
Por Paulo Fonseca (*)
Quem nunca foi surpreendido por um site de compra de vestuário que obriga ao registo para comprar uma simples peça de roupa? Quem nunca se deparou com um processo labiríntico para cancelar uma subscrição, com páginas sucessivas que parecem mais interessadas em desgastar-nos do que em respeitar a nossa escolha? E quem nunca leu mensagens insistentes em sites de alojamento ou de transporte aéreo – “já só resta um quarto”, “última oportunidade” – que nos pressionam para uma decisão imediata? Somam-se ainda as políticas de cookies que escondem as opções de recusa ou os formulários de consentimento para a recolha de dados que usam expressões de shaming para constranger quem não aceita determinada oferta.
Estes exemplos são hoje classificados como padrões obscuros (dark patterns), estratégias de design e arquitetura digital que manipulam a forma como escolhemos e nos comportamos em ambiente digital, reforçando opções em detrimento de outras. Não se trata, contudo de uma realidade nova. No passado, já existiam práticas semelhantes: as letras miudinhas nos contratos, os produtos estrategicamente colocados à altura da nossa linha de visão no supermercado ou as campanhas que jogavam com a urgência artificial de que a “promoção termina hoje”. Em algumas destas situações, a própria lei classificou-as, inclusive, como práticas comerciais desleais. A novidade, hoje, reside na escala, na sofisticação e no aproveitamento da nossa inocência digital. Na internet, algoritmos e sistemas de inteligência artificial permitem explorar vulnerabilidades em tempo real, ajustando mensagens ao perfil de cada utilizador.
Mas será justo demonizar todos estes padrões? Será que não podemos, também, aprender e beneficiar com eles? Na verdade, estas práticas não são intrinsecamente boas ou más: tudo depende da intenção e da ética de quem as aplica. Um padrão obscuro que esconde uma opção ao consumidor estará certamente a prejudicá-lo, mas uma ferramenta de design que simplifica o acesso à informação, que permite uma escolha mais adequada ao nosso perfil ou que nos alerta para determinados riscos, pode ser uma poderosa arma de capacitação. Ou seja, estas técnicas podem ser usadas para explorar, mas também para proteger.
A chave está numa legislação que saiba estabelecer a fronteira entre a manipulação e a oportunidade. A ciência mostra-nos, cada vez mais, que diferentes grupos de consumidores reagem de forma distinta às mesmas pressões. Jovens expostos a designs aditivos, idosos confrontados com escolhas digitais complexas para simples atividades ou até mesmo consumidores com menor literacia digital, todos decidem mediante o seu perfil comportamental e reagem de forma distinta em diferentes momentos. O problema é que as empresas sabem disso. É por isso que os consumidores digitais merecem hoje uma especial preocupação.
O Regulamento dos Serviços Digitais, ao dirigir-se a quem oferece serviços de intermediação em linha, como as plataformas em linha, as redes sociais, as lojas de aplicações ou os motores de pesquisa, é, talvez o primeiro instrumento que encara o problema de frente ao proibir os mesmos de conceber, organizar ou explorar as suas interfaces de forma a enganar ou manipular os utilizadores. Este instrumento é coadjuvado por outras legislações mais direcionadas, como o Regulamento Geral da Proteção de Dados, o Regulamento dos Mercados Digitais e o próprio Regulamento de Inteligência Artificial. A orgânica da proteção europeia é robusta, mas fragmentada. É como se alguém tivesse usado pontos para desenhar uma figura mas não os tivesse unido.
É precisamente neste contexto que um futuro Digital Fairness Act poderá ter relevância. Ao contrário da atual dispersão normativa, este novo instrumento poderá criar um quadro jurídico único, claro e aplicável de forma transversal. Da mesma forma, este instrumento tem o potencial de se tornar um catalisador de inovação ética, transformando os padrões obscuros numa oportunidade para melhorar a experiência do utilizador e tornar o mercado mais eficiente.
No entanto, não basta legislar por legislar. É preciso reconhecer que a confiança é mais valiosa do que um clique forçado. Temos de perceber a forma como as nossas escolhas são moldadas através de diferentes contextos de design. Para isso, a avaliação comportamental é fundamental pois só assim podemos ser mais eficazes na proibição e mais promotores da mudança. Medir reações, tempos de decisão, taxas de cancelamento e nível de frustração são alguns dos instrumentos empíricos que podemos usar para fazer a distinção.
Da mesma forma, capacitar continua a ser um verbo essencial no processo da transformação digital. Apoiado pelo Fundo para a Promoção dos Direitos dos Consumidores, a DECO criou uma página no seu website* onde os consumidores podem, de facto, seguir os seus direitos, conhecendo a realidade digital, mas também tendo voz na mudança. Não só identificamos alguns dos padrões obscuros mais utilizados pelas empresas, como também ajudamos o consumidor a evitá-los e até mesmo a denunciar determinadas práticas ao regulador. Exemplos como esta campanha podem ser formas de promover a transparência e testar modelos de informação mais clara.
Os padrões obscuros são, em última análise, um reflexo da forma como nos posicionamos no mercado digital. Podem ser uma armadilha, mas também um instrumento de confiança. Cabe às empresas, aos reguladores e à sociedade decidir de que lado querem estar. A inovação não tem de ser inimiga da transparência. Pelo contrário, pode – e deve – ser a sua principal aliada.
(*) Assessor Estratégico e de Relações Institucionais da DECO
*https://deco.pt/segue-os-teus-diretos/
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