Uma investigação da Reuters concluiu que nos últimos anos dezenas de empresas chinesas criaram software que usa inteligência artificial para tirar partido dos dados recolhidos pelos sistemas de videovigilância espalhados pelas cidades do país. Fizeram-no para responder a uma procura crescente das autoridades por soluções que melhorem os seus recursos de vigilância e permitam tirar mais partido dos dados recolhidos pelas câmaras. Originalmente, esses dados são gravados mas não são tratados, nem permitem relacionar informação pessoal de um indivíduo a uma determinada localização em tempo real, segundo especialistas consultados pela agência.
A Reuters teve acesso aos documentos de 50 concursos públicos, que mostram que dezenas de entidades chinesas, ao longo dos últimos quatro anos, compraram software para melhorar as capacidades das ferramentas que já tinham, personalizando a informação que guardam e que em causa pode estar, em várias situações, a violação de direitos civis.
A referência a este tipo de software surge em vários documentos de concursos públicos, onde é designado como “uma pessoa, um ficheiro”. Num concurso lançado pelo departamento de segurança pública da província de Henan, a terceira maior da China, o que se pretende é descrito assim: "o sistema tem a capacidade de aprender independentemente e pode otimizar a precisão da criação de ficheiros à medida que a quantidade de dados aumenta. (Rostos que estão) parcialmente bloqueadas, mascaradas, ou com óculos, e retratos de baixa resolução também podem ser arquivados com relativa precisão".
Além de unidades de polícia, a Reuters identificou registos de concursos para adquirir este tipo de software em 10 entidades ligadas ao Partido Comunista Chinês, que operam nas áreas política e legal.
Nenhuma destas entidades teve disponibilidade para responder às perguntas da agência sobre a forma como o software é utilizado, mas a documentação deixa algumas pistas. Escolas indicam que vai servir para ajudar a identificar rostos não familiares nas imediações das instituições de ensino.
As unidades policiais de Ngawa, onde a maioria da população é tibetana, referem, por exemplo, que o software vai ser usado para “manter a segurança política, estabilidade e paz social entre a população”. Metade dos concursos analisados indicavam outros detalhes e referiam que o software seria utilizado para compilar e analisar informações pessoais como laços de parentesco, círculos sociais, registos de veículos, estatuto matrimonial ou hábitos de compras.
Os mesmos documentos, detalham características que o software deve ter. Um concurso lançado em dezembro de 2020, por um organis mo ligado ao partido do Governo, indicava a intenção de criar uma base de dados de residentes da minoria Uyghur e de tibetanos, para facilitar o “acesso a informação sobre pessoas envolvidas em terrorismo”. O combate ao terrorismo é aliás um aspeto apontado em mais de uma dezena de documentos, de outros tantos concursos. Em quatro concursos, a Reuters identificou entre os requisitos a capacidade do software para compilar informações de contas individuais em redes sociais.
Fontes contactadas pela agência asseguram que esta é apenas uma amostra das entidades públicas que estão a tentar melhorar as suas ferramentas de vigilância, com recurso a soluções de IA e Big Data. Nesta pesquisa foram revistos 50 concursos, 32 lançados em 2021. Empresas como a Huawei, Sensetime, ou a divisão de cloud da Baidu estão entre os fornecedores que asseguram já software nesta área.
Organizações como a Human Rights Watch acusam a China de estar a caminhar para um nível de vigilância da população que infringe direitos de privacidade e discrimina minorias. A Huawei foi a única das empresas detetadas na investigação da Reuters que comentou o tema, assegurando que “não desenvolve nem vende aplicações que visem grupos específicos de pessoas”.
A investigação também acabou por concluir que o esforço para tirar melhor partido dos dados recolhidos pelas câmaras de vigilância espalhadas pelo país não é novo e as primeiras referências a software “uma pessoa, um ficheiro” surgem logo depois de em 2015 as câmaras terem começado a ser instaladas nas primeiras cidades chinesas.
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