“A proteção da privacidade hoje exige um esforço diferente daquele que exigia há umas décadas atrás”. Esta é uma das constatações de uma entrevista ao SAPO TEK onde a Filipa Calvão, presidente da Comissão Nacional de Proteção de Dados, falou sobre o papel da autoridade, a nova regulamentação, e as ameaças que a tecnologia traz à privacidade, mas também os novos mecanismos que dão aos cidadãos e às autoridades mais ferramentas para exercer os seus direitos de proteção de dados.
Hoje é o Dia Internacional da Proteção de Dados, e o balanço das mudanças trazidas pela entrada em efeito do RGPD, em maio de 2018, é positivo, com o reconhecimento de que as organizações já estão mais conscientes e regularizaram os procedimentos.
“Acho que já há uma consciencialização forte do que diz o Regime de proteção de dados, apesar de muita confusão inicial, em que houve alguma aflição e até histeria, com o exacerbar do que resultava do regulamento, que é exigente nalgumas matérias e que veio densificar os direitos dos titulares de dados”, afirma Filipa Calvão.
A responsável pela CNPD, que é a autoridade de proteção de dados, admite que “há uma fatia importante do mundo empresarial que já regularizou os procedimentos internos de processamento de informação, em conformidade ou pelo menos numa tentativa de garantir a conformidade com o Regulamento de Proteção de dados, não quer dizer que todos tenham alcançado esse objetivo”. Isso acontece sobretudo nas empresas de maior dimensão, mas nas empresas mais pequenas, nos pequenos estabelecimentos comerciais, ainda não chegou a sensibilização para a proteção de dados, embora admita que aí a informação não é muito sensível, apesar de existirem dados dos trabalhadores, e até questões relacionadas com a videovigilância, refere.
A CNPD tem feito um trabalho de sensibilização e divulgação das novas regras mas também de aplicação do RGPD, que já resultou em oito multas aplicadas a organizações até final de novembro de 2019. Entre elas está o Centro Hospitalar do Barreiro mas também empresas particulares, duas das quais são lojas que não indicavam a videovigilância dos clientes. O valor total destas coimas que foram aplicadas no primeiro ano do RGPD é de 424 mil euros, mas a maioria das multas foram contestadas e ainda estão a correr processos em Tribunal, já com alguns acertos e redução do valor.
Mas na proteção de dados nem tudo se resume ao RGPD, e a CNPD continua a aplicar outros instrumentos de sanção, incluindo a Lei 41, relativa ao spam, que deu origem a outras averiguações.
Preocupação com os mais vulneráveis
Para Filipa Calvão é claro que há uma melhoria geral da proteção de dados, sobretudo face à situação da última década, mas para a presidente da CNPD mantêm-se várias preocupações, até porque esta é uma luta desigual, contra grandes companhias tecnológicas, com muito poder, e por muitos direitos que os cidadãos detenham agora com o novo regulamento é difícil exercê-los.
“É um esforço hercúleo”, afirma, admitindo que nem todos têm a capacidade de validar todos os dados que as empresas dispõem sobre si, e de pedir eliminação, mas lembra que as autoridades e as organizações de defesa dos direitos humanos têm também um papel importante nesta “luta”, e explica que foi muito importante “a pressão social para que as organizações cumpram as regras mínimas”, e a intervenção do Tribunal Europeu.
Entre as principais preocupações da presidente da CNPD estão “as pessoas mais vulneráveis, que não têm consciência do impacto de certos tipos de serviços a que recorrem pode ter na sua vida, com as consequências práticas de estar a entregar informação sobre a nossa vida, nas mais diversas dimensões, algumas bastante íntimas, a empresas e organizações públicas, sem triagem e sem reservas, que são depois reutilizadas, transmitidas, partilhadas com outras empresas gerando um conjunto de informação sobre cada um de nós que depois pode ser usado contra nós”, defende.
Filipa Calvão lembra que isso já acontece em alguns países, embora em Portugal não seja ainda tão evidente, em que o empregador vai ver toda a vida da pessoa a contratar desde que começou a aparecer nas redes sociais ou as pesquisas que fiz ao longo do tempo, o que também pode acontecer na celebração de um contrato de seguros ou um empréstimo.
“Estamos a ficar fortemente condicionados na nossa vida pela informação que vamos deitando cá para fora”, avisa.
Lembra ainda que isto é feito num plano global e que as autoridades nacionais têm dificuldades em garantir os direitos dos titulares dos dados, e se dentro da Europa ainda é possível reagir, em relação a outras não conseguimos.
Os dados das crianças, em especial, são apontados também como uma das inquietações da presidente da CNPD, especialmente na divulgação de informação relativa a apoios sociais, que vão ficar para sempre acessíveis online e podem estigmatizar a vida destas pessoas.
O grande perigo do Big Data, videovigilância e Inteligência Artificial
A anonimização dos dados foi uma linha de atuação pensada durante muito tempo para proteção da privacidade, mas a evolução da tecnologia de big data e de inteligência artificial (IA) mostra que, com relativa facilidade, é possível reverter essa “limpeza” de dados pessoais.
A ligação entre os sistemas de videovigilância e a tecnologia de IA é também vista com preocupação, mesmo quando utilizada em sistemas de segurança.
“O facto da ciência e do mercado produzirem hoje instrumentos cada vez mais desenvolvidos de tratamento de informação sobre as pessoas, e cada vez mais precisos e com mais qualidade para processamento e relacionamento da informação, com a tecnologia disponível no mercado a preços bastante baixos, faz com que tenhamos uma pressão grande para a utilização dessas tecnologias na tutela deste bem público que é a segurança. E todos nós queremos viver em segurança mas não podemos esquecer o outro lado da moeda: para garantir um grau de segurança muito elevado a liberdade é geralmente sacrificada”, avisa.
“Temos de encontrar aqui um ponto de equilíbrio que não implique o domínio total do cidadão por quem está a utilizar essa tecnologia para garantir a segurança”, defende Filipa Calvão.
A presidente da CNPD acredita que a videovigilância, cruzada com as novas tecnologias da inteligência artificial, e o que traz de possibilidade de rastreio constante das nossas condutas, dos nossos comportamentos no dia a dia, “é muito preocupante, porque isso é um Big Brother, uma revisitação do conto de George Orwell, e é angustiante, porque não está só fora de casa”. Normalmente pensamos na videovigilância no espaço público, mas temos dentro de casa todos os smart devices que fazem medições constantes do que estamos a fazer dentro de casa e que depois podem cruzar a informação. “Isso preocupa-me muito, temos os medidores de consumo de eletricidade, o que estamos a ver na TV, temos uma série de elementos que, se houver possibilidade de cruzar isto tudo, há um conjunto de entidades que sabem tudo o que estamos a fazer, todo o tempo”, sublinha.
A única solução é ficarmos fechados numa caverna e abdicar da tecnologia? “Era o que mais faltava, a tecnologia traz imensas vantagens, desde o conforto à garantia de cuidados de saúde com qualidade, e à própria segurança”, afirma.
“Não vamos abdicar da tecnologia para podermos viver numa sociedade melhor, nada disso, pelo contrário, precisamos da tecnologia, mas vamos usá-la com conta peso e medida e não só porque chegou uma coisa nova ao mercado irmos a correr usar, porque somos muito modernos e estamos à frente de tudo. Não pode ser este o espírito, nem a nível de indivíduo nem de organização público privada, temos de ter alguma ponderação”, acrescenta.
E em algumas situações manter a privacidade pode mesmo ser um luxo, sobretudo quando em troca do fornecimento de alguns dados podemos ter acesso a descontos ou benefícios fiscais. “Algumas pessoas poderão não conseguir dar-se a esse luxo, de perder vantagens financeiros, o que se torna também um problema de diferenciação social”, refere.
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