Apesar de uma experiência acumulada de vários anos numa tecnológica, o desafio de criar uma empresa no mesmo sector em 1993 era grande, mas tal não demoveu José Dionísio e Jorge Batista da ideia, e assim nasceu a Primavera.

Vinte cinco anos volvidos, e do palco da Alfandega do Porto, num encontro que assinalou a data especial, e à frente de colaboradores da empresa e parceiros, José Dionísio afirmou que, para o futuro, há a ambição de “continuar a querer fazer aquilo que mais ninguém faz” e de “aumentar competências”.

SAPO TEK: Em dia de comemoração de aniversário, e numa data tão redonda, é inevitável falarmos do “início do início”. Qual era a ideia?

José Dionísio: Tudo começou por volta de julho de 1993 quando eu e o Jorge Batista, amigos desde o primeiro ano de universidade e de saída do projeto empresarial anterior - a Infologia, hoje Sage -, depois de sete anos de experiência, por coincidência, estarmos os dois numa situação em que queríamos fazer qualquer coisa de novo.

Na altura o Windows estava a aparecer… Não era certo que o nosso software viesse a ser desenvolvido para Windows, mas acreditámos que sim, que seria possível. Fizemos uma pequena viagem por Espanha e França e fomos sentir o mercado. Viemos de lá com a confiança reforçada e assim nasceu a Primavera.

Começámos a desenvolver, intensamente, o primeiro produto em Portugal feito para correr num sistema operativo Windows. Fechámo-nos um quarto do apartamento onde o Jorge vivia na altura durante quatro meses e em janeiro de 1994 começámos a comercializar umas caixinhas de sofware que se chamavam Contalib e que foram um best seller. Isso alavancou depois tudo o que aconteceu a seguir.

SAPO TEK: Hoje há a Empresa na Hora, mas em 1993 criar uma empresa, ainda por cima uma tecnológica… O que foi preciso fazer na altura? Recorda-se?

José Dionísio: Não me recordo que o problema tivesse sido do ponto de vista burocrático. Recordo-me que, para arranjar os primeiros dinheiros, tivemos que convencer uma técnica do IEFP para termos acesso a um programa na altura chamado ILE - Iniciativa Locais de Emprego. Ela já tinha uma série de fracassos em Braga de empresas tradicionais de informática e aparecerem dois indivíduos, que só tinham sete anos de experiência, e que queriam começar um projeto com uma coisa de fundo azul - o Windows -, que ela não sabia sequer o que era, e queriam vender para todo o país. As outras empresas de informática é que seriam os nossos clientes.

O que queríamos fazer era inovador, mas a senhora foi acreditando em nós: lembro-me que fizemos três reuniões com ela e de facto acabámos por ter esse ILE e ficámos com 15 mil euros. Foram os 15 mil euros com que comprámos duas secretárias, mais dois ou três computadores e alugámos um escritório com 80 metros quadrados. Estávamos lá os dois. Depois em fevereiro entrou a primeira pessoa, a segunda e terceira nesse ano e fomos andando assim.

“Não me lembro sequer da palavra startup na altura. Mas era uma startup que estava a nascer”

Tivemos acesso a um financiamento que hoje não é muito fácil obter. Os empreendedores de hoje, as startups de hoje têm-no de outras formas, através de business angels, através de algum capital de risco, mas naquele tempo era assim.

SAPO TEK: O que é que os vossos familiares e amigos mais próximos diziam? Acreditavam no vosso projeto? 

José Dionísio: Acreditavam… não sei com que nível de angustia também. Estava para nascer o meu primeiro filho e não sabíamos o que ia acontecer, mas penso que também sabíamos que tínhamos que testar a ideia num prazo curto. As coisas ou davam ou não davam e se não dessem tínhamos que voltar à nossa carreira e ser empreendedores nas empresas dos outros.

SAPO TEK: E a partir daí, como é que foi a evolução do negócio? Que primeiros clientes tiveram?

José Dionísio: Foi muito rápido, porque começámos a vender umas caixinhas a 14 contos ( o que seriam agora 70 euros). Eu saía com as caixas numa carrinha de dois lugares e quando chegava a Lisboa, como quem vende batatas fritas, tinha a carrinha vazia.

As lojas nunca tinham visto marketing de caixas também tão bem feito e era um produto inovador. Teve sucesso porque era inovador. Nós não inventámos a roda, não fomos fazer nada igual ao que já exista em DOS, da mesma maneira que hoje ninguém vai arrancar com uma empresa para fazer software em Windows, já que está aí a cloud. Por isso, era um momento de rotura tecnológica, como acontece hoje com a cloud, e por isso este é o momento em que qualquer empresa de garagem pode aparecer.

"Começámos a vender umas caixinhas a 14 contos. Eu saía numa carrinha de dois lugares cheia dessas caixas e quando chegava a Lisboa, como quem vende batatas fritas, tinha a carrinha vazia"

Por isso, correu bem: faturámos 100 mil euros no primeiro ano, que é uma coisa que qualquer startups hoje tem muita muita dificuldade em fazer. Depois passou para 250 mil euros. E depois passou para 500 mil euros… isto também aconteceu por fruto da nossa experiência de sete anos. Foi fundamental: nunca haveria Primavera sem termos tido primeiro aquela experiência profissional.

A seguir fomos construindo uma equipa - que as empresas são feitas de pessoas. Juntámos uma equipa capaz de dar todas as garantias. E foi crescendo de forma muito salutar, com muita transparência. Isso também fez parte do sucesso do projeto.

SAPO TEK: Falou do início e da venda de software em caixa. Como foi passar de um modelo de software em caixa para um modelo de serviço? 

José Dionísio: Ainda está a acontecer. É um processo que não acontece de um dia para o outro, mas que exige que as empresas compreendam o que é o software como um serviço. Estamos a assistir a um crescimento, agora sim, assinalável da utilização do software na cloud, algo que vem de uma evangelização que a indústria anda a fazer há quase 10 anos, mas que está a aumentar de uma forma exponencial mesmo.

SAPO TEK: Tiveram que mudar alguma coisa na vossa forma de fazer negócio?

José Dionísio: Tudo. Mudámos tudo. Não estamos "a partir" a mesma pedra que em 1994, para saber como é que se faz uma contabilidade ou os salários, mas temos desafios novos. Um deles é tomar conta dados de milhares e milhares de empresas, algo que não fazíamos: vendíamos a caixa e quem tratava dos dados eram os nossos parceiros e o cliente. Agora os dados são geridos pelas software houses.

“O nosso software está a ser todo feito de novo. É como se tivéssemos, regressado a 1994: não temos nada, a única coisa que temos é experiência”

Nos próximos três a cinco anos, vamos assistir a um crescendo da opção de soluções cloud por parte das empresas e da passagem das suas infraestruturas para a cloud deixando o on premise.

SAPO TEK: Quais são os maiores desafios de gestão na transformação de uma pequena empresa numa grande empresa, falando do mercado português?

José Dionísio: Para o mercado português e PALOP, a Primavera acaba realmente por ser uma grande empresa: não há espaço para podermos ser uma empresa de 100 milhões ou de 200 milhões. Somos uma empresa de perto de 25 milhões e temos de fazer agora a transição para este novo negócio.

A primeira coisa que tivemos de fazer é perceber que não podemos deixar que “outra Primavera” apareça e que faça aquilo que nós fizemos aos incumbentes há 25 anos. Temos de estar atentos, mas isso exige muito do ponto de vista do investimento, porque no fundo temos um legacy, temos milhares e milhares de empresas que usam Windows – e que querem continuar a usar, para já - e temos que ter outra linha de produção completamente nova, para fazermos produtos para a cloud. E ainda temos outro grupo de engenharia para tratar das infraestruturas todas, onde estão os dados dos produtos para a cloud.

Já não somos uma única empresa, no fundo somos três. Não é fácil para quem já está no mercado fazer esta “mudança”. Quem começa de novo e não tem história nenhuma, começa logo a aprender…

SAPO TEK: Nesse sentido, como é que encara hoje a concorrência das multinacionais no mundo inteiro e, em particular, no mercado português?

José Dionísio: Nos últimos 10 anos as multinacionais mudaram. Uma SAP “desceu” na pirâmide de mercado, para soluções mais abaixo daquelas que disponibilizavam e nós vivemos essas transformações do negócio, aceitando-o como um desafio. Isso na Primavera, às vezes, parece uma "Batalha de Aljubarrota", porque nós somos 100 e eles são 10 mil, não deixamos de ganhar-lhes negócio e repartir o mercado com eles.

O sector tem muitas especificidades. Trabalhar o mundo dos ERPs não é fácil, não é fácil fazê-lo a uma escala global sem personalizar de alguma forma, de adaptar o produto às realidades legais e fiscais dos diferentes mercados e até aos hábitos de consumo. Aquilo que um utilizador alemão espera de um ERP, não é aquilo que um utilizador português espera ou que um francês ou que um espanhol.

SAPO TEK: Quais considera serem os maiores desafios à internacionalização para uma empresa  portuguesa? 

José Dionísio: A internacionalização tem sido um desafio. Temos que reconhecer que temos de fazer melhor no sentido de levar a Primavera para mercados mais competitivos e esperamos poder chegar a horas a Espanha, a França e a outros países da Europa. Não 20 anos depois de as pessoas terem já apostado no mercado, mas no início em que ainda há poucos fabricantes.

É isso que está a acontecer com o Jasmin, por exemplo, que em Portugal tem feito o seu caminho. Foi lançado há cerca de um ano e meio, é um produto mais direcionado para as PMEs e está a correr muito bem. Estamos a fazer o mesmo em Espanha, vamos ver como é recebido neste mercado.

SAPO TEK: Neste momento, África não é vista como a melhor aposta. É por isso que querem investir em mercados mais próximos, com outras caraterísticas?

José Dionísio: A Primavera precisa de entrar em mercados competitivos e África não é propriamente um mercado competitivo, embora adorem o nosso software. Se calhar é mais reconhecido lá do que em Portugal. Acontece que, quer em Moçambique quer em Angola, os países estão a passar por crises económicas com caraterísticas diferentes. Mas, no respeita a Angola, que é o nosso principal mercado externo, estamos preparadíssimos para a qualquer momento voltarmos a correr pelo país fora. Não abandonámos os PALOP, estamos lá efetivamente e com 3000 clientes só de média e grande dimensão.

SAPO TEK: Considera que as empresas portuguesas hoje têm mais credibilidade, já são encaradas de outra forma? 

José Dionísio: Penso que em alguns sectores, Portugal está a ser muito bem reconhecido lá fora, não só no sector das TI. Fez-se um trabalho excecional nos últimos 15 anos que é importante reconhecer. Também acredito que a crise profunda que vivemos despertou os empresários para um outro tipo de atitude. Os empresários em Portugal têm de ganhar gosto pelo crescimento, que é algo que não é muito habitual. Se as coisas estiverem a correr mais ou menos bem parece que estamos sempre mais ou menos bem e os empresários não se exigem a si próprios crescimento de dois dígitos, quando muitas vezes isso está ao seu alcance. Nós sentíamos isso, gostávamos muitas vezes que as empresas dissessem: ajudem-nos a crescer dois dígitos.

"Acredito que a crise profunda que vivemos despertou os empresários para um outro tipo de atitude"

De facto as nossas empresas fizeram um brilharete ao mostrarem essa atitude, ao apelarem ao espirito de sobrevivência que temos, descobriram que afinal até sabem vender para fora. Esperemos que não se acomodem neste crescimento de mercado interno… Mas vamos ser otimistas.

SAPO TEK: Que caraterísticas acha que mantiveram a Primavera de pé estes 25 anos?

José Dionísio: A Primavera tem uma coisa que não é muito comum: é ter ainda os dois fundadores à frente da empresa. Não é algo comum, especialmente no mundo das tecnologias. E não é uma empresa familiar. Penso que isso trouxe a todo o ecossistema de parceiros da Primavera, e à própria empresa, uma estabilidade naquilo que tem sido a sua estratégia ao longo do tempo. Não há surpresas.

SAPO TEK: O José Dionísio e o Jorge Batista ainda continuam a falar muito os dois sobre as ideias que têm para a empresa?

José Dionísio: Ai, todos os dias. Trabalhamos lado a lado. E com mais pessoas, claro... Não queremos que seja uma empresa do Dionísio e do Jorge: queremos que seja uma empresa de todos os quadros. Podemos ir de férias à vontade uma data de meses que aquilo continua a funcionar muito bem - se calhar até melhor.

Esta é uma caraterística da empresa que é factual. Tal também terá tido influências menos positivas, porque a não entrada de capital na organização noutros tempos, muito comum noutras empresas da Europa também não facilitou esse crescimento para fora das nossas fronteiras e do volume de negócios. Mas é um projeto muito bonito que esteve sempre a crescer e que vai continuar a crescer.

“Os momentos em que a empresa lança grandes produtos com grandes novidades são momentos que vivo com muita intensidade. Gosto muito dos “brinquedos” que fazemos”

SAPO TEK: E como é que vê a Primavera daqui a 25 anos? Onde quer estar?

José Dionísio: Já não penso estar na Primavera, primeiro que tudo. Acho que nós, nesta indústria, temos de olhar para as coisas num prazo mais curto. A cinco anos é tudo mais razoável. E a cinco anos vejo uma Primavera já com tudo em cloud, a ter dos melhores produtos cloud que estão no mercado. Vejo uma Primavera a vender para mercados que não o português e o africano, mas também na Europa. Vejo uma Primavera a trabalhar na mesma com os parceiros, apesar de já estarmos no mundo da cloud.

Vejo uma Primavera com mais 20 ou 30% de pessoas: se hoje somos 300, podemos ser 400 ou 450. E se calhar vamos estar a faturar perto dos 50 milhões de euros. É esse o caminho.