Por Tito de Morais (*)

 

Hoje, a Comissão de Liberdades Cívicas, Justiça e Assuntos Internos da União Europeia votou favoravelmente e por larga maioria (48 votos a favor, 4 contra e 4 abstenções) os textos acordados durante as negociações interinstitucionais sobre o Regulamento Geral de Protecção de Dados da União Europeia. Da redacção actual resulta, na prática, que os jovens Europeus menores de 16 anos necessitarão de consentimento parental para usar os serviços da sociedade de informação e verão o acesso a muitos desses serviços vedados. Neste artigo procuro explicar como se chegou aqui e porque os resultados serão nefastos.

 

Processo Nada Transparente

O processo de redacção do texto foi acompanhado com interesse ao longo de quase quatro anos por, entre outros, especialistas e organizações no domínio da educação e de protecção da criança. A versão original do texto proposto pela Comissão Europeia e a versão alterada pelo Parlamento Europeu definiu o requisito de idade para consentimento dos pais aos 13 anos para as crianças que desejam utilizar os serviços da sociedade da informação, o que constituía na prática um alinhamento com a legislação americana (COPPA – Children’s Online Privacy Protection). No entanto, durante o fim de semana passado soube-se que o requisito de idade para consentimento dos pais havia sido alterado para os 16 anos. John Carr, especialista em segurança online de crianças e jovens, revelou como tomou conhecimento da situação, como esta já andava há algum tempo a ser cozinhada nos bastidores, sem qualquer suporte científico consubstanciado pela investigação, sem qualquer debate ou consulta pública.

 

Uma Campanha em Contra-Relógio

Apanhados de surpresa, alguns especialistas e organizações lançaram uma campanha a que me associei, incluindo uma petição que em três dias angariou cerca de 2.000 assinaturas, visando abrir a questão para um debate ou consulta pública onde pudessem expressar as razões pelas quais tal decisão deveria ser revertida. Porque esta medida acabará por afectar não apenas os Europeus, nos Estados Unidos a  FOSI (Family Safety Online Institute) também se associou à iniciativa e Larry Magid, um dos pioneiros da segurança online de crianças e jovens, também se manifestou criticamente relativamente à medida. No Facebook e no Twitter, a campanha adoptou a hashtag #13to16Privacy. Os meus esforços incluíram um email para cada um dos deputados Portugueses ao Parlamento Europeu dos quais não recebi uma única resposta.

 

O Artigo 8

A redacção do Artigo 8 do Regulamento Geral de Protecção de Dados da União Europeia, o artigo da discórdia:

Condições aplicáveis ao consentimento da criança em relação aos serviços da sociedade da informação

Quando o Artigo 6 (1)(a) aplica-se, em relação à oferta de serviços da sociedade da informação directamente a uma criança, o tratamento de dados pessoais de uma criança com idade inferior a 16 anos, ou se prevista na lei do Estado-Membro, um menor idade, que não deverá ser inferior a 13 anos, somente será lícita se e na medida em que tal consentimento é dado ou autorizada pelo detentor do poder paternal sobre a criança.

Esta é uma má decisão, pelas razões abaixo apontadas.

 

Falta de Harmonização

Deixando aos Estados Membros a possibilidade de escolher entre os 13 e os 16 anos como idade mínima para a exigência do consentimento parental, resultará numa falta de harmonização, reduzindo largamente o valor acrescentado que a União Europeia traz aos sectores da educação e da protecção de crianças e jovens. Trata-se pois de uma oportunidade desperdiçada.

 

Incentivar a Mentira

A investigação, nomeadamente a financiada pela União Europeia, tem-nos indicado que as restrições etárias são ineficazes, levantando mesmo a possibilidade da sua remoção poder ser a forma mais eficaz de melhorar a segurança online. Dado que tais restrições têm por consequência a utilização clandestina de muitos serviços online, levando as crianças a mentir relativamente à sua idade para usar sites, plataformas e aplicações “proibidas”, argumenta-se que seria mais prático identificar os utilizadores mais novos e desenvolver medidas de protecção fáceis de usar e a eles dirigidas. A título de exemplo, refiram-se as configurações de privacidade mais restritas que o Facebook disponibiliza, por defeito, nas contas do menores de 18 anos. Por outro lado, é sabido que actualmente muitos utilizadores menores de 13 anos mentem relativamente à idade para serviços, plataformas e aplicações com este limite etário.

Esta medida terá como resultado um aumento nesse número, dado que os jovens entre os 13 e os 15 anos irão mentir quanto à sua idade em vez de solicitarem o consentimento parental para continuarem a usar os serviços da sociedade de informação. Por outro lado, tornará muito mais difícil aos operadores desenvolverem orientações e ferramentas adequadas à idade no sentido de garantir experiências online que protejam a segurança e a privacidade.

Cabe ainda perguntar, o que acontecerá com aqueles utilizadores que há muito acedem a estes serviços e que a lei entrando em vigor, terão de deixar de o fazer.

 

Dificultar o Acesso a Serviços de Apoio

A Internet representa uma bóia de salvação para muitas crianças e jovens obterem a ajuda de que precisam quando sofrem de abuso, vivem com parentes dependentes de drogas e álcool ou procuram serviços confidenciais de apoio para LGBTs, para referir apenas alguns. Apesar de estar prevista uma excepção para serviços de aconselhamento directo, sabemos que o apoio dos pares através dos média sociais desempenha muitas vezes um papel positivo para os jovens que estão sob coacção física ou mental e que assim passarão a não dispor desse apoio que os podem encorajar a procurar ajuda profissional.

 

Ignorar a Voz de Crianças e Jovens

Dada a prevalência da Internet na sociedade moderna, os adolescentes com 13 ou mais anos de idade há muito que usam serviços online para aceder a informações importantes sobre eventos actuais, realizar pesquisas para os seus trabalhos escolares, e para se expressarem sobre questões de importância social, política e cultural, sem ser obrigados a obter o consentimento parental de cada vez que usam uma nova aplicação ou website.

Estes são direitos fundamentais, tal como expressos nos artigos 12, 13 e 14 da Convenção dos Direitos da Criança adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas e ratificada por Portugal e pela recente publicação do Conselho da Europa, ambas sublinhando a importância das crianças terem o direito a fazer ouvir a sua voz em decisões com impactos no seu futuro, tais como os requisitos de idade para o consentimento parental.

Estamos portanto perante uma violação flagrante destes direitos e num tempo em que se apela à participação cívica dos jovens, esta é uma medida típica do tipo “olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço”. Um péssimo exemplo quando se fala da importância de liderar dando o exemplo.

 

Minar o Papel da Escola

As escolas desempenham um papel importante na orientação das crianças e adolescentes quanto ao uso seguro e responsável das plataformas da sociedade da informação, tais como os média sociais. Como a sociedade, incluindo as instituições governamentais, usam de forma crescente os média sociais para divulgar informações importantes, tais plataformas desempenham um papel crucial ao ajudar ao desenvolvimento das competências de literacia de que os jovens necessitam para desempenhar um papel activo no mundo de hoje e de amanhã.

A burocracia adicional e necessária para obter a permissão parental antes que qualquer professor possa usar as ferramentas da sociedade da informação na sala de aula com crianças menores de 16 anos de idade minará qualquer possibilidade das escolas cumprirem esse papel. Por outro lado, impedirá o fluxo valioso de orientação que os jovens são capazes de levar para casa, para informar os seus pais e irmãos.

 

Proibir em Vez de Ensinar

A Internet é uma ferramenta notável para as crianças explorarem o mundo que as rodeia, aprenderem a expressar-se e a interagir de forma segurança e confiante com os seus amigos online. Apoiar a sua aprendizagem e desenvolvimento é uma responsabilidade partilhada por pais, professores e outros adultos de confiança, das próprias crianças, mas também dos fornecedores de serviços online que devem garantir que as suas ferramentas ajudam os adolescentes a fazerem as escolas certas relativamente à sua segurança e privacidade.

Dadas as ferramentas e orientações corretas, os adolescentes podem desenvolver competências críticas de auto-expressão e gestão de relacionamentos no ambiente online. Investigações recentes indicam que os adolescentes são em geral muito bem informados sobre como controlar a informação que partilharam online - mais até do que muitos adultos.

Ao decidir desta forma, a União Europeia desperdiça uma excelente oportunidade de obrigar os Estados a incluir o ensino e a formação de professores e formação parental no domínio da protecção de dados, da segurança e privacidade online nos curricula escolares. Optou pelo caminho mais fácil: proibir em vez de ensinar.

A Internet têm proporcionado às crianças um lugar seguro para explorar e aprender e, de facto, de acordo com o renomado investigador Dr David Finkelhor, do Crimes Against Children Reasearch Center da Universidade de New Hampshire, nos EUA, parecem ter tido um impacto significativamente positivo em muitos aspectos ao nível da segurança e do comportamento. Com esta medida, ignorando tudo o que refiro acima, as crianças entre os 13 e os 15 anos de idade confrontam-se com um obstáculo que na prática lhes dificultará continuar a usar a Internet das formas positivas enumeradas, como o têm feito desde há muitos anos.

A terminar, dado que os Estados membros dispõem da possibilidade de baixar esta restrição até aos 13 anos de idade, esperemos que em Portugal haja a clarividência para o fazer, de preferência na sequência de um processo mais transparente, que inclua debate e consulta pública, em que todos possam fazer ouvir a sua voz. Apesar das dúvidas que a medida me suscita, os 13 anos serão o menor de dois males.

 

(*) Fundador do Projecto MiudosSegurosNa.Net