Por Gustavo Homem (*)

A nova normalidade

É cada vez mais difícil escrever sobre Open Source. Parece que já passou o pico. Achataram a curva e a conversa. Num mundo que todo e qualquer assunto facilmente se torna identitário este é um tema que perdeu identidade. E desde que a Microsoft comprou o Github e assumiu que o Linux tem maioria absoluta no Azure, a discussão quase deixou de ter graça [1].

Os problemas de identidade vêm em parte da diversificação. Já lá vai o tempo em que Linux, Apache, PHP, Samba e Libreoffice eram as marcas definidoras do movimento, com as quais se debatiam ideias absolutas. Já lá vão os sermões do Stallman. O fenómeno cresceu e multiplicou-se. Extrapolou os seus fundadores. A capilaridade com que o software Open Source se disseminou em quase todas as áreas do conhecimento é um feito colectivo impressionante... mas é um feito que complica afirmações abrangentes.

Será que existe ainda alguma generalidade que alguém honesto possa defender? Só se for o “isso depende”.

Humanidade de grupo

A necessidade de interacção humana conduz inevitavelmente à selecção e consolidação, por vezes em benefício da espécie, outras vezes em seu prejuízo. A espécie humana que entre bugs e forks destilou algum do melhor código que o mundo já viu é a mesma que consolidou o Microsoft Office e os seus formatos num monopólio, ao ponto de em 2022 a interoperabilidade de documentos editáveis entre sistemas operativos oscilar entre o razoável e o lamentável (compare-se com o bem que funcionam os PDFs mesmo em mobile). É também a mesma espécie que por pressão normalizadora colectiva dificilmente deixará que o duopólio Android / IOS seja alargado a um terceiro sistema nos próximos anos. E é a mesma que está quase a tornar o Google Chrome no novo IE6.

Processo de especialização em curso

Mas a nossa espécie, a tal que é pouco ou nada tolerante a heterogeneidades na forma, está cada vez mais exigente com aquilo que usa. O que não for sofisticado já não tem lugar nas nossas vidas e por isso os projectos Open Source também se encontram hoje num patamar de complexidade impensável há uns anos atrás. Em geral isto é uma boa notícia! Mesmo quem trabalha com sistemas abertos há muitos anos não deixa de se surpreender com a qualidade das coisas novas que aparecem [1]. Quem tem a sorte de trabalhar em DevOps, Data Science ou desenvolvimento Web em 2022, que me corrija se eu estiver errado.

Mas há também consequências menos óbvias da especialização. Por exemplo, Android e o Chrome são sistemas baseados em código aberto, mas em quantas horas de esforço se traduz auditar, modificar e recompilar estes sistemas? E como auditar o código das VMs, bases de dados e load balancers que correm dentro da cloud? Open Source sempre foi, e continua a ser, um sinónimo de transparência, mas o exercício dessa transparência é cada vez mais complexo. Não é de todo impossível que um sistema baseado em código aberto se torne sobredominante e seja usado no mercado de forma discutível, especialmente se há questões delicadas de canal de distribuição.

Em Março é que era bom

A pandemia em Março de 2020 era fácil de explicar: tudo para casa, senão perdemos 2% da população em 3 meses. Mas com o acumular de conhecimento a gravidade diminuiu e com o regresso à vida “normal” a complexidade aumentou. Está cada vez mais difícil afirmar generalidades :-)

O mesmo se passa com o nosso estimado ecossistema de software aberto. Atingiu-se a endemia. Cada vez mais estaremos cercados por software aberto e cada vez menos isso será uma surpresa ou motivo de celebração. E cada vez mais difícil será descrever o ecossistema em poucas palavras.

O uso de software aberto é um facto consumado. Para quê? Em que contexto? Qual a infraestrutura?
Com que garantias?

Isso depende.

O que aí vem

O que aí vem nos próximos é algo que se pode prever face à tendência actual. Para começar: vai
haver mais de tudo, coisas boas e más.

O software aberto estará omnipresente e o ecossistema de developers irá diversificar-se dos seus
nichos tradicionais (US, UK, DE, FR,…), passando a incluir contribuições cada vez mais relevantes
de países emergentes [2,3]. Este tipo de software será fornecido de formas muito diferentes (git
clone, SaaS, packaged goods,…), a clientes muito diferentes (de gravata, de camisa, de tshirt
preta,...) e com níveis de serviço muito diferentes (nenhum, “apoio ao cliente”, contratos com SLA,
…).

Vai continuar a haver procura de talento, provavelmente superior à oferta. Com a generalização do
teletrabalho o mercado será cada vez mais global e quem contribuir para um projecto Open Source
arranjará emprego mais depressa.

Mas vão manter-se os riscos do excesso de consolidação (ex: Google Chrome), da falta de
consolidação (desktop Linux) e de vendor lockin (GAFAM e afins). Manter-se-ão o uso responsável
e o uso irresponsável. As dificuldades causadas pelo cepticismo na adoção de software aberto serão
substituídas pelas do excesso de optimismo e pela falta método☺

Restam duas questão essenciais:

1. para onde vai a agenda do “poupar dinheiro com Open Source?”

2. para quando o IPO da Canonical?

A primeira terá que ficar para outra altura. E sobre se a segunda, se alguém souber que partilhe nos
comentários.

(*) Diretor da angulo sólido 
https://angulosolido.pt
https://github.com/ghomem

Notas:
[1] https://www.zdnet.com/article/microsoft-developer-reveals-linux-is-now-more-used-on-azurethan-
windows-server/
[2] Em 2020 fui surpreendido por dois projectos. Um deles chama-se Bokeh e o outro Metabase. Os
links estão abaixo. De nada ☺
https://bokeh.org/
https://www.metabase.com/
[3] https://johanneswachs.com/papers/goss.pdf
[4] https://techmonitor.ai/technology/software/github-users-microsoft-thomas-dohmke
[5] https://towardsdatascience.com/githubs-path-to-128m-public-repositories-f6f656ab56b1

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