Ao alargar o leque de crimes praticados por meio de um sistema informático, a nova lei acaba por abarcar a violações de direitos de autor e direitos conexos através da internet, possibilidades de investigação e detecção efectiva, defende Miguel Carretas, representante da Audiogest na Passmúsica.
Esta é mesmo a área a que Miguel Carretas aponta mais mérito na lei, já que considera que são as violações através de meios informáticos que hoje causam maior dano a todos quantos criam, investem e promovem bens culturais.
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TeK - O que muda nesta proposta face à lei de 91?
Miguel Carretas - Esta Proposta de Lei, a ser aprovada, e ao contrário da anterior tem um objecto bem mais alargado. De facto, se a anterior Lei (Lei 109/91 de 17 de Agosto) era um diploma essencialmente restrito ao direito material - que previa um conjunto de “crimes informáticos”e as respectivas penas - o diploma que se encontra agora em discussão é muito mais que isso.
De facto, além de tipificar criminalmente (com algumas alterações relevantes) os denominados “crimes informáticos” a Proposta de Lei, prevê também todo um regime processual específico não só para estes crimes como também para quaisquer outros crimes, desde que praticados “por meio de um sistema informático”. Dito de outro modo: esta não é só uma lei da criminalidade informática mas também uma lei da criminalidade através da informática”.
Resulta evidente que este novo regime processual (assim estendido a todos os crimes praticados através de meios informáticos) vem corrigir e obviar às dificuldades de obtenção de prova – significativamente agravadas com as recentes alterações ao código de processo penal – em que a investigação de um conjunto muito significativo de crimes (essencialmente os que não permitiam as escutas telefónicas) se tornava impossível pelo simples facto de serem cometidos por meios informáticos.
Estão obviamente neste leque os crimes relativos a violações de direitos de autor e direitos conexos através da internet em relação aos quais o diploma vem abrir (ou reabrir) possibilidades de investigação e detecção efectiva.
TeK - Considera que esta proposta de lei cobre as necessidades neste sector ou é pouco ambiciosa?
M.C. - Com as ressalvas supra referidas que decorrem do facto da minha área de estudo não ser especificamente esta, parece-me indubitável que a Lei (a ser aprovada) corresponderá a um muito significativo avanço em relação ao estado actual que, como acabei de referir, no mínimo, dificultava exponencialmente a obtenção de prova em relação aos crime “não informáticos” cometidos por via de sistemas informáticos.
Sem prejuízo de alguns ajustes técnicos ou críticas pontuais, trata-se de um passo em frente ainda que denote (e bem, na generalidade dos casos) evidentes preocupações de conjugação de interesses e protecção dos direito, liberdades e garantias dos cidadãos.
TeK - Quais os principais "méritos" da nova proposta de lei?
M.C. - Não perdendo de vista a perspectiva dos direitos de autor, é evidente que o alargamento das possibilidades de investigação e das medidas processuais específicas a violações destes direitos praticadas através da internet (alargamento esse que, aliás, não é limitado a estes direitos), constitui o maior mérito desta proposta de lei que, nesse aspecto, tem a coragem de, de algum modo, inverter a tendência das últimas alterações à legislação processual penal.
Em relação ao Direito de Autor e Direitos Conexos e à Propriedade Intelectual em geral, a importância é tanto maior quanto é seguro que são as violações através de meios informáticos que hoje causam maior dano a todos quantos criam, investem e promovem bens culturais, sob as mais diversas formas.
Refiro três exemplos concretos:
- A possibilidade de utilização dos dados de tráfego conservados pelos fornecedores de serviços de comunicações (entre eles os ISPs) e a sua transmissão ou comunicação para efeitos de investigação não só dos denominados crimes informáticos como também de quaisquer outros cometidos por meio de um sistema informático. (NOTA: Cfr. artigos 13.º, 12.º, n.º 1, b) e Lei 32/2008, de 17 de Julho);
- Um mecanismo específico para - independentemente da obrigação geral de conservação de dados, já legalmente prevista – ordenar a preservação de dados (incluindo dados de tráfego) ao prestador de serviços;
- A previsão de uma injunção específica destinada a apresentação ou à concessão de acesso a dados informáticos, injunção essa que pode ser dirigida ao prestador de serviços que tenha o controlo dos dados (designadamente o ISP) e que pode incluir, entre outros elementos a identificação do respectivo utilizador. Refira-se que esta medida só pode ser ordenada por autoridades judiciárias, estando em causa crimes informáticos, outros crimes praticados por meios informáticos ou crimes em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte electrónico.
TeK - E quais as principais "falhas"?
M.C. - Além de, como referi uma ou outra questão “técnica” de pormenor, a proposta parece-me bastante “conseguida” e equilibrada. Gostaria de aproveitar para salientar a forma como os autores materiais deste projecto e, em particular, o Dr. Pedro Verdelho, desenvolveram todo o processo de elaboração da proposta, designadamente as consultas aos potenciais interessados.
TeK - Qual o impacto que a nova lei - se aprovada nestes termos, terá no combate ao cibercrime em Portugal?
M.C. - É sempre difícil prever o impacto concreto de legislação (em particular a penal) em relação aos comportamentos sociais futuros, no entanto é evidente que, pelas possibilidades de investigação criminal que abre e pelas medidas concretas previstas em relação à prova, constituirá um importante instrumento ao serviço dos órgãos de investigação criminal e dos ofendidos / lesados, na protecção de bens jurídicos criminalmente protegidos.
Se efectiva e prontamente aplicada a Lei poderá ainda constituir um sério desincentivo a todos aqueles que a coberto de uma aparente imunidade social criada em torno de uma ilusória convicção de anonimato, utilizam os meios digitais e a internet em particular para praticarem crimes contra as pessoas, contra a honra, contra o próprio sistema informático, contra a propriedade intelectual e contra o Estado.
TeK - Portugal não foi muito rápido a adoptar esta legislação. Qual o impacto deste atraso?
M.C. - O impacto é impossível de quantificar. Lamentavelmente os cidadãos e empresas nacionais - fruto dos tradicionais atrasos de transposição de normas e directivas comunitárias e internacionais ou simplesmente das dificuldades e demoras da implementação de boas medidas de política legislativa – têm de assistir, tantas vezes impotentes, à violação sistemática dos seus direitos, ao arquivamento dos processos por eles intentados e, sobretudo a uma crescente convicção social de impunidade. Este não é um problema específico desta área do direito.
Estão por fazer as estatísticas de processos que não puderam prosseguir por impossibilidade legal de obtenção ou utilização de prova e, a bem de uma sociedade transparente e informada era importante que tal levantamento fosse feito.
Ainda assim aplica-se aqui o ditado popular, antes tarde que nunca!
TeK - A questão do mandado judicial tem sido uma das mais polémicas. Acredita que seria benéfico que a polícia pudesse interceptar sistemas informáticos sem mandado judicial?
M.C. - Penso que a questão não tem sido correctamente colocada. De facto, uma coisa é interceptar uma comunicação privada, entre um emissor e um receptor, no momento em que essa comunicação está a ser efectuada e/ou a mensagem está em transito. Nestas hipóteses fará sentido ter uma protecção de direitos individuais equivalente à que é conferida às escutas telefónicas ou à apreensão de correspondência, ainda que necessariamente adaptada e estendida aos meios informáticos e aos fins da investigação. Nestes casos a regra geral deverá ser a prévia obtenção de autorização do Juíz de Intrução.
Outra questão completamente diferente é o tratamento que devem ter os documentos (em geral) que se encontrem armazenados ou fixados em suporte informático. Em relação a esses penso que fará sentido aplicar os princípios das apreensões de documentos.
Por outras palavras, tenho dificuldade em perceber porque é que um documento enviado por via electrónica, uma vez lido e guardado em suporte informático, deverá ter uma protecção maior do que teria caso o mesmo documento, após recebido e lido fosse impresso e arquivado, por exemplo, num “dossier” encontrado no escritório de uma empresa objecto de buscas. Penso que o tratamento não deveria ser diferente, ressalvadas também as necessárias adaptações ditadas pela própria natureza dos suportes em questão.
TeK - E em relação ao aumento da pena para crimes informáticos contra o estado, parece-lhe que se justifica ? ou esta medida deveria aplicar-se em outros casos.?
M.C. - É evidente que algumas das penas poderão não ser suficientemente dissuasoras, sobretudo porque serão aplicadas sob a forma de pena suspensa, na generalidade dos casos.
Não obstante, de uma forma geral, parece-me que as penas propostas estão coerentes com a gravidade das condutas e o valor jurídico dos bens que visam proteger. Nesta ordem de ideias, parece-me coerente que os crimes que afectam ou podem perturbar funções e actividades públicas, tenham uma pena mais agravada.
Veja ainda outras opiniões que o TeK publicou hoje relativas à lei do Cibercrime e o artigo Lei do Cibercrime: a renovação desejada ou uma ameaça?
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