A Uber é hoje uma alternativa pacífica - ou pelo menos muito mais pacífica que numa primeira fase - ao transporte urbano privado individual. A conveniência da aplicação móvel e o preço, quase sempre, competitivo das viagens ajudaram a afirmar uma alternativa de peso aos táxis. Um conjunto de documentos revelados este fim-de-semana mostram, no entanto, que estes não foram os únicos predicados da Uber para crescer rapidamente e encontrar um espaço para atuar, que a legislação da maior parte dos países nem previa.
A atual administração da empresa decidiu enfrentar a polémica e não perder tempo a negar as estratégias menos convencionais da companhia, para se afirmar no mercado. Já admitiu que existiram “erros” e “falhas”, nas palavras da porta-voz Jill Hazelbaker, que terminaram com o fim da anterior liderança da empresa, pressionada a sair, garante.
“Quando dizemos que a Uber hoje é diferente, isso significa literalmente diferente: 90% dos empregados atuais da Uber juntaram-se à empresa depois de Dara [Khosrowshahi] se tornar CEO” em 2017. "Não temos e não arranjaremos desculpas para comportamentos passados, que claramente não estão de acordo com os nossos valores atuais", admitiu ainda a responsável, em declarações ao artigo do consórcio de jornalistas que investigou e divulgou o caso. Avaliem-nos antes pelo últimos cinco anos e pelos que vierem, pediu também.
Os Uber Files, como já são conhecidos, foram divulgados pelo Consórcio Internacional de Jornalistas (ICIJ), depois de uma investigação que juntou mais de duas centenas de jornalistas e que inclui mais de 83 mil emails, SMS e mensagens de WhatsApp, entre 2013 e 2017.
Mostram que a empresa pressionou governos a alterar leis para conseguir manter o negócio, operou conscientemente fora da lei, iniciando operações em países onde a lei não permitia aquele modelo de negócio, e cultivou uma cultura de violência, como forma de pressão política e sensibilização da opinião pública.
Um dos casos apurados como prova destas afirmações passou-se em Portugal. É citado pelo The Washington Post e recupera uma fase de manifestações de taxistas, pressão da ANTRAL e agressões a vários motoristas da Uber, em 2015, numa altura em que a associação do sector se queixava da concorrência desleal da empresa, ainda a atuar sem regulação.
Segundo os dados divulgados pelo WSJ, há mensagens nos Uber Files onde o responsável da operação local, à data, admitiu que a empresa estava a considerar a divulgação das agressões aos seus motoristas, junto da comunicação social local para tentar "criar uma ligação direta entre as declarações públicas de violência do presidente da ANTRAL (Florêncio Almeida) e estas ações, para degradar a sua imagem pública".
Um responsável da comunicação da Uber, respondeu à ideia, com algo ainda mais radical, sugerindo uma investigação a Florêncio Almeida, "para ver se temos alguma coisa 'sexy' para os media”.
Esta estratégia de aproveitamento das situações de violência terá sido liderada por Travis Kalanick, cofundador da empresa e CEO até 2017, que em várias mensagens mostrou ser a favor de situações que poderiam colocar em risco a segurança dos motoristas de empresa, por causa dos benefícios que daí também poderiam resultar.
Numa troca de mensagens sobre a participação de motoristas da empresa numa manifestação em França, por exemplo, o responsável defendeu que, não obstante os riscos, valia a pena tentar uma ação porque a “violência garante o sucesso”, frisava.
Nos registos de comunicações analisados pela investigação revela-se também uma enorme máquina de influência da Uber, nas mais altas esferas de decisão. Contactos com vários políticos importantes, como Emmanuel Macron, na altura ministro da economia francês, com quem o CEO da Uber contactou diretamente e que terá prometido empenho pessoal para ajudar a resolver o problema da Uber no país. Nas mensagens trocadas e agora reveladas fala-se mesmo num acordo secreto, conduzido por Macron, para desbloquear o impasse com a Uber, em vias de ser proibida em várias cidades. A referência foi feita pelo próprio Macron à empresa, que entretanto já negou alguma vez ter tido tratamento especial do gabinete de Macron.
Mas, França foi apenas um dos países onde a máquina de lobby da Uber atuou. A investigação apurou que entre 2014 e 2016 responsáveis da empresa tiveram mais de 100 reuniões com responsáveis políticos em 17 países.
Revelam esforços ativos para contactos com responsáveis políticos por vias casuais contornando os protocolos, à margem do Fórum Económico Mundial, por exemplo. Ou o pagamento de estudos para dar autoria credível às previsões de impacto económico da atividade da empresa, nos países onde esta queria entrar. Mostram também que a Uber conquistou o apoio de várias personalidades influentes, em países como a Rússia, Itália e Alemanha, cedendo-lhes participações de capital na empresa e que,em 2016, chegou a prever uma verba extra de 90 milhões de dólares para influenciar a opinião pública e pressionar mudanças legais para encaixar o seu modelo de operação.
A investigação aos documentos da Uber envolveu 40 meios de comunicação em 29 países, não há nenhum meio português na lista.
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