Por Miguel Oliveira (*)

Em 2025, continuamos a criar textos como se fossem sempre lidos por pessoas. Olhamos para manuais, sites institucionais ou páginas da internet e vemos conteúdos pensados para humanos: linguagem clara, frases explicadas passo a passo, até algumas imagens para ajudar. Mas há uma mudança a acontecer. Cada vez mais, quem “lê” estes conteúdos não são pessoas — são modelos de inteligência artificial, como o ChatGPT, Gemini, Claude ou o Grok.

Estes sistemas leem tudo. Leem mais rápido, comparam mais fontes e processam muito mais informação do que qualquer ser humano. Mas não precisam que o texto seja “bonito” ou empático. Não precisam de explicações longas, exemplos ou imagens. O que preferem são documentos simples e organizados, como os chamados ficheiros “.md” (abreviação de Markdown), que são textos sem formatações complicadas — apenas com títulos, listas e instruções claras, como num manual técnico. Para um modelo de IA, estes ficheiros são mais fáceis de ler e interpretar rapidamente, sem “distrações”.

Isto levanta uma questão importante: se o principal leitor já não é humano, será que temos de começar a escrever de forma diferente? O que acontece quando o conteúdo é feito a pensar nas “máquinas” e não nas pessoas?

A forma como organizamos e apresentamos a informação tem impacto na nossa memória, atenção e bem-estar. Os seres humanos beneficiam de histórias, exemplos, pausas para refletir. Por isso, se deixássemos de criar conteúdos pensados para nós, poderíamos perder uma parte essencial da forma como aprendemos e nos ligamos à informação.

Mas há também oportunidades. Na prática clínica, por exemplo, um psicólogo pode ter dezenas de páginas de notas, relatórios e observações. Se tudo isso estiver num formato organizado e fácil de ler por uma IA, será possível receber rapidamente sugestões, padrões e ideias úteis para apoiar a intervenção. Esta colaboração poderia melhorar o trabalho clínico — mas exige que saibamos preparar a informação de forma compatível com estas ferramentas.

Neste momento, talvez estejamos num ponto estranho: continuamos a escrever como se tudo fosse lido por pessoas, mas é possível que quem mais “lê” hoje em dia sejam as “máquinas”. E o mais curioso é que muitos dos conteúdos que produzimos podem já não estar totalmente ajustados, nem para humanos, nem para sistemas de inteligência artificial. Podemos estar a escrever para um público que, na prática, já não é o principal.

Talvez o caminho seja criar dois formatos: um para humanos, com explicações e empatia; e outro para máquinas, com dados organizados e bem estruturados. Em vez de escolher entre um ou outro, podemos aprender a escrever para ambos?

A verdade é que os modelos de IA estão a tornar-se os maiores consumidores de conteúdo digital. E isto exige uma mudança na forma como pensamos e organizamos a informação. Temos de aprender a fazer esta transição sem perder o que é essencial: garantir que, mesmo num mundo cada vez mais digital, continuamos a criar conhecimento que serve verdadeiramente as pessoas.

(*) Coordenador do Programa PsicologIA na Transformação Social da Ordem dos Psicólogos Portugueses