Os ataques informáticos à Ucrânia, ainda antes da invasão militar, as iniciativas da Rússia para desviar o tráfego de Internet pelos seus servidores e alguns apelos que se fizeram para bloquear acesso dos russo ao mesmo tempo que se bloqueavam serviços online são apenas alguns dos contornos de um cenário que nos últimos meses tornou ainda mais claro que não há só uma Internet, e que a fragmentação, ou balconização, que se convencionou designar como Splinternet, é já uma realidade.
A propósito do Dia Internacional das Comunicações e da Sociedade da Informação, Ricardo Lafuente responde a algumas perguntas do SAPO TEK e aponta os riscos que existem, mas também o papel que todos os cidadãos podem ter e a esperança numa intervenção da União Europeia para assegurar uma Internet livre e aberta.
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SAPO TEK: Estamos mesmo em risco de ter uma splinternet com uma separação maior da Rússia e da China?
Ricardo Lafuente : Com a invasão da Ucrânia ainda em curso e uma grande incerteza sobre os próximos passos da China face a Taiwan, é arriscado fazer qualquer previsão do que se irá tornar a Internet – só sabemos que muito vai mudar. No entanto, o processo de balcanização da Internet já está em curso há alguns anos. O que se discute agora é o quanto se irá agravar face à realidade geopolítica atual.
Os posicionamentos russo e chinês têm confirmado que chegámos ao fim da era da globalização, devido em parte à reconfiguração geopolítica que se começou a desenhar com a invasão russa da Crimeia e, depois, com o governo Trump. A responsabilidade norte-americana sobre a governação institucional da Internet foi historicamente consagrada num consenso internacional devido à estabilidade política dos EUA, mas a eleição de Trump veio pôr definitivamente em causa essa segurança; a possibilidade do seu regresso nas eleições de 2024 não melhora as perspectivas futuras.
A China já tem o seu “firewall” há décadas, junto com uma vigilância total sobre as comunicações privadas. A população chinesa já vive a realidade de uma Internet profundamente restrita. O Partido Comunista Chinês já havia sido hostilizado por Trump, tendo em resposta cristalizado o seu controlo sobre a Internet nacional, dificultando ainda mais a vida às empresas ocidentais operando em território chinês.
Quanto à Rússia, amiga de Trump mas muito menos de Biden, fica isolada internacionalmente com a invasão da Ucrânia, e o rápido embargo de serviços digitais por parte do Ocidente obriga o país a encontrar formas de colmatar as lacunas. Em 2019 a Rússia já havia implementado a sua Lei da Soberania da Internet, que dá ao governo o poder de isolar a “sua” Internet do resto do mundo, junto com poderes de vigilância e planos para implementar de infra-estruturas digitais separadas da Internet global; já foram realizados testes que confirmaram a capacidade do país para se desligar da Internet global. Sabemos assim que a Rússia se tem estado a preparar para uma reconfiguração das suas redes e serviços nacionais de Internet, redesenhados à medida dos desígnios de Putin.
Neste momento, o isolamento digital da China e Rússia é uma certeza. A questão é qual será a resposta do ocidente a esta reconfiguração, em particular o papel que a União Europeia terá (ou não).
SAPO TEK: Como vê estes movimentos de bloqueio da Internet, que também têm sido feitos por outros países totalitários, mais ou menos de forma pontual?
Ricardo Lafuente : O acesso à Internet, em particular a sua limitação, tem sido uma arma empregue em conflitos, principalmente por regimes totalitários mas também por países democráticos. A censura generalizada, empregue na Coreia do Norte, é um mecanismo de controlo da população eficaz e aterrador. Os cortes gerais de acesso têm sido aplicados para reprimir e controlar dissidências internas, como no Casaquistão (onde estes cortes são legais) ou para pressão política, como em Caxemira.
No Irão, onde a ideia de uma Internet nacional e isolada já tem décadas, a censura e os bloqueios parecem não ter limites. Serviços como o Twitter, Facebook, YouTube ou o Telegram encontram-se bloqueados e a população vê-se obrigada a usar VPNs para aceder a esses sites. Como resposta a uma série de protestos civis, em 2019, o governo foi ainda mais longe e ordenou o encerramento total da Internet naquele território durante uma semana.
Estas medidas têm sido aplicadas regularmente nos conflitos contemporâneos, mas a proximidade da invasão da Ucrânia veio dar ao ocidente outra perspectiva relativamente ao acesso à Internet como arma e mecanismo de controlo.
Um novo e preocupante desenvolvimento é a táctica russa de desviar o tráfego das zonas ocupadas para passar por servidores russos, assegurando a vigilância das comunicações dos territórios ucranianos sob controlo russo. Ao mesmo tempo, o enorme embargo digital aplicado pelas empresas tecnológicas ocidentais, cortando o acesso da população russa a serviços “básicos” de Internet (como receber transferências internacionais, aceder a redes noutro país para teletrabalho ou sequer atualizar apps de telemóvel), é outro desenvolvimento inédito neste conflito, com implicações terríveis para as famílias que se vêem privadas de comunicações e meios de rendimento.
O contexto de conflito e agora de guerra obriga os intervenientes a considerar as suas opções, e a Internet cada vez mais fará parte do arsenal para pressionar o outro lado, seja diretamente (limitando a máquina militar adversária) ou indiretamente (privando a população).
SAPO TEK: É o fim da Internet livre e aberta a todos que foi pensada?
Ricardo Lafuente : O sonho de uma Internet globalmente livre e acessível sempre viveu tremido, mas com a reconfiguração da conjuntura internacional, parece estar mais longe. Mas os factores que a têm posto em causa vão para além deste fenómeno de balcanização.
A União Europeia tem agora um papel essencial nesse desígnio, e tem dado pequenos mas significativos passos para sinalizar uma vontade política de restabelecer uma soberania digital autónoma, que possa ser um bastião de uma Internet livre. O endurecimento de medidas, por parte das autoridades europeias, face aos escândalos extractivistas protagonizados pelas grandes tecnológicas americanas tem sido um sinal positivo, dando alento a uma agenda focada na autonomização face à pesada dependência económica e social das plataformas centralizadoras que usamos todos os dias. É também fundamental parar de ceder ao lobbying da indústria do entretenimento, que tem insistido com sucesso no bloqueio de sites e degradação dos protocolos abertos da Internet. Isto tem sido levado a cabo através da imposição de tecnologias restritivas (DRM) que, junto com ataques regulares aos direitos de acesso, têm posto em causa a ideia de uma Internet livre e aberta.
Porque é precisamente essa liberdade e abertura que tornará possível um renascimento digital da UE na forma de serviços digitais nacionais e europeus, idealizados e postos em prática numa lógica alternativa à da big tech de Silicon Valley. A única saída para continuarmos a beneficiar de uma Internet livre, tal como foi pensada, é um desígnio político europeu que possa empenhar esforços na reimplementação de infra-estruturas e serviços nacionais que sirvam de alternativa a empresas nos EUA susceptíveis de trazer más surpresas com a próxima mudança de governo.
SAPO TEK: Que consequências têm estes movimentos para a cultura digital e liberdade de expressão?
Ricardo Lafuente : A população civil da Ucrânia e da Rússia são particularmente atingidas pelas restrições na Internet. Ambos os países têm a sua infra-estrutura digital sob ataque (no caso da Ucrânia, agravadas pela destruição física), prejudicando drasticamente o dia-a-dia de pessoas que nada quer ter a ver com a guerra.
Na Ucrânia, à ansiedade do quotidiano sob ataque junta-se a suspeição constante de vigilância das comunicações por parte de agentes russos, o que arrasa com qualquer noção de liberdade de expressão. Na Rússia, as sanções motivaram embargos por parte de inúmeras entidades como o Paypal, Patreon, Google, Apple, e muitas outras, o que devastou os rendimentos de qualquer profissional que trabalhe para entidades fora da Rússia, e isolou a população russa das plataformas de que dependem para comunicar e aceder ao resto do mundo. São tragédias cujos contornos ainda não são claros, dado ser a primeira vez que estamos a assistir a um conflito de tão larga escala no que toca ao aparato digital.
SAPO TEK: É possível combater este fenómeno a nível local? O que podem os internautas portugueses fazer?
Ricardo Lafuente : A resposta tem de passar por uma reconsideração da soberania digital nacional e europeia, mas o contexto local também pode fazer a diferença. Estão a florescer comunidades e ecossistemas de ferramentas alternativas, livres e dedicadas a preservar a Internet aberta tal como a conhecemos. O movimento de software livre e open source continua ativo, também em Portugal, e têm surgido desenvolvimentos que dão esperança para uma visão diferente, como é exemplo o Mastodon, uma alternativa ao Twitter que tem proporcionado o aparecimento de inúmeras comunidades e formas de socializar e partilhar online. Estas alternativas existem e o melhor primeiro passo é procurar conhecê-las melhor, experimentá-las e tomar contacto com as comunidades à sua volta.
SAPO TEK: Quais são os principais riscos na evolução da Internet que podem limitar o livre acesso e liberdade de expressão? Englobam aqui também regulação que está a ser preparada na União Europeia?
Ricardo Lafuente : Não sabemos ainda se o percurso atual da UE no sentido de assegurar uma Internet livre e aberta chegará a bom porto. A sua posição tem sido ambivalente, ora posicionando-se como defensora dos direitos dos cidadãos, ora afirmando uma vontade de alargar o controlo do que circula nas redes. Tem havido desenvolvimentos que nos deixam apreensivos, como a recentemente anunciada intenção de pôr em causa a privacidade das mensagens através de vigilância massiva e enfraquecimento da encriptação, com o habitual pretexto de proteger as crianças.
Esta e outras iniciativas exigem uma sociedade civil atenta e informada, objectivo que tem sido dificultado pela natural complexidade dos temas do digital. É por isso que organizações europeias como a EDRi, da qual a D3 faz parte, têm estado em cima do assunto desde o primeiro dia e têm um contributo fundamental para o debate sobre a Internet (e, por conseguinte, a sociedade) que queremos.
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