Tal como se referia já num artigo publicado ontem no TeK, o Bloco de Esquerda apresentou recentemente à Assembleia da República dois projectos-lei na área das Tecnologias da Informação, defendendo a adopção do software livre e o acesso à Internet em Banda Larga como Serviço Universal. O TeK aproveitou a oportunidade para entrevistar o responsável pela elaboração dos diplomas, Daniel Oliveira, procurando perceber as vantagens e limitações das iniciativas propostas.




TeK: As questões relacionadas com as Tecnologias da Informação já têm sido abordadas em outras ocasiões por este grupo parlamentar ou estas propostas são uma "estreia"?

Daniel Oliveira:
O Bloco de Esquerda tem intervido na área a Sociedade da Informação mas, de facto, ao fim de quatro anos de existência, estas são as primeiras intervenções legislativas na área das Tecnologias da Informação.

Recordaria, no entanto, que apresentámos também um projecto-lei que limita a concentração da propriedade dos meios de comunicação social e que tem impacto directo nesta área, sobretudo através da impossibilidade da mesma entidade deter participação na rede fixa de telefone, distribuição por cabo e televisão digital terrestre. Acreditamos que esta limitação não só impedirá situações de abuso de posição dominante como será um incentivo ao desenvolvimento de redes de comunicação alternativas e concorrentes, acelerando o desenvolvimento tecnológico.





TeK: Quais são os principais objectivos subjacentes a estas propostas e o que motivou a sua elaboração?

D.O.:
No que toca à Banda Larga, o objectivo é acelerar a universalização de um suporte técnico de qualidade para o acesso à Internet, garantindo que as populações mais distantes dos centros (e por isso as mais necessitadas) não ficam afastadas de uma das mais importantes fontes de conhecimento e informação deste tempo.


Quanto ao Software Livre, a situação é mais complexa. Actualmente, os serviços e empresas públicas utilizam software não livre, ou proprietário. Por não permitir o acesso ao código-fonte, este software não dá ao utilizador possibilidades que para o Estado são fundamentais: controlar a segurança e o sigilo da informação que armazena, grande parte dela ou reservada ou sensível para a privacidade dos cidadãos, e perde alguns dos mais importantes instrumentos de soberania; não tem a capacidade de escolher as melhores soluções e de trabalhar nelas; vê-se preso a uma relação contratual de dependência em relação a um único fornecedor, que, mais a mais, lhe sai mais dispendiosa do que uma solução de software livre; induz o conjunto dos cidadãos a utilizar os mesmos produtos, limitando a concorrência entre fornecedores.

O presente diploma pretende então definir que os serviços públicos passam a utilizar software livre, que garanta as seguintes possibilidades, sem custos adicionais: possibilidade de executar o programa para qualquer fim; redistribuir cópias; estudar como funciona o programa e adaptá-lo às necessidades do utilizador e melhorar o programa e publicar essas melhorias.

O projecto-lei prevê várias excepções possíveis e uma mudança progressiva e cautelosa, mas que caminhe para a utilização universal do Software Livre nos serviços públicos.




TeK: Considera de facto que a utilização do software open source na Administração Pública poderia ser uma solução, sobretudo num momento em que a informatização de processos está numa fase de desenvolvimento e não inicial? Não querendo entrar em discussões sobre fragilidades ou robustez de programas ou sistemas operativos, acha que a adopção deste tipo de aplicações open-source seria prática e executável?
D.O.:
Quanto mais tarde esta adaptação se fizer pior. E, como se sabe, a migração de um sistema não livre para um livre é tão difícil (talvez até menos) como a migração de um software proprietário para outro. Então a pergunta passa a ser óbvia: está o Estado condenado a uma única empresa de Software? E é isso aceitável? Parece-nos que não, por isso quanto mais cedo se tomar esta opção melhor.


A adaptação será cuidadosa e lenta. Como se pode ler na lei, foram definidos três possibilidades de excepção, sucessivas: não havendo nenhuma aplicação que permita distribuir o programa modificado, será dada uma licença de excepção temporária de 3 anos, sendo apenas renovada se a situação se mantiver; se esta solução for impossível e apenas existirem solução de software proprietário, então a Administração deve escolher software não livre para o qual exista já um projecto de desenvolvimento de tipo livre, caducando a licença de excepção mas este software esteja disponível; na impossibilidade desta última solução, a escolha de qualquer software proprietário (ou sua manutenção) é a solução, mas a licença caducará ao fim de dois anos, apenas sendo renovada depois da constatação de que a solução se mantém.




TeK: Questiono sobretudo o artigo 4º que explicita ser necessário pedir ao Conselho de Ministros "uma autorização de excepção, devidamente justificada, para que possa utilizar software não livre". Isto iria, no mínimo, entupir o Conselho de Ministros com as tais autorizações...
D.O.:
Nenhuma adaptação nesta área se faz sem uma enorme dificuldade. O próprio processo de informatização se está a fazer de forma dolorosa. E, diga-se, por falta de coordenação, muitas das vezes esta informatização limita-se a "digitalizar" a burocracia, não resolvendo nenhum problema. Por isso, toda a política do Estado em relação às tecnologias de informação que utiliza exige maior investimento, investimento mais inteligente e racional e sobretudo uma grande coordenação entre todos os serviços.


Quando optámos por dar a competência de autorizar as excepções ao Conselho de Ministros foi porque seria difícil obrigar tribunais, administração fiscal ou Forças Armadas a depender de um qualquer ministério. Mas, é claro que para que tal seja possível será necessária a criação de um gabinete técnico que faça a avaliação técnica dos pedidos e dê o seu parecer técnico. Mas, pareceu-nos melhor solução deixar para quem terá de gerir este processo, o governo, a regulamentação das soluções. O que nos interessa é que as soluções técnicas tenham a cobertura política do único órgão interministerial.




TeK: Em relação à proposta específica para o Acesso Universal à Internet em Banda Larga acha que a integração deste no Serviço Universal resolveria de forma rápida o atraso na adesão a este meio pelos portugueses?

D.O.:
Não sei se será rápida. Isso não depende exclusivamente da Lei. Mas sei que será mais lenta se deixarmos as respostas exclusivamente ao mercado, sobretudo a um mercado que está distorcido e que, com a venda da rede fixa à Portugal Telecom, ficará ainda mais centralizado. Definir que a Banda Larga faz parte do Serviço Universal, e que, portanto, será uma obrigação do operador concessionário do Serviço Público, é dar aos cidadãos (sobretudo aos que vivem em zonas mais isoladas) um instrumento legal para exigirem um direito: o acesso à rede de Internet em qualidade.


E dá um sinal político fundamental: para o Estado o acesso à Internet em qualidade é tão importante como o acesso ao telefone e à televisão. Tudo isto, não sendo pouco, não substitui uma intervenção reguladora do Estado.




TeK: Embora a proposta refira uma redução de preços para utilizadores em "zonas rurais, zonas de custos elevados, utilizadores com necessidades especiais e utilizadores economicamente vulneráveis ou com necessidades sociais específicas", sabemos que muitos não têm sequer computador e que tecnicamente as condições da rede não permitem disponibilizar banda larga em ADSL e Cabo com cobertura integral de todo o território. Como pensa que poderiam ser resolvidas estas duas questões?

D.O:
Primeiro a segunda questão: não há condições técnicas porque esse investimento, não sendo lucrativo, não foi feito. É isso que se pretende mudar. Também o telefone não estava acessível a todos e, porque passou a ser considerado um serviço universal, passou a estar. A questão é saber se o acesso à Internet é um luxo ou uma necessidade - diga-se em abono da verdade que as soluções são cada vez menores, à medida que o Estado vai vendendo todas as infra-estruturas que construiu durante décadas, como é o caso da rede fixa. Para um país profissionalmente desqualificado e com uma crescente desertificação do interior, o acesso à Internet do maior número de cidadãos é uma urgência.


Quanto à primeira questão, o projecto-lei limita-se a alargar o mesmo princípio definido já para o telefone de rede fixa. De qualquer das formas, não devemos esquecer que nas zonas rurais há mais do que indivíduos: há instituições sociais, de saúde, escolas (para estas já há condições especiais) e colectividades. E muitas das pessoas que vivem nestes lugares não só têm computador como acedem diariamente à Internet. Infelizmente ainda são, de facto, uma pequena minoria.




Fátima Caçador