http://imgs.sapo.pt/gfx/201013.gifQuer se queira, quer não, Richard Stallman é uma figura-chave incontornável do movimento do software livre que impõe respeito não só pela sua carreira enquanto programador, divulgador, activista e pensador desta comunidade, mas também pela sua fama de ser uma pessoa difícil de entrevistar. Conhecido por ter criado o compilador GCC e o editor de texto Emacs para o Unix, em 1984 decidiu criar o sistema operativo GNU como uma alternativa completamente livre às versões proprietárias do Unix, de modo a restituir aos utilizadores de computadores a liberdade que grande parte destes tinha perdido.

No ano seguinte, fundou a Free Software Foundation, entidade destinada a promover o desenvolvimento e utilização do software livre e do GNU. Este último projecto foi evoluindo ao longo dos anos, embora os seus programadores não tenham conseguido construir um kernel - núcleo - da plataforma. Foi preciso esperar até 1991 para que o finlandês Linus Torvalds desenvolvesse esse último componente. Actualmente a maior parte das distribuições do chamado Linux baseiam-se sobretudo em aplicações GNU. Por isso, a insistência de Stallman em mencionar sempre GNU/Linux e não Linux.

Apesar de desde há vários anos existir o projecto de um kernel de raiz para o sistema GNU, chamado Hurd, actualmente ainda se encontra numa fase de desenvolvimento bastante instável, não havendo perspectivas para quando é que estará pronto.

Numa entrevista que o TeK realizou a Stallman na passada segunda-feira, dia 9, antes da realização de uma conferência sobre direitos de autor na era digital que decorreu no Instituto Superior das Ciências do Trabalho e do Emprego (ISCTE), no âmbito do primeiro Fórum Social
Português
, fez também questão de nos avisar antes do início da entrevista para não confundirmos software livre com open-source, outro dos pontos habituais de "fricção" entre o nosso entrevistado e a comunicação social...

TeK: O que é para si o software livre?
Richard Stallman: Software livre significa que o utilizador possui a liberdade de se ajudar a si próprio e de ajudar os outros. Nunca é exigido ao utilizador que ajude outras pessoas, mas ele é livre de o fazer, se o pretender. Por isso, tem a liberdade de efectuar cópias do programa e redistribui-las, de ler o código-fonte e ver o que é o que o software faz de facto. Pode modificá-lo de forma a que faça o que queira, em vez do que o programador original pretendia. Pode publicar e melhorar versões, de
forma a que outros possam beneficiar das alterações que efectuou.

Em resumo, é o utilizador que controla o software. Com o
software não-livre, pelo contrário, é o programador que controla o programa ao passo que o utilizador está limitado. Os programadores de software não-livre estão interessados, de uma forma mais ou menos directa, em dividir os utilizadores e dominá-los, de forma a que não possam fazer com o programa aquilo que pretendem.

Mas, o software livre está de facto sob o controlo dos seus
utilizadores, quer individualmente como colectivamente, ao mesmo tempo. Individualmente, porque se se quiser dar ao trabalho, pode-se ler o código e alterá-lo, se se souber como o fazer. Colectivamente, porque sempre que existe um grupo de utilizadores com interesses comuns, são apenas necessários alguns deles para ler o código e alterá-lo. Deste modo, todos eles podem obter os benefícios dessas modificações, incluindo as pessoas que não são programadores e que não teriam sido capazes de fazer esse trabalho por si próprias.

TeK: Quais são as diferenças que distinguem o software livre do open-source?
R.S.: O software livre é o nome de um movimento mas também uma categoria de programas informáticos. Open-source também se refere a um movimento e a uma categoria de software. Por isso, podemos comparar os movimentos e as categorias de software. Sob este último ângulo, o open-source é quase a mesma coisa que o software livre, mas não exactamente, porque as definições são redigida de forma diferente e interpretadas por pessoas diferentes. Assim, existem certas licenças que podem ser identificadas como open-source mas não como software
livre.

Esta é uma pequena diferença não muito importante mas, na verdade, não podemos encarar software open-source e livre como sinónimos. Se conhecermos um programa que é software livre podemos estar certos de que é open-source. Por outro lado, se soubermos que uma aplicação é open-source, então existe 99 por cento de probabilidade de que seja software livre, mas não podemos adoptar esta perspectiva de antemão. As grandes diferenças surgem entre os movimentos e as suas filosofias, porque se baseiam em valores básicos diferentes.

No movimento do software livre dizemos que se trata de uma questão ética, relativa à liberdade dos utilizadores. Na nossa opinião, é errado negar a liberdade dos utilizadores e toda a gente deveria ter a liberdade de executar, estudar, modificar e redistribuir o software que utilizam. Pelo contrário, o movimento open-source não diz isso, optando por
dizer que possuem um modelo de desenvolvimento que é bom para programar software poderoso e fiável. Assim, em vez de apelar para valores éticos ou sociais, apela apenas a valores técnicos.

TeK: Acredita que o movimento open-source foi criado para conceder uma imagem mais apelativa do sistema operativo Gnu/Linux capaz de atrair o mercado empresarial?
R.S.: Sim. Eles disseram que estavam a tentar ser mais atractivos em relação às empresas ao não abordarem estes assuntos. De facto, em grande medida, eles silenciaram o debate destas questões. Isto não quer dizer que nós tenhamos sido censurados, mas na maior parte das vezes, quando as pessoas se referem ao nosso trabalho (da Free Software Foundation), estas questões mais complexas não são referidas. É por isso que eu me esforço bastante para chamar a atenção das pessoas em relação a estes assuntos.

Já existem milhares de pessoas e uma série de grandes companhias promovendo o nosso software poderoso e fiável, e por isso, para nós não faz sentido argumentar esses factos. O que nós fazemos é esclarecer as pessoas em relação a estes assuntos mais profundos, incluindo as razões porque desenvolvemos este sistema.

TeK: Considera que ao optar por utilizar software livre, o
utilizador está a tomar mais que uma mera decisão técnica mas também um acto político? E no caso do movimento de software livre e dos programadores que pertencem a essa comunidade, acha que o desenvolvimento deste tipo de programas é uma questão acima de tudo política e não técnica?

R.S.: Se um determinado utilizador está a tomar um acto político ao migrar para o software livre, isso depende do que ele pensar. Se apenas ponderou nas ideias em que se baseia o movimento open-source e nunca reflectiu sobre isto como sendo uma questão de liberdade política, então suponho que para ele a decisão seja meramente prática. Assim, para alguns utilizadores trata-se de uma opção política, para outros não.

Contudo, nós, o movimento do software livre, consideramos que isto é uma questão política. A razão porque existem sistemas operativos livres reside na nossa determinação na criação de uma nova terra de liberdade no ciberespaço. Não somente nós encaramos o software livre como um assunto político mas é também por isso que este movimento tem vindo a crescer e a desenvolver cada vez mais programas.

TeK: Qual é que acha que tem sido o ritmo de difusão dos conceitos e valores básicos do movimento do software livre?
R.S.: É nítido que um número maior de pessoas está a ouvir falar mais sobre software livre e das ideias deste movimento do que no passado. No entanto, é óbvio que apenas uma pequena percentagem das que ouvem falar sobre software livre já ouviram falar das ideias que estão na base desse tipo de programas. É dito à grande maioria que se trata de software open-source e ficam com a ideia errada de que foi desenvolvido por defensores de open-source. É importante realçar isto porque a liberdade nunca está protegida automaticamente. Temos que defender a nossa
liberdade ou perdemo-la. E para tal, temos que saber em que é que consiste.

Actualmente, a maior parte das pessoas na nossa comunidade não ouviram falar na questão da liberdade. Elas nem sequer sabem que existe uma questão de liberdade, porque este assunto foi silenciado por uma grande parte da comunidade. Por essa razão, nós estamos vulneráveis. Essas pessoas que nunca pensaram sobre este assunto poderão ceder a sua liberdade sem estarem conscientes de tal facto.

TeK: Qual é a sua opinião sobre o processo instaurado pela SCO à IBM por esta ter alegadamente integrado de uma forma não-autorizada tecnologia Unix no GNU/Linux para melhorar o seu desempenho?
R.S.: Eu não estou a par dos detalhes do seu processo contra a IBM. Trata-se de uma disputa sobre um contrato, relativo ao facto de a IBM não ter cumprido um contrato estabelecido com a SCO. O que eu posso dizer sobre isto é que a SCO está a tentar difundir medo, incerteza e dúvida.

Uma das formas através dos quais eles estão a fazer isso é gerando confusão sobre o que é que consiste o Linux, porque eles dizem determinadas coisas que são verdadeiras em relação ao Linux, o kernel desenvolvido por Linus Torvalds, e dizem outras coisas que são verdadeiras em relação aos sistema operativo Gnu/Linux como um todo. Ao juntarem isso tudo, chegam a conclusões que não fazem qualquer sentido. Esta confusão entre o sistema e o kernel, que surgiu quando as pessoas começaram a chamar erradamente o sistema de Linux, está a ser deliberadamente empregue pela SCO para provocar
medo. Mesmo que a SCO vença o processo, o sistema Gnu/Linux irá permanecer

TeK: A Free Software Foundation está a ponderar processar a SCO?
R.S.: Não, porque a IBM possui muitos mais recursos financeiros e advogados do que nós. Por isso, não faz sentido para nós gastarmos dinheiro a combater a SCO em tribunal quando a IBM pode fazer isso.




Miguel Caetano




Nota de Redacção: Esta entrevista será também publicada no Suplemento Computadores do jornal Público que sai para as bancas amanhã, dia 16 de Junho.