Portugal pode ter um papel mais relevante no contexto da inteligência artificial, têm defendido vários responsáveis na área. Uma das razões para esta convicção é a disponibilidade de talento, outras serão a facilidade que Portugal tem em atrair mais talento e a experiência que algumas empresas de origem portuguesa têm na área.
Da expectativa à ação, surgem agora dois projetos financiados pelo Plano de Recuperação e Resiliência, no âmbito das agendas mobilizadoras, que prometem trazer para o país competências e capacidades de desenvolvimento críticas para responder aos desejos europeus de assumir um papel de maior destaque na IA.
Daniela Braga, fundadora da Definedcrowd entretanto rebatizada de Defined.Ai, foi das primeiras vozes - em 2020 partilhou a ideia num dos palcos da Web Summit - a defender que Portugal tem condições para criar um centro de excelência na área da inteligência artificial e que a Europa tem de apertar o passo, para não continuar a perder terreno nesta matéria.
A tecnológica que lidera vai agora coordenar um projeto de 34,5 milhões de euros, o Accelerat.AI, que pretende desenvolver um produto para o mercado empresarial. “Vamos desenvolver um produto que se chama IA Conversacional e que é um assistente virtual para usar em contact centers e substituir o agente em 80% das perguntas mais frequentes, seja através de voz ou texto”, explica a gestora ao SAPO TeK.
Numa chamada para um call center hoje, o software de atendimento (IVR) inicia todo um caminho que é preciso percorrer, normalmente selecionando opções numéricas, até que o cliente chegue ao sítio certo para resolver a questão. Em metade dos casos, essa “viagem” acaba com o cliente a selecionar a possibilidade de falar com um agente assim que a tem, uma experiência que o IA Conversacional quer mudar, ao conseguir interpretar e responder adequadamente a cada pedido desde a primeira interação.
A solução poderá ser adaptada a diferentes contextos (e não apenas a serviços de atendimento) e a diferentes sectores. Poderá fazer, por exemplo, a diferença nos sistemas de atendimento dos serviços públicos,que hoje não conseguem atender metade dos contactos que recebem, sublinha a responsável. O objetivo é automatizar o serviço ao cliente de forma a permitir “uma resposta 24/7 às perguntas mais frequentes por texto e por voz, em português europeu”.
Criar uma solução deste género em português europeu é a grande tónica-chave do projeto. “O português europeu está muito mal servido nesta área e esta é a peça mais cara do IA Conversacional”, refere Daniela Braga.
“Há sete anos que trabalhamos com clientes que desenvolvem IA Conversacional. O que não estão a fazer é uma abordagem de small data/smart data. Fazem uma abordagem de big data e para os mercados grandes”, explica a responsável, acrescentando que a dificuldade não está por isso em trabalhar a tecnologia, que já existe, mas em posicionar a aposta nesta abordagem de small data e escalá-la.
Nova área de negócio para a Defined.ai
O desenvolvimento deste novo produto também lança a Defined.ai numa nova área de negócio. A empresa desenvolveu uma plataforma inteligente de recolha, enriquecimento, processamento e transformação de dados para sistemas de Inteligência Artificial e Aprendizagem Automática na qual tem focado o negócio. A partir daí, disponibiliza um conjunto de recursos para acelerar a criação de modelos de IA, que os clientes podem personalizar para os mais diversos fins. Na lista de clientes tem algumas das maiores empresas globais que usam estes recursos para melhorar serviços ou criar aplicações.
A evolução para esta nova área de negócio já estava prevista e tinha sido apresentada aos investidores que suportam a ronda de financiamento Série B da empresa. A oportunidade surge agora, mas na altura a Defined.Ai já se tinha posicionado com uma empresa de “data for builders and models for users” e revelado a intenção de criar um Netflix de IA (onde cada cliente se serve das “peças” que precisa), que entretanto acabou por lançar.
Como sublinha Daniela Braga, os desenvolvimentos em torno da inteligência artificial estão concentrados nos países que mais têm investido nestas tecnologias: 55 mil milhões de dólares foram investidos só no ano passado nos Estados Unidos em IA; 17 mil milhões na China e 5 mil milhões no Reino Unido. “O resto é paisagem. O resto do mundo usa estes desenvolvimento porque não tem capacidade técnica e financeira para construir”.
A responsável acredita que o projeto que a Defined.ai vai agora liderar é um importante passo para democratizar a IA e começar a trazer peças fundamentais no desenvolvimento da tecnologia para fora deste triângulo. “O resto do mundo não vai fazer o carro se apenas lhes entregarem as peças, vai apenas usá-lo. Nós estamos a construir a primeira peça para poder entregar o carro completo”
Daqui a três anos, o objetivo é que o produto esteja pronto para ser comercializado. O resultado final vai tirar partido da aposta reforçada que a empresa vem fazendo nos últimos dois anos na expansão das suas bases de dados, com novos modelos de reconhecimento para línguas europeias, incluindo o português de Portugal.
Por agora, preparam-se os testes de reconhecimento de voz em português europeu. “Temos de medir como é que os nossos modelos genéricos se comportam em relação à realidade”, explica Daniela Braga.
“Uma coisa é desenvolver modelos com dados simulados, que são realistas mas não deixam de ser simulados, outra são as condições reais”, sujeitas a ruído e a um conjunto de condições de contexto que podem afetar o rigor dos modelos. “A fiabilidade do primeiro modelo é fundamental para determinar a fiabilidade de todos os outros”.
O consórcio tem clientes (empresas) associados à candidatura que serão os primeiros a partilhar dados de chamadas reais anonimizadas para testes. Fazem também parte deste consórcio a NOS, Devscope, Faculdade de Ciências de Lisboa, Instituto Superior Técnico e respetivos centros de investigação.
Em paralelo avança um outro projeto das Agendas Mobilizadoras na área da IA, liderado pela Unbabel. Daniela Braga admite que chegaram a existir negociações para fazer convergir as duas propostas “mas não foi possível chegar a um alinhamento em termos de ideias, participação, interesse de investimento ou estratégia de abordagem ao mercado”. É como nos casamentos, compara, depois do namoro uns avançam e outros não.
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