A transformação digital está a entrar no léxico da indústria em Portugal. A vários ritmos e com prioridades que encaixam em estratégias e preocupações distintas, consoante os sectores de atividade em questão, as mudanças vão chegando. As preocupações com a sustentabilidade, os custos de produção e a complexidade de muitos processos, inimiga da eficiência, tornaram-se os grandes motes de inovação na indústria transformadora, como refletem os exemplos da Tintex, Navigator ou Corticeira Amorim. A busca de agilidade faz acelerar empresas como a Bosch, nas suas 250 fábricas à volta do mundo.
A Tintex é uma referência na indústria têxtil. Especialista em tingimento e acabamentos têxteis está no mercado há 20 anos, a trabalhar para o segmento médio-alto da moda. Recentemente começou a explorar novos segmentos de negócio na Sapataria, Marroquinaria e Têxtil-Lar, com enfoque nas alternativas sustentáveis ao couro animal.
A sustentabilidade tem sido um dos pilares de atuação da empresa e muita da tecnologia que tem entrado na fábrica de Vila Nova da Cerveira é um instrumento para ajudar a reduzir a pegada de uma indústria com um forte impacto ambiental. O recurso à inteligência artificial para minimizar falhas e desperdício na tricotagem de tecidos tem precisamente esse objetivo.
A empresa foi uma das primeiras a testar a tecnologia da Smartex.ai, a empresa portuguesa que ganhou a última edição do concurso de startups da Web Summit. O sistema combina recolha de imagens e machine learning para monitorizar o processo de tricotagem e ir comparando a informação que recolhe com uma base de dados de milhões de imagens, à procura de defeitos. Quando encontra um, pára o processo e corrige o erro para que não persista nos metros seguintes.
Nos primeiros 70 dias de testes, a Smartex calculava que o sistema tinha permitido poupanças de mais de 50 mil litros de água, 2.700 Kwh de eletricidade, 50 horas de trabalho e 532,3 quilos de CO2, evitando o envio de malhas com defeito para tinturaria.
A tecnologia avançou entretanto para seis teares, com planos para se estender a mais 15 até final deste ano e acabará por cobrir todo o parque de máquinas, com exceção de duas, por questões técnicas relacionadas com a construção do tear e o tipo de malha trabalhada.
“Após dois anos de otimização e treino do algoritmo podemos afirmar que mais de dois terços das paragens dos teares (por identificação de irregularidades) são feitas pelo sistema Smartex – antes do operador reparar que existe defeito ou irregularidade na tricotagem”, relata Pedro Silva, administrador da Tintex.
A eficácia do sistema é superior a 90%, subtraindo ao total os falsos positivos e os falsos negativos, e podem melhorar, porque a tecnologia continuará a aprender com a repetição do processo.
Com o mesmo objetivo de ganhar eficiência e reduzir a pegada ambiental, a empresa implementou também sistemas de doseamento automático de tinturaria e acabamentos, que alimentam as máquinas responsáveis por estas tarefas com os químicos auxiliares ao processo, na quantidade exata e sem intervenção dos operadores. O sistema usa uma tecnologia de infravermelhos (NIRS) que identifica variações moleculares e informa sobre os ajustes necessários para chegar à cor desejada.
A Tintex usa também um sistema de inspeção automática de malha acabada para mapear defeitos à saída da râmula (maquinaria de acabamentos). O sistema recorre a câmaras para “criar um ficheiro com essa informação e comunicar com a máquina de revista automática e desta forma acelerar o processo de inspeção final da malha antes da expedição. “Esta máquina de revista automática também embala e corta amostras em paralelo, o que permite, juntamente com a velocidade acrescida da tarefa principal, aumentar a nossa capacidade de entrega, em média, cerca de 15%”, adianta o responsável.
A complementar os esforços de redução do consumo de água e energia em diferentes processos, aposta-se em soluções que permitam conhecer bem esses gastos. Há dois anos a empresa instalou hardware para contabilizar os consumos de energia, água ou ar em quase todas as máquinas de produção e apoio. Começou com cinco pontos de recolha, em 2021 duplicou e quer agora avançar para 12, até final do ano. Desta forma é possível “perceber os consumos reais de cada processo e calcular com maior detalhe os custos de contexto, criar orçamentos mais precisos e ajustar preços, se necessário”, explica Pedro Silva.
Com uma faturação de 11,2 milhões de euros em 2021 feitos, na maioria, a partir de Portugal mas para clientes orientados para a exportação, o grupo Tintex vende também para os mercados do centro e norte da Europa, EUA e Turquia. A aposta na sustentabilidade, que também passa por várias certificações internacionais e por patentes, ajudou a posicionar a empresa no mercado e orienta a estratégia de digitalização. As prioridades passam, como revelam os exemplos, pela sensorização e monitorização de equipamentos e capacidade de acesso em tempo real aos consumos energéticos e taxas de operação das várias máquinas da fábrica, admite Pedro Silva. O objetivo é melhorar continuamente a eficiência e a satisfação do cliente.
Em simultâneo, a empresa está a trabalhar para integrar todos estes dados de produção no ERP de forma automática e imediata, para permitir que clientes e fornecedores possam ter acesso a informação relevante sobre encomendas e pedidos. No domínio da automação, a prioridade tem sido eliminar processos humanos mais cansativos e repetitivos para aumentar a capacidade produtiva, diminuir erros e alocar recursos humanos a outras atividades de menor desgaste e maior valor acrescentado.
Navigator aposta em uniformizar níveis de maturidade digital
Do têxtil para a pasta de papel, mudam a matéria-prima e os processos, mas repetem-se alguns dos principais desafios na transformação para uma indústria 4.0. No caso da Navigator, em escala, porque há quatro grandes fábricas para modernizar e uma operação que representa quase 1% do PIB português.
Uma das prioridades na transformação digital do negócio tem ido também aqui para a automação das unidades fabris, que a empresa diz estar já ao nível das melhores técnicas disponíveis no setor e na indústria. Privilegiou-se uma uniformização dos níveis de automação e maturidade digital das várias unidades de negócio da empresa e com isso conseguiu-se já passar todo o controlo de operações para sistemas centralizados, que “recolhem e armazenam os dados processuais e de qualidade gerados e ajudam na agilização e otimização de produtividade, na redução de custo e no aumento da eficiência operacional”, explica a empresa.
Dessa aposta resultou também a possibilidade de avançar para soluções mais avançadas de otimização de processos, “quer generalizando ferramentas de controlo estatístico, quer criando modelos de previsão de variabilidade que permitam a antecipação de ações corretivas”.
Ainda em 2018, por exemplo, a Navigator começou a implementar uma solução integrada para Gestão de Ativos Industriais (APM - Asset Performance Management), que sistematiza o tratamento de toda a informação gerada e define que ações devem ser priorizadas nas intervenções de manutenção.
Noutras áreas, a companhia tem apostado no desenvolvimento de soluções próprias customizadas, para responder a necessidades concretas da atividade, como fez para as áreas de suporte das operações. Aí adotou uma solução de suporte funcional das várias operações fabris “com um elevado nível de automatização”, que acabou por facilitar a monitorização e controlo das operações nas fábricas e permitir a rastreabilidade de todos os produtos produzidos.
O mesmo caminho, de desenvolvimento próprio, foi escolhido para modernizar as áreas comercial e de Supply Chain, que também já entraram no roadmap de transformação digital da gigante da pasta e papel, responsável por 3% das exportações nacionais de bens, com vendas para 130 países. Aqui o passo a destacar foi a adoção de uma solução para gerir de forma centralizada e transversal as operações da Supply Chain, Logística, Assistência Técnica, Marketing, Vendas, Controlo de Crédito e Análise de Negócio. A mesma solução suporta uma plataforma multicanal, lançada mais recentemente (NVG Hub), “que possibilita a todos os utilizadores acesso online, 24 horas por dia, a um conjunto de informações de conta, bem como a facilidade de inserção de encomendas online com integração automática no sistema”.
Projeto a projeto, a empresa garante que a estratégia de modernização tecnológica da atividade tem estado alinhada com a preocupação de criar condições para uma evolução do estado geral de maturidade digital da Navigator, via para integrar transversalmente soluções digitais e de análise avançada em toda a empresa e melhorar a eficiência operacional.
A suportar essa visão, foi criada já este ano uma nova Direção de Tecnologia Digital, que integra Sistemas de Informação e Tecnologias Operacionais que vai centralizar operações e estratégias para ambas as dimensões, apoiada numa equipa interna capaz de criar soluções integradas e mais avançadas.
Colocar estas duas áreas a falar a mesma língua - TI e TO - é um dos grandes desafios que se coloca hoje às empresas industriais, que passaram a ter dois focos distintos de geração de dados digitais que precisam de comunicar entre si para maximizar o valor dos investimentos realizados em ambas, mas também para que sejam definidas e implementadas estratégias de segurança e proteção de dados que não tinham de ser pensadas antes da conectividade chegar ao chão de fábrica.
A par da área industrial, o grupo diz que está empenhado em modernizar as áreas comercial, florestal e corporativa, todas com espaço no roadmap de iniciativas que está a ser definido para os próximos 12 a 18 meses. Aí vão caber também novos projetos na área da intralogistíca e da monitorização da receção de matérias primas, incluídos numa Agenda Mobilizadora da fileira das tecnologias de produção para a reindustrialização (liderada pela Produtech) com a participação de várias empresas.
Corticeira Amorim transformou fábricas numa fonte de informação crítica para o negócio
Na Corticeira Amorim, colocar a fábrica a produzir informação crítica para gerir melhor o negócio e conseguir ligá-la ao resto dos sistemas de gestão da empresa também tem sido um dos focos de investimento em TI. A necessidade tornou-se mais óbvia quando em 2015 o grupo quis uniformizar o ERP em todas as empresas e percebeu que digitalizar todos os processos implicava ter um MES - Manufacturing Execution System. Este software é usado para gerir, monitorizar e sincronizar a execução de processos físicos, em tempo real, envolvidos na transformação de matérias-primas em produtos.
“Estes sistemas coordenam esta execução de ordens de trabalho através da programação da produção e podem ser conectados a sistemas de nível empresarial, como por exemplo um ERP. As aplicações MES também fornecem feedback sobre o desempenho do processo, e permitem a rastreabilidade de componentes e materiais e a integração com o histórico do processo sempre que necessário”, explica David Tavares, CEO da Kaizen Tech, que implementou a solução.
O projeto é apenas um elemento numa estratégia seguramente mais ampla de transformação digital da Corticeira, mas não deixa de ser mais um bom exemplo dos resultados que podem ser alcançados com um passo considerado já crítico na transformação digital das empresas do sector.
“Um dos objetivos principais e transversal a todas as unidades da CA: Amorim Cork, Amorim Cork Composites, Amorim Cork Flooring, Amorim Florestal e Amorim Cork Insulation foi acelerar e fiabilizar o processo de registo de consumos e produções”, explica David Tavares.
Acabou por conseguir reduzir desvios de inventário e permitir quantificar em tempo real aquilo que estava disponível, reduzindo consideravelmente o investimento em stock. O software trouxe também a possibilidade de antecipar o controlo mensal financeiro, de meados do mês seguinte, para o início do mês, passando a permitir a correção de decisões ou desvios mais depressa. Por outro lado, a empresa ganhou acesso a dados em tempo real sobre a eficiência das máquinas e passou a conseguir quantificar e analisar as perdas de produção.
Um MES também serve para ajudar a minimizar erros em processos críticos, com impacto na qualidade de cada produto. “Após seleção da ordem de fabrico pelo operador, o MES transmite a “receita” à máquina e assegura que as quantidades e a sequência das operações são as corretas”, explica a Kaizen Tech. Numa corticeira isso é uma garantia extra de que um erro não vai resultar na produção de rolhas que não saem das garrafas ou deterioram a qualidade de um vinho superior, por exemplo.
Unidades da Bosch em Portugal seguem plano global rumo à fábrica inteligente
Os ganhos de cada projeto de digitalização para as empresas que os realizam estão diretamente relacionados com a estratégia e a visão que guia o investimento, mas vão ser tanto maiores quanto maior for o espaço para melhoria, desde que haja um plano coerente para fazer o caminho da mudança.
“Dos diversos projetos que realizámos sabemos que os benefícios da transformação digital estão diretamente relacionados com a maturidade do sistema de produção. Isto faz sentido na medida em que uma das primeiras ações no processo de transformação digital é a digitalização de processos”, admite Tiago Sacchetti, diretor da Bosch Industry Consulting para Espanha e Portugal.
Quando há processos e padrões definidos, sublinha, “os benefícios nas empresas que iniciam o processo com um menor nível de digitalização são maiores, chegando a atingir 30% de melhoria na eficiência dos processos”. O valor baixa para metade em empresas com nível de digitalização e conectividade elevado. “Os processos que beneficiam mais da transformação digital são os relacionados com planeamento e controlo de produção e manutenção”, acrescenta ainda o responsável.
A própria Bosch anunciou há 8 anos uma estratégia agressiva para se posicionar na utilização e fornecimento de tecnologia da fábrica inteligente, que envolve as suas 250 unidades de produção em todo o mundo, incluindo as fábricas portuguesas de Braga, Ovar e Aveiro. Aqui já se tira partido de “sistemas bastante maduros que cobrem todos os níveis de transformação digital desde a conectividade à IA, passando pela “simples” disponibilização de informação em tempo real do estado de todas as máquinas, processos logísticos, qualificação de operadores, ordens de produção, indicadores de qualidade, etc”.
Esta base de informação acessível ajuda a dinamizar todas as operações da empresa porque facilita a definição de decisões automáticas e promove o alinhamento de todos os colaboradores com a estratégia da empresa, conta Tiago Sacchetti, exemplificando este último ponto com as árvores de indicadores atualizadas em tempo real, que incluem desde o tempo de ciclo da montagem de um parafuso até ao resultado financeiro da empresa. Melhora também a eficiência na resolução de problemas e “foca os recursos nas soluções e não na busca e compilação de dados. “Há fábricas de milhares pessoas onde começa a ser difícil encontrar uma caneta”, garante o responsável.
Este artigo integra o Especial: Indústria 4.0: Como estão as empresas portuguesas a abraçar a nova revolução no sector
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