À medida que o receio e a ansiedade aumentaram, o contexto de crise de saúde pública da COVID-19 abriu a porta a um crescente número de soluções digitais que prometem ajudar quem está a passar por momentos mais difíceis a nível psicológico.
Segundo dados da consultora Sensor Tower, foi possível notar um aumento significativo de downloads, em particular, no que toca a aplicações desenhadas para promover o bem-estar mental dos utilizadores desde abril de 2020, isto é, cerca de um mês depois de a Organização Mundial de Saúde (OMS) ter declarado o novo coronavírus como uma pandemia.
Entre o Top 3 de aplicações mais populares são destacadas a Calm, a Headspace e a Meditopia. No entanto, o universo de soluções que existe nas lojas digitais vai muito além de apps centradas em práticas de relaxamento ou meditação. Aliás, estimativas da American Psychological Association (APA) apontam para mais de 20.000 aplicações.
Ao SAPO TEK, Renato Gomes Carvalho, psicólogo e presidente da Delegação Regional da Madeira da Ordem dos Psicólogos Portugueses, explica que a “transformação digital tem tido impacto também no campo da saúde psicológica ou da saúde mental”.
Se por um lado, o processo levou à criação de “ferramentas que têm transformado o panorama da prestação de cuidados de saúde psicológica”, muito além das teleconsultas, a “generalização do uso de smartphones abriu espaço” a toda uma nova “área de intervenção e de negócio”.
“Existem milhares de apps associadas ao campo da saúde mental e com objetivos muito variados, que vão desde o treino de relaxamento ou de outras competências, apoio psicossocial, psicoeducação, monitorização de sintomas e comportamentos, até recolha de dados. O leque é muito grande”, detalha o psicólogo.
“O que é necessário é que essas ferramentas sejam testadas e apresentem indicadores de validade, precisão e eficácia”, afirma Renato Gomes Carvalho.
Já Ana Pinto Coelho, diretora e curadora do Festival MENTAL e terapeuta em matéria de dependências, indicou ao SAPO TEK que as aplicações levantam todo um conjunto de perguntas essenciais: desde quem está por trás delas, quem decide o que deve lá estar, que especialistas é que existem e quais são as suas credenciais, assim como, que medidas de regulação estão ou não a ser postas em prática. “Estamos a falar de saúde mental, de medicina, portanto, de assuntos muito sérios”.
Assim, que papel desempenham realmente as apps de saúde mental? Será que podem ser consideradas aliadas ou, pelo contrário, inimigas? Para encontrar uma resposta a estas questões é necessário perceber também como está o panorama da saúde mental durante a pandemia de COVID-19.
Saúde mental durante a pandemia: um panorama sombrio
Ainda em maio do ano passado, a OMS já tinha dado um alerta para o impacto da pandemia na saúde mental da população. Em declarações à imprensa internacional, Dévora Kestel, responsável do Departamento de Saúde Mental e Abuso de Substâncias da entidade sublinhou que “a situação atual, com isolamento, medo, incerteza e crise económica, pode causar distúrbios psicológicos”.
“A saúde mental e o bem-estar das sociedades foram severamente afetados pela crise”, afirmou Dévora Kestel, acrescentando que “são uma prioridade que deve ser abordada urgentemente”.
A OMS destacou também o aumento do número de pessoas um pouco por todo o mundo que estão a sentir os efeitos da crise na sua saúde psicológica, com um especial foco nos profissionais de saúde, crianças e adolescentes, idosos, mulheres em risco de violência doméstica e ainda pessoas que já tinham condições mentais preexistentes.
Em Portugal, o panorama não é diferente, que o digam os dados do estudo “Saúde mental em tempos de pandemia”, coordenado pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, em colaboração com o Instituto de Saúde Ambiental da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e com a Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental.
O estudo apresentado no início deste ano revela que, de modo geral, “33,7 % dos indivíduos da população geral adulta e 44,8% dos profissionais de saúde apresentavam sinais de sofrimento psicológico”.
No que respeita à população em geral, são sobretudo as mulheres (30%) e os jovens adultos (36%) que apresentam sintomas de ansiedade e de depressão moderada a grave. Olhando para os profissionais de saúde, os que estão a tratar de doentes com COVID-19 são os mais afetados, apresentando ansiedade moderada a grave (42%). Neste grupo, 43% dos inquiridos demonstrava elevados níveis de burnout, ou seja, de exaustão física e emocional.
Em abril de 2020 foi criada a linha de aconselhamento psicológico do SNS 24, enquadrando-se numa série de medidas tomadas pelas autoridades de Saúde para dar resposta aos desafios da saúde mental dos portugueses durante a pandemia. Ao todo, desde a sua criação, a linha já atendeu 67.245 pessoas, entre as quais 5.249 profissionais de saúde, revelou Luís Goes Pinheiro, presidente da SPMS, numa recente entrevista à agência Lusa. “Ter esta linha para servir de apoio psicológico às pessoas tem-se revelado absolutamente crucial ou longo ao da pandemia", salientou o responsável.
O contexto de maior incerteza da pandemia, que levou a um exacerbar dos problemas de saúde mental, está na base do maior nível de acesso às soluções tecnológicas disponíveis através das lojas digitais. Mas não é tudo: o momento de crise levou também levou à criação de apps para fazer face à nova realidade.
Hug-a-group quer ser um "abraço de grupo" à distância
Lançada no ano passado, por ocasião do Dia Internacional da Saúde Mental, a criação da app portuguesa Hug-a-Group partiu da própria experiência do seu fundador e CEO. Pedro Trincão Marques contou ao SAPO TEK que foi diagnosticado com perturbação de ansiedade generalizada quando era mais novo.
Perante a realidade das consultas com o psicólogo, da tomada de medicação e dos ataques de pânico, o responsável notou que não havia uma “solução comunitária” que conseguisse ligar as pessoas que estivessem em situações semelhantes.
“Foi a partir dessa lógica de ligar pessoas que surgiu a ideia para a Hug-a-Group, que depois se materializou na aplicação”. A aplicação disponibiliza um serviço de sessões de intervenção em grupo, com um custo médio de 15 euros por cada uma, sempre acompanhadas por psicólogos certificados.
“O que nós fazemos não é, em termos de psicologia, uma coisa nova: não reinventamos a roda”, admite Pedro Trincão Marques. No entanto, o feedback recebido pelos utilizadores tem vindo a ser positivo.
Como é que a equipa da Hug-a-Group mantém a segurança da operação? Segundo o CEO, o único dado que é pedido pela própria aplicação é o email do utilizador, de modo a que este possa ser contactado. Já as sessões de grupo regem-se por regras específicas, quer do lado dos psicólogos, que mantêm os seus princípios éticos, quer dos participantes, que seguem a regra-base “o que se partilha no grupo não sai do grupo”.
Olhando para a variedade de soluções que, à semelhança da Hug-a-Group, existem na Play Store ou na App Store, Renato Gomes Carvalho, indica que “em alguns casos e pelas suas características” estas podem “ser a primeira forma de uma pessoa aceder a algum tipo de ação ou conteúdo em saúde mental, muito antes de consultar um psicólogo”.
Já para quem está a ser acompanhado por um especialista, a questão de utilização das apps “terá de ser avaliada no quadro da relação com o profissional e da intervenção que está a existir”. Porém, como salienta Ana Pinto Coelho, “as apps ainda têm muito caminho a percorrer”, alertando que os riscos devem ser seriamente considerados.
Vale mesmo a pena confiar nas apps de saúde mental?
Entre os riscos apontados, por exemplo, por especialistas como os da APA, encontram-se situações de aplicações que podem induzir os utilizadores a erro, levando-os a acreditar que sofrem de uma determinada patologia quando tal não é o caso, ou ainda casos em que as soluções tecnológicas recolhem dados médicos sem consentimento e os armazenam de forma pouco segura.
Quando questionadas pelo SAPO TEK, tanto a Google como a Huawei enfatizaram as medidas acrescidas de segurança que são tomadas nas suas lojas digitais, com políticas que estabelecem que não são permitidas aplicações que tentem enganar os utilizadores, incluindo conteúdos ou funcionalidades relacionadas com Saúde. Embora não tenha sido possível obter uma resposta por parte da Apple em tempo útil, as suas políticas apresentam princípios semelhantes.
Renato Gomes Carvalho indica que “a evidência científica atual mostra que as apps podem ser uma ferramenta útil e ter resultados. Para tal, é necessário que o seu objetivo seja bem definido, que sejam mobilizados conhecimentos de diferentes áreas do saber, como a psicologia e a engenharia, por exemplo, e que depois sejam realizados ensaios aleatorizados e controlados”.
“Um aspecto central para que uma app resulte é justamente ter seguido estes procedimentos e a mesma ter sido criada com base no conhecimento das ciências psicológicas”, defende o especialista. “Uma app em saúde mental que não foi desenvolvida com base no conhecimento e método científico da psicologia é apenas uma app de entretenimento”.
“A confiança numa app virá naturalmente do preenchimento destes aspetos e de quem a fez. No caso de apps que permitem consultas a distância, torna-se necessário verificar que o profissional é realmente psicólogo, isto é, tem uma cédula profissional da Ordem dos Psicólogos, o que significa que tem a qualificação profissional e a vinculação a um código deontológico”.
Já Ana Coelho Pinto defende que o número crescente de aplicações que deixam dúvidas quanto à sua confiança e consequente popularização é preocupante, em particular, quando não há uma maior regulação a nível internacional e que seja guiada por autoridades de Saúde, como a OMS.
No pior dos cenários, todo o trabalho alcançado por quem “anda a lutar há anos para fazer com que a saúde mental seja menos estigmatizada, para que haja mais literacia e para fazer com que as pessoas percebam que se precisam de ajuda devem contactar os profissionais corretos” pode ser completamente destruído.
“Temos obviamente a saúde mental ainda em muito mau estado em Portugal. Mas não é porque não se esteja a trabalhar para contrariar essa tendência”, afirma a Ana Coelho Pinto, sublinhando o que está a ser feito pelo Programa Nacional para a Saúde Mental.
“Há que separar com muito cuidado o trigo do joio”, argumenta Ana Coelho Pinto. Para a responsável, é melhor mesmo optar mesmo por profissionais, recorrendo também às linhas telefónicas oficiais de ajuda psicológica, como a do SNS24. "Como costumamos dizer no Festival Mental, «não há saúde sem saúde mental»”.
A questão do acesso a profissionais de saúde mental “é uma questão central e muito problemática no nosso País”, enfatiza Renato Gomes Carvalho. “Sobretudo num quadro em que uma parte muito significativa das pessoas poderá não ter recursos para aceder ao setor privado, onde existe muita oferta de serviços, é preocupante que o serviço nacional de saúde não disponha dos psicólogos de que necessita, nomeadamente nos centros de saúde, para dar resposta à procura”.
Há ainda muito caminho a trilhar para que todas as evidências em relação ao “custo efetividade das intervenções psicológicas em saúde” sejam traduzidas na prática. “Julgo que como cidadãos temos também o papel de exigir que existam esses serviços junto de quem é responsável e dos nossos representantes”, reforça o psicólogo.
“Digamos que da mesma forma que reclamamos e exigimos quando não temos médico de família ou o acesso a outros serviços essenciais em Saúde, também temos de ser exigentes em relação aos serviços de psicologia, que, como temos dito, não são um luxo, mas uma necessidade”.
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