Por Rafif Srour (*)
Chegámos ao término do nosso primeiro ano de convivência com o ChatGPT 3.0, o grande modelo de linguagem avançado lançado pela OpenAI que colheu êxito imediato ou, no mínimo, que provocou sensação. Só na semana que se seguiu ao lançamento, o ChatGPT 3.0 registou mais de 1 milhão de utilizadores, suscitando um misto de entusiasmo e ceticismo, para não falar em acesos debates em torno da regulação e ética. Apurar o número exato de artigos a discorrer sobre o ChatGPT (ou quaisquer outros termos associados, como grande modelo de linguagem e IA generativa) neste último ano é uma tarefa hercúlea, se não, impossível, quando mais não seja, dada a sua substancial quantidade que aumenta de dia para dia (segundo a pesquisa do Google Scholar, ultrapassa os 6000). Certo é que a IA generativa se afigura como o catalisador de uma mudança de paradigma, e a pergunta que nos devemos fazer é se estamos preparados para uma mudança tão significativa.
O desenvolvimento da IA ao longo dos anos tem sido predominantemente centrado em tarefas específicas, como aplicações na área dos veículos autónomos e da medicina de precisão, entre outros. A IA generativa e modelos como o ChatGPT demonstram um leque mais alargado de capacidades, que lhes permite criar e inovar em diferentes domínios. Tradicionalmente, pensava-se que determinados atributos humanos estivessem fora do alcance da IA, por exemplo, competências cognitivas e emocionais como a criatividade, o pensamento crítico, a resolução de problemas, a empatia e a inteligência emocional. A verdade, porém, é que a IA já começa a invadir esses domínios, revelando ter a capacidade de criar novos géneros musicais, de escrever ensaios imaginativos e até de resolver problemas tão complexos como otimizar a logística na gestão da cadeia de abastecimento e/ou desenvolver soluções inovadoras na conservação ambiental.
A tecnologia por detrás da evolução do ChatGPT é verdadeiramente pioneira.
Este diagrama foi criado pelo autor com base na seguinte referência.
Esta evolução começou na década de 1980 com as primordiais Redes Neuronais Recorrentes (RNN) a prever o seguimento de uma frase partindo de uma sequência de letras e palavras de diferentes tamanhos. É algo fundamental para tarefas como a modelação da linguagem e a geração de texto. Na década de 1990, as redes de Memória de Curto Longo Prazo (LSTM) vieram melhorar a retenção da memória (ou seja, a capacidade que a rede tem de «recordar» e, depois, utilizar a informação proporcionada pelos elementos precedentes na sequência) em sequências mais extensas, apesar das suas competências linguísticas limitadas. A grande conquista deu-se em 2017 com a introdução das Redes Neuronais Artificiais, que aproveitavam as relações contextuais presentes no texto com grande perícia, abrindo caminho aos modelos Artificiais Generativos Preformados, GPT e GPT-2. Estes últimos eram capazes de compreender padrões complexos e gerar textos coerentes, muito embora não fossem isentos de problemas relacionados com ideias preconcebidas, entre outros. O GPT-3 marcou mais um progresso em novembro de 2020, produzindo respostas indistinguíveis das do ser humano em várias línguas e contextos. Seguiram-se várias iterações do GPT-3 (InstructGPT, um ChatGPT baseado no GPT-3.5 e o mais recente ChatGPT-4.0 em março de 2023), cada qual constituindo um aperfeiçoamento da capacidade do modelo de interagir mais fluentemente e com maior recetividade.
Resta ainda apurar com precisão quais são as ramificações desta tecnologia em diferentes indústrias, entre as quais, de cuidados de saúde, finanças, entretenimento, produção, transportes, retalho e educação. A introdução do ChatGPT e tecnologias afins começou por afetar o setor do ensino superior, suscitando uma enorme variedade de reações, da clara resistência à cautelosa aceitação. Docentes e instituições esforçavam-se por conservar a integridade académica enquanto os estudantes, altamente competentes na exploração das paisagens digitais, depressa aproveitaram essas ferramentas para contornar as tradicionais formas de avaliação. A resultante corrida às armas entre as tecnologias de supervisão e os novos métodos de batota inovadores veio destacar uma incongruência fundamental entre as capacidades tecnológicas em evolução e os paradigmas de ensino ultrapassados.
No decorrer do ano, tornou-se evidente para as instituições académicas que conviria mais reajustar-se e integrar a IA generativa nas plataformas de ensino, desse modo, fomentando ambientes de aprendizagem mais personalizados e interativos, do que continuar a resistir à vaga tecnológica. Recentemente, a sofisticação do GPT-4.0 simplificou a criação de assistentes virtuais feitos à medida das necessidades concretas dos docentes. Eu próprio desenvolvi uma contraparte digital baseada na IA, utilizando os meus conteúdos de ensino para formar um docente virtual que não tardará a participar nas minhas aulas. Mas não sou só eu; há cada vez mais instituições a ensinar responsabilidade virtual e a ajudar os estudantes a aprender a dominar o poder da IA com ética e eficácia.
Na indústria farmacêutica, por exemplo, a capacidade da IA de gerar novas formulações de fármacos não só é eficaz, mas representa inclusivamente uma extensão do conhecimento humano. Um dos melhores casos é a descoberta, em novembro de 2020, da halicina, um inovador antibiótico identificado através de algoritmos de IA no MIT. Este feito desafiou e aprofundou a forma como entendemos a farmacologia, uma vez que a halicina tem um funcionamento diferente do da maioria dos antibióticos, sendo eficaz contra uma variedade de bactérias resistentes. De igual modo, na investigação científica, a capacidade da IA de processar e analisar grandes quantidades de dados pode facilitar o nascimento de novas teorias e perceções, por um lado, acelerando o ritmo a que se fazem descobertas e inovações e, por outro, expandindo os limites do nosso conhecimento e da nossa capacidade de alcançar novas metas nos vários campos da ciência.
Os modelos GPT revolucionaram a comunicação, quebrando as barreiras linguísticas e democratizando o acesso à informação com a tradução de várias línguas em tempo real e a criação de conteúdo. Além disso, dotados da capacidade de resumir documentos complexos e gerar conteúdo ao alcance do utilizador, estes grandes modelos de linguagem transformaram a forma como pessoas e empresas processam e assimilam grandes volumes de dados. A ideia é passar do processo de desenvolvimento baseado na escrita e mão de obra intensiva para a conceção e curadoria de ideias.
Neste último ano, enquanto alguns expressaram a preocupação e até o receio de que o desenvolvimento da IA possa conduzir a uma perda e externalização de empregos, outros censuraram os limites e desafios da IA generativa, nomeadamente, ideias pré-concebidas, lacunas na representatividade e a potencial disseminação da desinformação. Sim, alguns empregos poderão tornar-se obsoletos graças à IA generativa, mas não nos esqueçamos da não tão distante Revolução Industrial e dos seus ensinamentos: os avanços tecnológicos dão muitas vezes origem a novas funções e indústrias.
Para abordar problemas relacionados com as ideias pré-concebidas, é importante compreender que a qualidade dos resultados destes modelos está diretamente associada aos seus dados de formação (a qualidade do que entra determina a qualidade do que sai); a disponibilização de «melhores» dados levará mais provavelmente à geração de resultados mais fiáveis. Neste momento, o mais importante é a necessidade urgente de se criar a devida legislação e regulação para mitigar a má utilização e impor padrões de ética. Para ilustrar esta questão, imagine quais seriam as consequências da utilização da IA para propagar falsas narrativas durante um importante ato eleitoral. Sem uma rigorosa regulação, essa desinformação fomentada pela IA poderia não só influenciar significativamente a opinião pública e perturbar os processos democráticos, como também exacerbar a contenda digital iludindo as pessoas incapazes de distinguir as maquinações geradas pela IA da informação factual.
Na minha opinião, ainda é muito cedo para perceber se nós, enquanto sociedade, estamos prontos para acompanhar a célere evolução das tecnologias de IA. Mais do que reconhecer e abordar os desafios que nos impõe a IA generativa, todos temos de aceitar a IA em geral. À semelhança do que aconteceu na Revolução Industrial, a evolução das indústrias e o surgimento de novas funções, obriga-nos a fazer uma análise profunda da nossa infraestrutura social, desde os sistemas de ensino até aos quadros jurídicos, e a determinar se está ou não a evoluir a par e passo com o rápido desenvolvimento da IA. Esse é o cerne do nosso percurso coletivo em direção a um futuro de coexistência de seres humanos e tecnologias de IA avançadas.
(*) Vice-diretora da IE School of Science and Technology (IE University)
https://www.linkedin.com/in/rafif-srour-401b1144/
Nota da autora: Este artigo versou tanto sobre o processo como sobre o próprio conteúdo. Ao refletir sobre o meu percurso, lembrei-me de que levei mais de uma semana a aperfeiçoar o meu primeiro artigo em torno do ChatGPT. Em contrapartida, esta peça passou de conceito a publicação em apenas dois dias. No primeiro dia, o ChatGPT 4.0 foi parte integrante do meu trabalho, ajudando-me a estruturar as ideias, a aprimorar secções do texto, a identificar fraquezas e a fazer melhorias. Essa colaboração suscitou uma pergunta essencial: que partes deste artigo são claramente minhas e que partes foram influenciadas pelo ChatGPT? As linhas que separam o meu contributo criativo da intervenção da IA esbateram-se. Depois de concluir o primeiro rascunho, deixei-o a repousar na minha secretária, mas não consegui deixar de pensar nele, sempre a reformular e a reinventar excertos na minha cabeça, na tentativa de conseguir um fio condutor coerente e lógico. No dia seguinte, cheguei à minha secretária com uma nova perspetiva e refiz o artigo inteiro no que esperava ser o meu estilo singular – noção que agora pondero com alguma incerteza.
Esta experiência marca uma mudança de paradigma na minha abordagem à escrita, propondo uma nova era em que a colaboração com a tecnologia da IA não só preserva, como até aperfeiçoa as capacidades de narração que nos são inerentes como seres humanos.
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