Com a pandemia de COVID-19 a levar os nossos hábitos quotidianos ainda mais para o mundo digital, o tempo passado em frente aos ecrãs aumentou. O caso das crianças e dos jovens não foi uma exceção. Fora das aulas online, e com menos possibilidades para sair de casa devido ao confinamento, o mundo digital afirma-se cada vez mais como uma opção, seja para o entretenimento ou para manter o contacto à distância com os amigos.
Em linha com as temáticas desenvolvidas no âmbito do Dia da Internet mais Segura, é verdade que tentar encontrar um equilíbrio saudável na utilização dos equipamentos se apresenta como uma tarefa desafiante. Mas, será que “diabolizar” todo o tempo que os mais novos passam em frente ao ecrã é a melhor abordagem?
Ao SAPO TEK, Cristina Ponte, professora na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e coordenadora da equipa portuguesa de investigação do EU Kids Online, explicou que “é quase impossível que as crianças cresçam hoje sem terem contacto com os ecrãs” e que na procura pelo equilíbrio existem vários fatores em jogo aos quais os pais devem prestar atenção.
A situação do confinamento “está a ser duríssima para todos, mas sobretudo, e de uma forma particular para os mais novos”, diz Cristina Ponte.
As crianças e jovens “estão numa idade em que precisam imenso de estar com os seus amigos e a escola é um espaço onde isso acontece".
"Há todo um ambiente de contacto e de proximidade que não se verifica em casa”. Fazendo referência aos dados do mais recente estudo EU Kids Online Portugal, a investigadora detalha que a maior parte dos jovens prefere estar face-a-face com os amigos do que com eles na Internet.
Perante o contexto de distanciamento “forçado” da pandemia, que leva os jovens a procurar uma maior interação com amigos e colegas através da Internet, acrescendo ao tempo que passam já em frente aos ecrãs devido às aulas online, crescem as preocupações dos pais.
No entanto, um recente estudo realizado pelo projeto ySkills, centrado nas comunicações casa-escola durante a pandemia e em entrevistas a especialistas na área da educação, revela que existem algumas questões paradoxais nas abordagens tomadas pelos pais.
Por um lado, é possível observar pais que, apesar de se manifestarem contra o uso das tecnologias, em particular como os smartphones, nas salas de aula, são os mesmo que criam contas nas redes sociais para os seus filhos. Por outro, certos pais só se preocupam verdadeiramente com o uso das tecnologias quando surgem problemas, levando à tomada de medidas muito restritivas em relação a qualquer tipo de atividade online.
“O que nós vemos é que num ambiente restritivo, as crianças não vão tendo a possibilidade de explorar as oportunidades da Internet e que são estimulantes para elas. A investigadora destaca que, esses mesmos jovens, ao chegarem a uma fase de maior autonomia, podem entrar em conflito com as suas famílias e fazerem todas as práticas que lhes estão interditas “à revelia dos pais”.
“Um ambiente restritivo pode trazer uma sensação de falsa segurança. O que a nossa investigação mostra é que nesses ambientes há menos aprendizagem e menos oportunidades”, sublinha Cristina Ponte.
A importância de estabelecer regras sem castigar cegamente
De acordo com a especialista, o estabelecimento de regras em relação ao uso da tecnologia pelos mais novos assume uma grande importância, se bem que devem ser adequadas à situação em mãos e acompanhadas por uma explicação.
“As crianças gostam de regras. Gostam de saber com o que é que podem contar, porque isso lhes dá segurança”. Ao mesmo tempo, as regras levam as crianças e jovens a aprender a lidar, por exemplo, com a frustração. “Deve haver alguma regulação, mas deve ser educativa, no sentido de lhes ser explicada qual é a condição” por trás da mesma.
Mas, a partir de que idade é que se deve começar a estabelecer regras? De acordo com Cristina Ponte, estas devem surgir logo que as crianças começam a fazer algum uso supervisionado da tecnologia, até mesmo antes de entrarem em idade escolar.
Aqui, é importante que os pais acompanhem os mais novos, conversem sobre as atividades que estão a ser feitas, que os incentivem a procurar por coisas que os estimulem mentalmente e, claro, que recorram a alguns filtros que facilitem o acesso a conteúdos que não são apropriados e que tenham alguns cuidados especiais, em particular, se partilham os equipamentos com os filhos.
O estabelecimento de regras “deve ter em conta as capacidades das crianças”, ajudando-as também a adquirir competências e sendo guiado por uma boa comunicação. A investigadora realça que “é fundamental que a prática da comunicação exista antes da adolescência”, pois é muito mais complicado “exigir” a um jovem nesta faixa etária que ele fale, por exemplo, sobre o que faz com os seus amigos online.
“O tempo de ecrã nem sempre é negativo” e Cristina Ponte afirma que há uma atenção por parte de investigadores no sentido de contrariar essa “ideia culpabilizante”. Em muitos dos casos, os pais, que vivem também vidas ocupadas e complicadas, sentem-se culpados porque não conseguem “contrariar” a tendência de os seus filhos passarem tempo em frente aos ecrãs.
“É preciso entender que o tempo de ecrã pode ser um tempo rico, estimulante e até socialmente descontraído”, sublinha, acrescentando que nestas situações os jovens podem estar a “desenvolver competências que podem ser úteis para a sua futura profissão”.
Além disso, os pais devem “liderar por exemplo”. “Sem dúvida que se os pais pedem aos filhos coisas que eles próprios não fazem, isso não tem grande eficiência de um ponto de vista educativo”. Com os ritmos do “novo normal”, em que para muitos, o teletrabalho passou a ser uma realidade incontornável é preciso encontrar estratégias saber quando “desligar” e estar verdadeiramente em família, repartindo responsabilidades de acordo com as situações familiares.
“Nativos digitais”: uma ideia que precisa de ser desmistificada
Um dos aspectos que pode ajudar os pais, assim como educadores, a perceber melhor a relação dos mais novos com a tecnologia prende-se com o conceito erróneo dos “nativos digitais”. “É realmente necessário desmistificar a ideia, porque que desresponsabiliza os mais velhos, que pensam que os jovens já sabem fazer tudo e que não precisam de ser ensinados”, enfatiza Cristina Ponte.
Tendo em conta a sua experiência em projetos que procuram perceber os hábitos e as práticas das crianças e jovens, a investigadora indica que é sabido que os mais novos demonstram afinidade para saber lidar com a tecnologia, mas existem aspectos que precisam de ser trabalhados.
As questões relacionadas com a pesquisa da informação afirmam-se como uma das lacunas mais notórias.
“Um dos termos que se tem vindo a generalizar nas escolas é «pesquisa por X na Internet». Mas o que é que é «pesquisar»? Muitas vezes, o que nós vemos é que os mais novos colocam apenas as palavras que são pedidas no motor de busca e fazem «copy+paste» da primeira informação que lhes aparece”.
“Muitos professores estão atentos e contrariam essa tendência, embora outros não tenham essa atitude (…) Existem muitos aspectos em relação à informação que precisam de ser trabalhada e o contexto para trabalhar isso sem dúvida que é o da sala de aula onde estas orientações são importantes”.
As competências sociais são também uma área onde há muito caminho para ser trilhado: desde saber “manter uma relação saudável e não-conflituosa com os outros” a colocar-se no lugar de alguém que vai receber uma determinada mensagem. “As questões da empatia também têm a ver com toda a educação que é dada em casa, para contrariar a instantaneidade facilitada pela tecnologia”.
Não menos importantes são as competências criativas. Embora os jovens se mostrem motivados para explorarem a sua criatividade, a procura pela popularidade, em particular nas redes sociais, leva por vezes a excessos e ao apelo ao grotesco ou ao “shock value” em situações que podem colocar as suas vidas e as dos outros em risco.
É verdade que a escola se afirma como um dos locais principais onde todas estas competências devem ser trabalhadas. Porém, a especialista enfatiza que os pais devem também começar por incuti-las em casa, tudo numa “relação de comunicação sem receios” e aproveitando as oportunidades de aprendizagem para reforçar os laços familiares.
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