Por José Legatheaux Martins (*)
Na sequência da Guerra na Ucrânia diversos países defenderam linhas de ação que põem em causa o caráter global da rede das redes, isto é, da Internet, com apelos para a expulsão da Rússia da mesma, ou o bloqueio da conectividade às suas redes. Ou seja, esses países propõem usar a ligação à Internet como mais uma das armas económicas ou políticas a integrar na panóplia de soluções a aplicar durante uma guerra.
Isso conduziria à divisão da Internet em diferentes partes, incapazes de comunicarem entre si. As repercussões desta divisão seriam a perda do caráter global da Internet, que deixaria assim de poder suportar a comunicação entre todas as nações, blocos, grupos, economias, povos, etc. que formam a Humanidade. A utilidade e conveniência da rede seriam gravemente amputadas. Seria a reedição, na época do digital, da famosa maldição bíblica lançada pelos deuses para castigarem os homens pelo atrevimento de tentarem construir uma Torre de Babel.
É necessário recusar esta divisão em partições. Mas para sermos eficazes nessa recusa e na busca de alternativas, temos também de perceber o que está na origem das tendências para o seu aparecimento, e tentar tirar daí conclusões que permitam levar a propostas que a combatam com maior eficácia, atacando o cerne dos problemas que podem estar na sua origem. Com efeito, quando a Internet era um projeto académico, a conectividade e uniformidade da rede era total. Mas à medida que a importância económica e geopolítica da Internet foi crescendo, isso deixou de ser cada vez menos verdade. Pensar que a Internet é a mesma em todo o mundo é um bocado ingénuo.
O termo splinternet foi introduzido para designar uma Internet fragmentada onde a visibilidade de outras redes e serviços está sujeita a filtros introduzidos por razões económicas, políticas ou geopolíticas. De acordo com: https://fortune.com/2022/03/22/russia-war-ukraine-great-firewall-splinternet-internet/
“The splinternet refers to the splintering of cyberspace into disparate realms controlled by autonomous political blocs or any other controlling power—such as tech or e-commerce companies, or countries with diverging national interests tied to nationalism or religion.”
O conceito não foi introduzido pela guerra na Ucrânia. Ele já existia antes disso. Vejamos como.
A “splinternet” Chinesa
A entrada da China na Internet foi cuidadosamente preparada pelo Estado Chinês, de tal forma que a Internet chinesa é um mundo à parte. Na Internet chinesa existem versões próprias de todos os serviços comuns aos outros países (media informativos, media sociais, sistemas de pagamentos, sistemas de mensagens, de correio eletrónico, vendas online, etc.) em versões nacionais próprias. Por outro lado, a maioria das congéneres internacionais não são acessíveis. Ou seja, a maioria da população chinesa apenas acede à versão chinesa da Internet.
A principal razão pela qual existe algum nível de comunicação entre a Internet chinesa e a exterior, global aos outros países, está estritamente subordinada às necessidades dos negócios internacionais do país e à apresentação de uma versão da China ao exterior. Ou seja, a Internet chinesa foi definida a priori para ser uma “splinternet” e a grande maioria do povo chinês não conhece outra, nem sente necessidade dela.
Isso é possível através de um controlo centralizado das fibras óticas que ligam o país ao exterior e também devido à implementação do assim chamado “great firewall” (GF), uma gigantesca infraestrutura de filtragem de conteúdos controlada pelo Estado Chinês.
Isto quer dizer que não existe comunicação entre as duas Internets? Não, pois existem pontes no e sobre o GF que permitem um “vislumbre controlado” do que se passa do outro lado. Cidadãos dos dois lados dessa nova “grande muralha” podem usar tecnologias de ultrapassagem destas pontes (e.g. VPNs) para fazer algum “contrabando” de informação, mas tratam-se de manifestações minoritárias sem expressão significativa.
A China reivindica o seu direito a ter uma Internet própria e estritamente controlada, em nome da sua soberania nacional. Abrangendo esse controlo os bens que podem circular pela “fronteira”, a competição económica entre blocos e a defesa da sua soberania económica, a defesa da sua segurança nacional, e o controle da circulação de informação e de ideias. O Estado Chinês integra todos estes aspetos na defesa da sua segurança nacional.
Argumentar contra estas justificações pode parecer mais ou menos fácil, mas uma coisa é certa, sem a “splinternet” chinesa, os gigantes tecnológicos chineses, os BATX (BATX = Baidu, Alibaba, Tencent and Xiaomi), provavelmente não existiriam hoje em dia.
A “splinternet” russa
A Internet russa sempre esteve interligada com a restante sem barreiras significativas. Os serviços acessíveis aos cidadãos russos eram os mesmos que os acessíveis aos cidadãos europeus por exemplo, e vice versa.
No entanto, nos últimos anos, o Estado Russo introduziu legislação e tomou algumas medidas para que, em caso de uma situação em que a segurança nacional o exigisse, a Internet russa se separasse completamente da restante. Este tipo de medidas nunca foram implementadas completamente e, mesmo durante o recente conflito armado, são implementadas apenas parcialmente.
No caso da Rússia, a fundamentação para a necessidade de garantir uma Internet à parte é justificada, no essencial, como decorrente da necessidade da defesa da sua segurança nacional perante agressões militares externas. Se a ameaça militar for real, ou se não existirem tratados de não agressão que cubram estas situações, a justificação em termos de competição militar pode parecer razoável.
Durante o presente conflito na Ucrânia, o Estado Russo implementou algumas das medidas previstas na sua legislação. Simultaneamente, alguns países europeus também bloquearam o acesso a redes russas.
As “splinternets” dos estados com governos de pendor totalitário
Em geral este tipo de estados não implementam uma separação da Internet nacional da global. Isso seria contraproducente pois os serviços disponíveis na Internet interna seriam tão reduzidos que os seus povos se levantariam em protesto. A coisa tem de ser mais subtil; baseia-se em dois tipos de mecanismos complementares.
O tipo mais comum passa pela implementação de filtros com o objetivo de impedir o acesso a sites considerados perigosos para o Estado, acusando-os de terroristas, de estarem ao serviço do inimigo externo, ou das forças do mal (por motivações religiosas). Por exemplo, na Arábia Saudita, todos os sites de pornografia, ou de promoção da libertação da mulher, são bloqueados.
Como é fácil de imaginar, a lista de sites considerados perigosos varia com o maior ou menor pendor totalitário do Estado em questão, e é feita sempre em nome da defesa da segurança nacional e da ordem pública.
Repare-se que a filtragem de sites pode também ter lugar em Estados de Direito, mas nesse caso é pressuposto que os poderes judicias do Estado emitirem o julgamento de que o site fornece conteúdos ilegais. Claro que, com leis “feitas à medida”, o bloqueio político de sites pode também ter cobertura. No entanto, na maioria dos Estados totalitários, os organismos envolvidos na decisão são geralmente extra-judiciais.
O outro mecanismo usado para controlar a visibilidade oferecida pela Internet aos cidadãos consiste em controlar os conteúdos disponíveis nas redes de conteúdos ou nas redes sociais. Isso pode ser feito introduzindo leis que impliquem que os próprios operadores dessas redes executem a censura dos conteúdos, a priori, atuando como censores, ou a posteriori, depois de recebida a comunicação dessa necessidade via um organismo oficial de censura. A implementação passa por exigir à rede de conteúdos que tenha uma sede legal no país para poder atuar no mesmo, a qual passa a ser responsável pela moderação dos conteúdos de acordo com a política desejada.
Novamente, em Estados de Direito, a supressão de conteúdos ilegais de redes de conteúdos é também possível, carecendo apenas de decisão judicial independente e legalmente justificada nesse sentido.
A justificação para a filtragem política de sites e o controlo político de conteúdos que é normalmente usada em todos os Estados com pendor totalitário é também a defesa da segurança nacional.
Um mecanismo suplementar de censura usado em estados totalitários consiste no bloqueio total da Internet em certos momentos, mas os mesmos não se inscrevem nesta discussão pois trata-se de outro tipo de mecanismo repressivo.
De acordo com a Freedom House, ver a figura acima, os países onde a Internet é relativamente livre são poucos, nomeadamente: EUA, Canadá, Argentina, Europa em geral, África do Sul, Austrália, Japão e Nova Zelândia e poucos mais. Nos restantes, ou não há informação ou a Internet tem limitações. Ou seja, uma Internet relativamente livre está acessível a cerca de uma dúzia de centenas de milhões de pessoas, enquanto que a Humanidade compreende hoje cerca de 80 centenas de milhões de pessoas. Curiosamente, os países onde a Internet é relativamente livre são responsáveis, em conjunto, por mais de 60% do PIB mundial.
Geopolítica e Economia da Internet
Como é sabido, os serviços de rede, fornecidos sem quaisquer restrições, têm tendência para a concentração, o que é conhecido pelo efeito “The winner takes it all”. Este efeito capta a ideia de que neste tipo de serviços a escala é fundamental para a otimização, resultando daí que o maior operador tem tendência para se tornar, primeiro o operador dominante, e depois o monopólio do mercado, devido simplesmente à sua estrutura de custos e poder superior aos competidores.
A tabela que se segue apresenta num conjunto de atividades, diretamente ligadas à Internet, quais os operadores dominantes nas mesmas. Não só o nível de consolidação é enorme, como é sempre a mesma meia dúzia de empresas que dominam os diferentes mercados. O mercado do correio eletrónico é o único em que os maiores dois operadores não dominam mais de 50% do mercado.
Essa grande concentração tem como resultado uma enorme valorização bolsista destas empresas, na medida em que o mercado tem a expectativa de que, devido à sua dimensão relativa e também absoluta, os ganhos futuros, assim como os atuais, possam ser gigantescos.
A tabela que se segue mostra quais eram as 10 maiores empresas em valorização bolsista no final do ano de 2021. A empresa Alibaba, apesar de já não fazer parte das 10 maiores, foi incluída para mostrar o peso dos gigantes tecnológicos chineses.
Naturalmente, esta concentração conduz a outro tipo de “splinternets”, mais alinhadas com interesses económicos, pois a luta contra a dominação económica do ocidente vai certamente beber alguma coisa à experiência chinesa e à evolução da sua iniciativa “Rota da Seda”. É bastante provável que a guerra da Ucrânia fomente ainda mais este tipo de divisões.
Um outro aspeto que deve ser tomado em consideração é o peso que algumas destas empresas têm no fornecimento de acesso a baixo custo à Internet, em contrapartida do controlo dos conteúdos acessíveis aos utilizadores. Por exemplo, em alguns países africanos, aceder à Internet é equivalente a aceder ao Facebook, pois é esta empresa que subsidia os custos do acesso móvel no país.
É por isso natural a proliferação de iniciativas públicas e privadas que reflectem pontos de vista distintos sobre privacidade, abertura, inclusão, acessibilidade à informação “estrangeira” e controlo dos estados sobre a Internet, conduzidas por potências por detrás das quais se perfilam os interesses e ambições dos ‘GAFAM’ (GAFAM = Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft) e das suas contrapartidas chinesa, os ‘BATX’ (Baidu, Alibaba, Tencent and Xiaomi) e ainda outros gigantes tecnológicos, ou daqueles que tentam combater estes gigantes da tecnologia.
É um facto que do ponto de vista tecnológico e da conectividade ao nível baixo, isto é, infra-estrutural, a Internet, continua, no essencial, a ser uma interconexão de redes baseada na mesma tecnologia e que podem interoperar. No entanto, ao nível do que interessa aos utilizadores, isto é, ao nível das aplicações e dos conteúdos, a Internet não é uniforme, nem permite aos utilizadores terem a mesma visão dos conteúdos, mesmo que o desejassem.
É importante combater todas as tendências para separação da rede em várias “splinternets” ao nível físico, mas só um conjunto de tratados sobre não agressão digital e que assegurem um mínimo de liberdades, podem tornar a Internet uma rede ao serviço da compreensão mútua e colaboração entre os diferentes povos. Até que isso seja possível, muita coisa tem de ser diferente ao nível da geopolítica.
(*) Prof. Jubilado do DI da FCT/UNL
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