".
"Deste modo, importaria clarificar que uma interpretação que conduza a um resultado censório não poderia, de todo e todo, subsistir no nosso sistema constitucional, atingindo de inconstitucionalidade a norma que a suporte", defende.
Relativamente à norma que prevê o apoio do Estado à "criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social", Marcelo Rebelo de Sousa argumenta que "poderia incorrer em inconstitucionalidade na medida em que, assentando nos conceitos indeterminados já referidos, previsse a atuação do Estado na criação de estruturas de verificação de factos cujo âmbito de atuação é desconhecido – e não o deveria ser no plano de uma lei restritiva – e cuja natureza ficaria também por esclarecer".
Recorde-se que, ainda ontem à noite, numa edição do programa "Circulatura do Quadrado" transmitida em direto na TVI24 a partir do Palácio de Belém, em Lisboa, em que participou como convidado especial, o Presidente da República declarou-se inclinado a pedir ao Tribunal Constitucional a fiscalização sucessiva do artigo 6.º da Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital em vigor, que Iniciativa Liberal e CDS-PP entretanto propuseram revogar. O documento que esteve em preparação desde 2019 tem motivado várias dúvidas e muitas criticas.
"Eu devo dizer que reapreciei a matéria e estou inclinado a pedir ao Tribunal Constitucional em fiscalização sucessiva que aprecie a constitucionalidade do artigo 6.º", afirmou o chefe de Estado, que foi questionado sobre este assunto por José Pacheco Pereira, um dos três comentadores permanentes deste programa. Recorde-se que em declarações anteriores afastou a hipótese de esta norma poder instituir a censura.
A propósito das alegações de censura relativamente a esta lei, o Presidente da República começou por lembrar que a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital foi inicialmente aprovada sem votos contra no parlamento e com abstenções de quatro partidos – PCP, PEV, Chega e Iniciativa Liberal – na votação final global realizada em 08 de abril.
Referindo-se ao contestado artigo 6.º desta lei, que promulgou em 08 de maio e que entrou em vigor a meio deste mês, Marcelo Rebelo de Sousa acrescentou: "Eu devo dizer que achei aquela norma muito original, muito, muito original, porque não adiantava nada quanto à competência da ERC [Entidade Reguladora para a Comunicação Social] e no resto eram intenções um pouco absurdas. Não me pareceu que fosse claramente inconstitucional".
"Não obstante, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem-se apertado em matéria de densificação de regras nas leis que possam tocar direitos fundamentais – ainda agora apareceu mais uma decisão de inconstitucionalidade no domínio da identidade de género, em que foi muito longe na exigência", assinalou o Presidente da República.
O artigo 6.º da Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, lei publicada em 17 de maio no Diário da República, estabelece que "o Estado assegura o cumprimento em Portugal do Plano Europeu de Ação contra a Desinformação, por forma a proteger a sociedade contra pessoas singulares ou coletivas, de jure ou de facto, que produzam, reproduzam ou difundam narrativa considerada desinformação", que seja "apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público".
De acordo este artigo, "todos têm o direito de apresentar e ver apreciadas pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social queixas contra as entidades que pratiquem os atos previstos no presente artigo" e, por outro lado, "o Estado apoia a criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados e incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública".
Na semana passada, a Assembleia da República debateu projetos de lei da Iniciativa Liberal e do CDS-PP para revogar este artigo 6.º, que tiveram também votos a favor de PSD, PCP, PEV e Chega, além de quatro deputados socialistas, mas acabaram rejeitados por PS, BE, PAN e pela deputada não inscrita Cristina Rodrigues.
No início de junho, Marcelo Rebelo de Sousa defendeu que esta lei não institui nenhuma forma de censura por parte do Estado, declarando: "Seria grave se o Estado fizesse censura, seria mesmo intolerável, e seria intolerável que, mesmo não fazendo censura prévia, fizesse censura à posteriori. Eu nunca promulgaria um diploma desses, passei toda a minha vida a defender a liberdade de imprensa, nunca o promulgaria".
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