Na base da polémica que dominou o tema dos metadados nos últimos dias está uma lei de 2008, que transpôs para o ordenamento jurídico nacional uma diretiva europeia de 2006 que entretanto o Tribunal de Justiça da União Europeia declarou inválida, em 2014. Invocando o primado do direito europeu e a Constituição, a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) decidiu em 2017 “desaplicar aquela lei nas situações que lhe sejam submetidas para apreciação”.

O chumbo do Tribunal Constitucional das normas que determinam a conservação dos dados veio pôr em causa a possibilidade de estes serem usados no âmbito de investigação e em tribunal, temendo-se a paralisação de casos em desenvolvimento e a reversão de outros processos.

O Governo avançou entretanto com uma proposta de lei, entregue hoje no parlamento, onde se prevê que as operadoras de telecomunicações forneçam metadados relativos ao “Número ou identificação, endereço e tipo de posto do assinante, códigos de utilizador, identidade internacional de assinante móvel (IMSI) e a identidade internacional do equipamento móvel (IMEI); número de telefone, endereço de protocolo IP utilizado para estabelecimento da comunicação, porto de origem de comunicação, bem como os dados associados ao início e fim do acesso à Internet”.

As alterações agora introduzidas - por força da declaração de inconstitucionalidade da anterior Lei n.º 32/2008 – atribuem “às autoridades judiciárias a competência para solicitar à empresa que oferece redes e ou serviços de comunicações eletrónicas” os metadados, “quando haja razões que sustentem a indispensabilidade da informação para a descoberta da verdade ou a impossibilidade ou dificuldade de obter prova de outra forma”.

De acordo com o diploma, a que a Lusa teve acesso, os cidadãos considerados suspeitos sobre os quais seja requerido o acesso aos metadados passam também a ser notificados num prazo máximo de 10 dias, exceto quando tal possa “pôr em causa a investigação, dificultar a descoberta da verdade ou criar perigo para a vida, para a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais, das vítimas do crime ou de outras pessoas”.

Neste cenário, a notificação será feita no prazo máximo de 10 dias após o despacho de encerramento do inquérito ou quando deixem de existir razões para investigar o suspeito.

Por outro lado, os metadados que venham a ser remetidos para investigação criminal e que não venham a servirem como meio de prova “são destruídos após o trânsito em julgado da decisão que puser termo ao processo”.

A proposta de lei remete também para posterior portaria a definição para as condições para transmissão de dados e dos termos de destruição dos dados na posse das autoridades judiciárias.

O diploma fixa ainda a avaliação destes procedimentos de dois em dois anos pela Comissão Nacional de Proteção de Dados, em colaboração com a Autoridade Nacional de Comunicações, com vista à elaboração de um relatório sobre a aplicação da nova lei, “incluindo eventuais recomendações à Assembleia da República e ao Governo”.

Perante o anúncio de fiscalização preventiva à proposta de lei feito pelo Presidente da República, o diploma refere que as alterações efetuadas no tipo de metadados a aceder junto das operadoras de telecomunicações, como “identidade internacional de assinante móvel (IMSI), a identidade internacional do equipamento móvel (IMEI) e os códigos de utilizador, são, em si mesmos, dados de identificação e, nessa medida, dados de base que a jurisprudência europeia tem considerado suscetíveis de conservação e de tratamento”.

Face à sensibilidade da matéria e ao processo legislativo que irá decorrer no parlamento, o diploma recomenda que sejam ouvidos o Conselho Superior da Magistratura, o Conselho Superior do Ministério Público, a Comissão Nacional de Proteção de Dados e a Ordem dos Advogados.

Na quinta-feira, no final da reunião do Conselho de Ministros, a ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, considerou que a anulação da criação de uma base de dados paralela por um ano apenas para fins de investigação criminal e o recurso aos dados já conservados pelas operadoras para a sua atividade comercial é uma “mudança de paradigma” e representa “um passo em frente” para aceder à informação.

SMMP questiona se nova proposta abrange dados de geolocalização

Em declarações à agência Lusa, o presidente do SMMP, Adão Carvalho, notou que “a única questão e dúvida que sobressai da proposta e lei é os dados de geolocalização, cuja preservação não resulta expressamente acautelada da mesma”.

Sobre esta matéria, o dirigente realçou que a preservação dos dados de geolocalização “é essencial” em “situações de emergência pública como incêndios, catástrofes ou acidentes ou para serem utilizados na investigação de crimes graves como raptos, homicídios ou mesmo atos preparatórios de crimes de terrorismo”.

“Era uma oportunidade de a Assembleia da República regular a prova obtida através de dados de geolocalização, quer através de preservação e fornecimento de dados pelas operadoras, quer pela colocação de dispositivos que permitem identificar a localização de pessoas e bens e que se mostram essenciais à investigação de crimes graves”, referiu.

Adão Carvalho salientou também que as alterações introduzidas no diploma cumprem “os pressupostos para que o regime constante da proposta possa passar no crivo do Tribunal Constitucional”, após o recente chumbo da Lei 32/2008 sobre os metadados. Como consequência dessa decisão dos juízes do Palácio Ratton, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, já anunciou a fiscalização preventiva da proposta de lei.

Proposta do Governo define metadados a entregar pelas operadoras em caso de investigação criminal
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O presidente do SMMP sublinhou ainda que o diploma hoje entregue no parlamento “assegura o necessário equilíbrio entre os direitos à autodeterminação informativa e à reserva da vida privada e os demais valores individuais e coletivos constitucionalmente previstos, como a segurança, a vida, a integridade física, o património ou mesmo a própria reserva da vida privada das vítimas de ataques informáticos”.

As Constituições não são um conjunto de princípios rígidos e imutáveis, têm de ser interpretados à luz do necessário equilíbrio que em cada momento é feito dos vários direitos em conflito”, acrescentou.

Para o líder do SMMP, a proposta de lei aprovada na quinta-feira em Conselho de Ministros “acautela a preservação dos metadados para efeito de investigação de criminalidade grave”, bem como na criminalidade informática.

Relativamente aos crimes informáticos, lembrou que “inexiste qualquer possibilidade de investigação em relação a esses crimes sem o acesso pelas autoridades judiciárias a esses dados, bem como as necessárias exigências de fiscalização e controlo por entidades independentes da mesma preservação dos dados pelas operadoras”.

O diploma do Governo que estabelece as regras de utilização dos metadados para fins de investigação criminal contempla o acesso à “data da chamada, grupo data/hora associado, serviço e número chamado”, entre outros elementos.

Associação de Juízes lamenta que iniciativa legislativa não tenha ocorrido mais cedo

A Associação Sindical dos Juízes considerou hoje "uma iniciativa legislativa louvável" o diploma do Governo sobre o acesso aos metadados das comunicações eletrónicas para fins de investigação criminal, mas lamentou que a iniciativa não tenha ocorrido mais cedo.

"A proposta de lei do governo sobre o acesso aos metadados das comunicações eletrónicas para efeitos de investigação criminal é uma iniciativas legislativa louvável, na medida em que procura encontrar um bom equilíbrio funcional entre o respeito pelos direitos fundamentais, de acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional e do Tribunal de Justiça da União Europeia, e os valores, também fundamentais, da efetividade da acção penal e da segurança e paz públicas", referiu à agência Lusa Manuel Soares, presidente da Associação Sindical de Juízes Portugueses (ASJP).

Segundo precisou, a intervenção legislativa deveria "ter ocorrido mais cedo, assim que se detetou a desconformidade entre a lei anterior e a jurisprudência europeia, para evitar as implicações da declaração de inconstitucionalidade em processos já julgados e também em investigações e processos pendentes".

"É importante que agora o parlamento agende rapidamente a discussão da proposta e aprove as alterações que se impõem, sem riscos de nova desconformidade constitucional. Não pode ser de outra maneira porque tem de ser possível o acesso aos metadados das comunicações eletrónicas, sob pena de inviabilização de investigações criminais em crimes de extrema gravidade e de inaceitável impunidade dos seus responsáveis", salientou Manuel Soares.

O bastonário da Ordem dos Advogados (OA) escusou-se para já a comentar a proposta do Governo sobre o acesso aos metadados das operadoras de telecomunicações, justificando que a OA é uma das entidades a ser ouvida no âmbito do processo legislativo que vai decorrer no parlamento.

A proposta de lei que estabelece as regras de utilização dos metadados para fins de investigação criminal contempla o acesso à “data da chamada, grupo data/hora associado, serviço e número chamado”, entre outros elementos.

Joana Marques Vidal admite “bastante litigação” nos tribunais

A ex-Procuradora-Geral da República Joana Marques Vidal admitiu hoje que a declaração de inconstitucionalidade de normas da lei dos metadados vai “levantar bastante litigação” nos tribunais portugueses, mas defendeu que os casos julgados “não serão afetados”.

“Isto sem duvida que irá, na minha perspetiva, levantar alguma litigação ou bastante litigação nos tribunais portugueses, embora o resultado dessa litigação quanto aos casos julgados, isto agora já é uma opinião jurídica, me pareça que eventualmente poderá ter pouco êxito”, disse, quando questionada sobre um possível impacto da decisão do Tribunal Constitucional (TC) que declarou inconstitucionais normas da chamada lei dos metadados.

No Porto, para uma sessão dedicada à discussão dos Metadados: “O difícil equilíbrio entre a segurança e a privacidade”, a magistrada defendeu que o acórdão do TC não vai afetar os casos julgados.

“Como já foi dito, casos julgados não serão afetados mas há sempre a possibilidade de, eventualmente, poderem em recursos de revisão vir alegar isso [a inconstitucionalidade de normas da chamada lei dos metadados]”, disse.

Isto porque, explicou, “os tribunais irão julgar, irão apreciar caso a caso e mesmo relativamente aos outros casos a questão da proporcionalidade da utilização e a possibilidade, ou não, destes meios de obtenção de prova, em conjugação com outros, se foi ou não foi determinante naquela que foi a condenação ou investigação criminal fará toda a diferença”.

“Pressuponho que venha a aumentar a litigação mas os tribunais respeitam as decisões dos tribunais e têm que exercer as suas funções de acordo com a lei”, salientou.

O Tribunal Constitucional, em acórdão de 19 de abril, declarou inconstitucionais normas da chamada lei dos metadados que determinam que os fornecedores de serviços telefónicos e de internet devem conservar os dados relativos às comunicações dos clientes – entre os quais origem, destino, data e hora, tipo de equipamento e localização – pelo período de um ano, para eventual utilização em investigação criminal.

Na sequência de um pedido de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral feito pela provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, dos artigos 4.º, 6.º e 9.º desta lei, o tribunal considerou que as normas em causa violam princípios consagrados na Constituição como o direito à reserva da vida privada e familiar e a proibição de acesso a dados pessoais de terceiros, salvo em casos excecionais, assinalando que “o legislador não prescreveu a necessidade de o armazenamento dos dados ocorrer no território da União Europeia”.