Por Eduardo Freire Rodrigues (*)

2024 ainda agora começou e o setor da saúde já dá sinais de enorme mudança: em Portugal, uma nova organização do serviço de saúde; um pouco por todo o mundo, um novo fôlego de fusões e aquisições promete reestruturar a organização dos prestadores; e, em todo o lado, os profissionais de saúde estão a assumir novas funções, enquanto o desenvolvimento tecnológico acelerado a que assistimos nos últimos anos dá sinais de continuar.

Falar em desenvolvimento tecnológico na saúde é também sinónimo de falar em dados e as expectativas dos doentes em relação à portabilidade destes dados têm sido alvo de inúmeras discussões técnicas, políticas e académicas. No último mês de dezembro, o Parlamento Europeu apoiou formalmente a criação do Espaço Europeu de Dados de Saúde que deverá permitir aos cidadãos controlarem os seus dados pessoais relacionados com a saúde e facilitar a partilha segura para fins de investigação e altruístas (ou seja, sem fins lucrativos). A próxima meta é garantir todos os países têm serviços nacionais de acesso a dados de saúde operacionais, até ao final de 2025.

O velho problema da falta de recursos e a esperança da tecnologia

A escassez de profissionais não é uma novidade. O diretor regional da OMS para a Europa sublinhou que a crise de profissionais, outrora uma “preocupação iminente”, é hoje uma “realidade gritante”. A declaração foi feita na sequência da publicação de um relatório que salienta a tendência para os próximos anos: mais de 40% dos médicos estão perto da idade da reforma num terço dos países da Europa e da Ásia Central, o que representa uma ameaça para a sustentabilidade do setor.

Em resposta a tais desafios, a tecnologia tem vindo a intervir. Assistentes virtuais, sistemas de suporte à decisão clínica, manutenção ou tradução de registos médicos são algumas das áreas mais desenvolvidas. Para além da alteração de tarefas, estamos a assistir a uma mudança de paradigma no que diz respeito ao papel dos profissionais de saúde.

Muito foi feito (e publicado) em 2023 neste campo. Desde um modelo de machine learning que prevê padrões de perda de peso após cirurgias bariátricas, até um algoritmo que prevê a necessidade de cuidados intensivos para os doentes. Além disso, uma ferramenta de processamento de linguagem foi capaz de identificar os determinantes sociais de doentes com Alzheimer e demência, utilizando registos médicos complexos, enquanto um estetoscópio "inteligente" atingiu 90% de precisão na identificação de insuficiência cardíaca, abrindo perspetivas de deteção precoce.

Dois estudos recentes destacam o potencial da IA para distinguir se os nódulos pulmonares detetados numa TAC, são cancerígenos e, embora muitos outros exemplos pudessem ser aqui enumerados, destaco dois ensaios clínicos, que integram a lista dos mais promissores da revista Nature para o ano que agora começa: no primeiro, os investigadores querem confirmar a hipótese de que IA aplicada às radiografias do tórax, assim que estas são tiradas, pode reduzir o tempo de diagnóstico até 50%; o segundo vai avaliar a utilização de um modelo de IA para ajudar os médicos no serviço de urgência, prevendo o risco de mortalidade.

“E eu?” – perguntam os médicos

A acompanhar o ritmo acelerado da transformação, surgem as questões sobre o futuro da medicina: pode a inteligência artificial substituir os médicos? Será o domínio desta tecnologia um fator diferenciador entre estes profissionais?

Sobre esta temática, um artigo publicado no jornal Digital Health aponta a colaboração entre seres humanos e a inteligência artificial como chave para o sucesso, fundindo as valências cognitivas dos profissionais com a capacidade analítica da IA. Em suma, os autores advogam que a adoção de uma abordagem "human-in-the-loop" (HITL) garante que os sistemas são dirigidos, comunicados e supervisionados por especialistas, mantendo, assim, os padrões de segurança e qualidade necessários.

“E é a inteligência artificial capaz de garantir a fiabilidade necessária para realmente integrar as instituições de saúde?” – perguntamos todos

As limitações apontadas à inteligência artificial são multifacetadas. Os algoritmos são manifestamente fracos no que diz respeito ao contexto e à particularidade – dois aspetos críticos para a segurança e eficácia dos cuidados de saúde, que requerem a transposição de conhecimento, conceitos e princípios médicos para contextos reais. Os profissionais de saúde reconhecem o potencial de ferramentas como o ChatGPT na prática clínica, mas subsistem preocupações quanto à credibilidade e às fontes de informação, o que dificulta a sua plena integração. Além disso, a sensibilidade da IA a diferentes formulações de perguntas, a dificuldade em lidar com pedidos ambíguos, os enviesamentos e as questões de transparência agravam ainda mais estas limitações.

Por último, mas não menos importante, um estudo recente salienta que os atuais parâmetros de referência da IA não têm relevância clínica direta e não abrangem tarefas essenciais associadas aos médicos. Significa isto que os atuais parâmetros de referência não se alinham, como seria desejável, com os objetivos de automatização da inteligência artificial em contextos clínicos.

E por falar em desafios, permanecem por responder as questões regulamentares. Para os profissionais de saúde há rigorosos códigos de ética e conduta, mas verifica-se a inexistência de leis ou orientações globalmente padronizadas para a utilização da IA. Assim, determinar a responsabilidade - quer seja do fabricante, do utilizador ou do responsável pela sua manutenção – é ainda uma caixa negra.

Feito o balanço, a certeza de que 2024 chegou recheado de oportunidades. A primeira regulamentação de inteligência artificial já foi aprovada pelo Parlamento Europeu e será, progressivamente, aplicada aos dispositivos médicos. A infraestrutura tecnológica hospitalar e os modelos de cuidados serão, progressivamente, mais dependentes de AI, dando aos médicos mais tempo para serem médicos, fazendo aquilo em que são diferenciadores: prestem cuidados com qualidade e centrados na pessoa.

(*) Médico, CEO e cofundador da UpHill