Por Gonçalo Cerejeira Namora (*)

A pandemia Covid-19 motivou a suspensão ou alteração temporária do enquadramento legal da neutralidade da rede em Portugal, nomeadamente com as medidas aprovadas pelo Decreto-Lei n.º 10-D/2020, de 23 de Março. Estas medidas excepcionais e temporárias permitem aos operadores que fornecem serviços de acesso à internet a implementação de medidas de traffic shaping, isto é, a alteração da qualidade e velocidade dos serviços de acesso à rede em determinadas aplicações, serviços ou conteúdos.

O que é a neutralidade da rede?

O princípio da neutralidade da rede implica uma obrigação imposta a todos os operadores de tratarem de forma igual todo o tráfego online, sem qualquer filtro relativamente ao tipo de serviços, conteúdos ou fontes dos mesmos, bem como sem qualquer segregação do receptor ou do tipo de equipamento utilizado.

A garantia da neutralidade da rede visa garantir que todos as aplicações e conteúdos são disponibilizados e acessíveis por qualquer utilizador sem barramento ou diferentes velocidades, por exemplo.

Qual é a sua génese e a sua importância?

Muito se debateu nos últimos anos acerca dos “pros” e “contras” da neutralidade da rede. Essencialmente, digladiam-se as organizações de menor dimensão que pretendem ter o mesmo impacto e tratamento na disponibilização e acesso de conteúdos na rede, almejando uma internet “livre” como motor da inovação e desenvolvimento; com os interesses económicos dos operadores a nível mundial que procuram uma optimização dos seus lucros com a distribuição preferencial de alguns conteúdos ou aplicações em função da disponibilidade de investimento de quem os promove.

No plano mundial, assistimos à abolição da legislação norte-americana que impunha a neutralidade da rede, permitindo aos operadores distinguir conteúdos e serviços online, podendo mesmo decidir bloquear alguns deles e privilegiar outros.

Ao invés, a União Europeia adoptou em 2016 o principio da neutralidade da rede e dotou-o de obrigatoriedade com a aprovação do Regulamento (UE) n.º 2015/2120, com aplicação directa vertical e horizontal em todos os Estados Membro.

Quais as excepções?

Em Portugal, em virtude da imposição europeia, todos os operadores estão obrigados a tratar de forma igualitária o tráfego independentemente do seu conteúdo ou origem, ficando assim impedidos de barrar acessos ou limitar velocidades em quaisquer conteúdos, aplicações ou serviços, bem como de oferecer priorização de tráfego mediante o pagamento de qualquer quantia.

As excepções ao princípio estão também previstas para situações específicas como assegurar a legalidade do conteúdo no âmbito do direito penal, casos de preservação da segurança e da integridade da rede ou situações em que se revele necessária para minimizar o congestionamento da rede, que terá necessariamente de ser temporário ou excecional. Quanto a este último ponto, caso se o mesmo se verifique reiteradamente, o operador poderá ver-se obrigado a investir no aumento de capacidade da sua rede, ficando impedido de invocar a excepção.

Numa zona cinzenta, aparentemente permitida por não haver sido até agora expressamente proibida, estão as ofertas de vários operadores dos chamados tarifários de “zero rating”, isto é, que pacotes que privilegiam determinados serviços ou aplicações pelo facto de os dados consumidos nesses serviços ou aplicações não serem contabilizados nos limites (normalmente mensais) de tráfego móvel contratado. São desta prática exemplos os tarifários com tráfego ilimitado para utilização de aplicações como Whatsapp, Facebook e Youtube. Aqui, caberá às autoridades responsáveis em cada Estado Membro avaliar a sua conformidade, bem como os seus efeitos no direito dos consumidores em aceder livremente aos conteúdos, assim como na concorrência do mercado.

Quais as alterações aprovadas?

Em virtude da pandemia Covid-19, Portugal aprovou medidas excepcionais que que têm como principal objectivo garantir a qualidade do acesso a serviços e conteúdos na internet considerados prioritários, possibilitando a assim a limitação ou suspensão do acesso a outros conteúdos ou serviços.

Estas medidas, que se espera e acredita que sejam efectivamente temporárias, consubstanciam na verdade uma suspensão do princípio da neutralidade da rede que já se tem verificado na redução da qualidade de quase todos os serviços de streaming, por exemplo.

O actual panorama, com recurso generalizado do teletrabalho aliado à paralisação das escolas, muito tem contribuído para uma utilização substancialmente mais elevada da internet que motivou a necessidade desta suspensão temporária por forma a garantir o acesso ininterrupto a serviços ou conteúdos considerados essenciais. Entre eles estão o acesso a email e motores de pesquisa, jornais online, lojas online, plataformas de procura de emprego, serviços de homebanking, serviços de administração pública online, serviços de comunicação instantânea, bem como chamadas e videochamadas em qualidade standard.

Por outro lado, fique assim permitida aos operadores a possibilidade de limitarem o barrarem total ou parcialmente o acesso a serviços de streaming de vídeo (como Netflix, HBO ou YouTube), acesso a serviços de jogos online (como PlayStationNetwork, Steam ou Xbox Live), e também ligações P2P.

Não obstante existirem dados que demonstram práticas de traffic shaping dos operadores nacionais anteriores a esta suspensão, muitas vezes “escudadas” ao abrigo das excepções para “minimizar o congestionamento da rede”, espera-se que agora adoptem práticas rigorosas e proporcionais, na medida do que for estritamente necessário para garantir a finalidade do diploma de vigência temporária, bem como que não as protelem no tempo assim que o estado de emergência terminar.

Quais as obrigações dos operadores?

Em virtude das alterações e da suspensão da neutralidade da rede, os operadores ficam obrigados a, no prazo de 5 dias úteis, divulgar em local visível nos seus sites quais as medidas adotadas. Além disso, ficam também obrigadas a comunicar as medidas ao Governo e à Autoridade Nacional de Comunicações (ANACOM) previamente à sua implementação e, em casos excepcionais, nas 24h seguintes.

Este dever de transparência impõe-se, por forma a garantir que a suspensão e aplicação de medidas excepcionias não possam ser utilizados abusivamente para alcançar outros objectivos que, até agora, apenas eram permitidos para lá do Oceano Atlântico.

Nesse sentido, o papel da ANACOM na fiscalização assume particular preponderância para impedir a utilização abusiva das medidas de suspensão da neutralidade da rede durante o Estado de Emergência.

(*) Advogado na Sociedade de Advogados Cerejeira Namora, Marinho Falcão

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