Por Rui Nuno Castro (*)

A transformação digital de Portugal tem agora uma nova carta de intenções. Com a aprovação da Estratégia Digital Nacional (EDN), o país estabelece um plano a longo prazo que promete mudar o paradigma económico, social e tecnológico. Esta estratégia surge como uma evolução do Plano de Ação para a Transição Digital (PATD), mas com uma ambição maior e um horizonte mais distante: 2030. O discurso é claro, mas o céu nem sempre é limpo. As boas intenções não bastam; é preciso executá-las.

A visão apresentada é sedutora: um Portugal onde o digital simplifica. A EDN promete transformar o país num líder europeu na transição digital, colocando as pessoas, as empresas, o Estado e as infraestruturas no centro da transformação. As metas são concretas e mensuráveis. Quer-se que 80% da população tenha competências digitais básicas, que 90% das PME alcancem um nível básico de intensidade digital e que 75% das empresas adotem ferramentas de Inteligência Artificial. Estas metas são precisas e responsáveis. Mas, tal como em muitas outras estratégias nacionais, o verdadeiro obstáculo não é a intenção, é a execução.

O Plano de Ação para a Transição Digital (PATD) foi a "primeira geração" desta transformação. Ligeiramente mais pragmático e de curto prazo, o PATD focava-se em três pilares essenciais: a capacitação das pessoas, a transformação digital das empresas e a digitalização do Estado. O PATD era um plano de "mãos à obra", com medidas como o Vale Digital para as PME e programas de apoio à formação em competências digitais. Em contraste, a EDN amplia o horizonte para 2030 e apresenta uma ambição muito mais alargada.

Contudo, ao analisar estas duas "fases" da transformação digital, notam-se algumas incompatibilidades e desalinhamentos. Se o PATD era focado na ação e na agilidade, a EDN surge com um discurso mais estrutural e prospectivo, mas menos claro em relação à continuidade de certas medidas. Veja-se, por exemplo, o foco nas PME. No PATD, as PME eram o centro das atenções, beneficiando de iniciativas claras e concretas, como os apoios à digitalização e o acesso a ferramentas tecnológicas. Já na EDN, as startups ganham um protagonismo muito maior, com a promessa de criar 6.000 startups até 2030, o que me parece muito interessante. Esta mudança de narrativa, no entanto, pode deixar as micro e pequenas empresas tradicionais numa "terra de ninguém", sem saber se ainda fazem parte das prioridades.

Outro ponto de fricção é a continuidade das iniciativas do PATD. Muitas das ações lançadas, como os vales digitais e os incentivos de apoio à capacitação de pessoas, não têm uma continuidade clara na EDN. Não se sabe se serão mantidas, descontinuadas ou absorvidas por outras medidas. Esta "zona cinzenta" é perigosa, especialmente para as entidades que se alinharam com o PATD e agora se veem a tentar entender o seu papel no novo contexto.

Mas não é só no plano das empresas que há incoerências. No desenvolvimento de competências digitais, a ambição também mudou. Enquanto o PATD visava a literacia digital básica, com foco no acesso e na inclusão, a EDN desloca-se para um patamar mais elevado, centrando-se nas competências especializadas e na formação de mulheres em STEM. Esta transição é importante, mas não pode ser feita sem garantir que os mais "atrasados" neste processo não fiquem para trás.

Os investimentos anunciados para estes projetos também merecem atenção. O projeto AMÁLIA tem um investimento previsto de 5,5 milhões de euros, enquanto o consórcio Accelerat.ai, que inclui o desenvolvimento do assistente virtual do ePortugal, envolve 34,5 milhões de euros. É curioso observar que, embora o desenvolvimento de um modelo LLM como o AMÁLIA seja reconhecidamente mais complexo e exigente do ponto de vista tecnológico, o investimento alocado a este é substancialmente inferior ao que foi destinado ao assistente virtual do ePortugal. Esta disparidade levanta questões sérias sobre os critérios de alocação de recursos e a eficiência dos investimentos públicos. Não seria racional promover a integração entre os dois projetos, tirando partido dos avanços do LLM para fortalecer o assistente virtual? Esta integração parece não apenas desejável, mas necessária para garantir a sustentabilidade dos investimentos realizados.

Em 2030, não queremos olhar para trás e dizer que foi mais uma oportunidade perdida. O caminho está desenhado; agora, é preciso percorrê-lo com determinação, responsabilidade e ação.

(*) Director da inCoimbra StartUp HUB e Founder da alphaCoimbra