Com a impossibilidade de estar presente fisicamente com outras pessoas e as dificuldades de adaptação ao “novo normal” que surgiram durante a pandemia, a desmotivação acabou também por infiltrar-se, afetando inclusive áreas como a do ensino, que se viu obrigada a mudar “do dia para a noite”.
Fazer face às dificuldades não é fácil, mas há um projeto que quer devolver a motivação ao ensino, tudo através de novas aventuras digitais que combinam entretenimento e educação em formato de RPG.
O Kendir Studios foi uma das ideias premiadas na mais recente edição do programa Born From Knowledge Ideias, uma iniciativa promovida pela Agência Nacional de Inovação (ANI) que quer impulsionar a transferência de conhecimento científico e tecnológico nascido em instituições de Ensino Superior portuguesas para o tecido empresarial.
“O ensino teve um choque tremendo com a pandemia e consequentes confinamentos”, afirma Eduardo Nunes, investigador do Centro de Investigação e Inovação em Educação (inED) da Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto e promotor do projeto, ao SAPO TEK.
“Todos podemos observar as limitações substanciais do modelo tradicional”, incluindo do “e-learning e outras ferramentas de ensino à distância”, algo que resultou em perdas de motivação e aprendizagem, assim como em fracos resultados.
Assim, o Kendir Studios, que começou como um projeto para “investigar o potencial que os role-playing games (RPGs) podem ter em ambientes de ensino e também na aprendizagem à distância”, surge como uma forma de materializar a investigação realizada, criando jogos para diferentes disciplinas e anos de escolaridade.
“A nossa relação e interligação com o projeto de investigação é total, permitindo-nos partilhar experiências, transmitir resultados, efetuar testes e validar cientificamente o impacto destes jogos na comunidade escolar”, afirma Eduardo Nunes.
RPGs e educação: um “casamento” com tudo para dar frutos
Para desenvolverem os jogos, a equipa do projeto recorreu ao conhecido motor de criação Unity, criando “uma arquitetura que interliga o funcionamento tradicional de um RPG com os conteúdos educacionais”, de modo a assegurar que “têm características semelhantes e validade como ferramenta de ensino”, num processo que inclui, de entre várias questões, “validação, retorno, determinação e reação a sucessos e insucessos, reforços e interligações de conteúdos”.
De acordo com o investigador, a arquitetura foi concebida tanto em termos de código, para criar sistemas de aventuras, diálogos e personagens, como para garantir que os conteúdos educativos se encontram, de facto, presentes, com a equipa a desenvolver “metodologias e sistemas consideravelmente inovadores face ao estado da arte da investigação”.
A escolha dos RPGs não foi por acaso. “Estes jogos são, tradicionalmente, criados com base numa história e inseridos dentro de um mundo complexo, onde o jogador cria uma ou várias personagens e procura modificar os acontecimentos, interagir e explorar de forma que a história e o mundo se transformem na sua visão”, detalha Eduardo Nunes.
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Aqui, tudo está relacionado com três elementos-chave que, “de uma forma ou outra, estão relacionados com a aprendizagem”: “storytelling, world building e role-playing”.
A criação de narrativas assume um papel central na forma como se aprende, permitindo descobrir outras pessoas, lugares, opiniões, hábitos e tradições. “Não é novidade que apresentar conceitos aos alunos na forma de história é a melhor forma de os ensinar”, em particular quando esta é exposta visualmente e quando os estudantes podem participar nela.
Do lado do jogador, a construção de mundos dá aos jogadores a possibilidade de partirem à descoberta e de escolherem caminhos que despertam a sua curiosidade. Para a equipa do Kendir Studios, há “o benefício adicional” de poderem “construir um jogo que será suficientemente extenso para albergar a totalidade de um currículo anual de uma disciplina”, indica o promotor.
Nas palavras de Eduardo Nunes, o aspeto do role-playing é “o que dá carácter, individualidade e dinâmica à história e ao mundo” virtual criado. À medida que o jogo avança, a evolução das personagens criadas pelos jogadores e a sua interação com o mundo que as rodeia permite a entrada em “cenários diferentes”, assim como uma “mudança de perspetivas e paradigmas”, uma reflexão “refletir sobre ambiguidades” e a consideração de “abordagens diferentes e soluções”.
A ambição de ir mais além e de mudar o mundo da educação
Depois da investigação, a equipa começou a construir a arquitetura do projeto, assegurando que o caminho percorrido fazia sentido. “Foi um trabalho árduo que demorou cerca de seis meses”, conta Eduardo Nunes. Mais tarde, surgia um desafio proposto pela Escola Superior de Media Artes e Design, com os investigadores colaboraram para desenvolver os jogos em 3D, o que “implicou uma mudança significativa e um enorme processo de aprendizagem”.
O projeto ainda está numa fase embrionária, mas já tem vindo a fazer progresso. “Agora, passado quatro meses, podemos afirmar que temos um primeiro protótipo disponível, para PC/MAC e Android, o qual iremos testar junto de estudantes e pais para identificar melhorias e alterações antes de avançarmos”, revela o investigador.
O próximo passo é lançar o primeiro jogo baseado no protótipo desenvolvido pelo projeto, chamado “Liber Domus”: um título na área da Matemática concebido para o 6º ano de escolaridade que estará disponível antes do final do ano.
No que toca à implementação do projeto, a equipa foi surpreendida pela quantidade de contactos de instituições, que a levou mesmo a ter de redesenhar os seus planos para os próximos meses.
Entre contactos do Reino Unido, Itália e França, Eduardo detalha que o caso mais interessante veio dos Estados Unidos, onde lhes foi proposta a criação de um jogo para o ensino STEAM (Ciências, Tecnologias, Engenharia, Artes e Matemática) para o 6º ano no Texas, Louisiana e Iowa. Embora a situação implique um só jogo, serão necessárias três adaptações ao currículo. “Felizmente a nossa arquitetura permite-nos o desenvolvimento simultâneo”.
Olhando para o futuro numa perspetiva a longo prazo, o promotor indica que a equipa tenciona “criar jogos para todas as disciplinas de todos os anos letivos, do 3º ao 12º, começando pelo 1º e 2º ciclo, que são o foco principal do projeto de investigação”.
Angariar um financiamento de 100 mil euros é outro dos grandes objetivos, algo que ajudará eventualmente a investir em Marketing e equipamentos. Na “calha” está também o desenvolvimento de funcionalidades multijogador, “criando ambientes virtuais de sala de aula com dinâmicas relacionadas com as aventuras dos jogos”, além da tencionarem explorar o esbater das fronteiras entre ensino presencial e online.
“Planeamos trabalhar como um estúdio de jogos mais do que uma empresa do ramo da educação. Acreditamos no desenvolvimento ágil e numa dinâmica contínua de desenvolvimento, produção e aprendizagem”, enfatiza Eduardo Nunes.
Para o investigador, o impacto dos jogos educacionais é notório, permitindo eliminar algumas das típicas discussões entre pais e filhos acerca de jogos, uma vez que os alunos passam a poder divertir-se ao mesmo tempo que aprendem, trazendo também benefícios para os próprios professores e estudantes. Através dos testes realizados em ambiente de sala de aula foi possível notar “uma maior motivação dos alunos, mais empenho, curiosidade e interligação e compreensão de temas”.
“Esta relação entre a diversão e a aprendizagem, a criação de memórias positivas em vez da associação a aborrecimento e esforço, leva a um aumento significativo de memórias de longo prazo associadas aos temas aprendidos”, clarifica.
Segundo o investigador, a combinação entre os gráficos 3D e a história, o ambiente e os temas educativos permitem que os estudantes visualizem os problemas, apresentem uma solução e acompanhem a resolução. “Deixam de ser questões abstratas numa ficha de exercícios”.
Além de defender que o projeto é “uma excelente oportunidade” para ajudar os professores a inovar “, a equipa acredita que que o futuro da educação passa verdadeiramente pela “adaptação à realidade digital em que os nossos estudantes vivem”. “Pretendemos mudar a forma como os nossos estudantes aprendem”, sublinha Eduardo Nunes.
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