Em setembro deste ano, a AlixPartners atualizou previsões sobre o impacto da escassez de semicondutores na indústria automóvel, em 2021. Espera-se agora que a nível mundial a indústria perca este ano 210 mil milhões de dólares em receitas, por se ter visto obrigada a reduzir significativamente a produção. Principal razão: a falta dos chips que hoje equipam os mais diversos sistemas num carro.
O número resulta de uma segunda revisão em baixa das previsões da consultora, já em 2021, e mostra bem como, em janeiro, ainda era difícil prever os reais impactos de uma crise que afinal pode durar até 2023. Em janeiro, a mesma AlixPartners previa que o sector automóvel faturasse menos 60,6 mil milhões de dólares este ano. A previsão, atualizada em setembro, aponta agora para perdas três vezes superiores, a refletir que este ano ficarão por produzir 7,7 milhões de unidades, face às previsões iniciais dos fabricantes, e em consequência das muitas paragens que fábricas em todo o mundo - também em Portugal - se têm visto obrigadas a fazer.
Na Europa, os números do ano passado - relativos a vendas - mostram que as vendas de ligeiros caíram 23,7%. A Covid-19 e o confinamento generalizado foram os principais responsáveis por terem sido vendidos menos três milhões de carros na região. Em 2021, e até setembro, a recuperação prevista deu lugar a uma quebra que se aproxima já dos 25%, face a igual período de 2019, antes da pandemia. Os dados apurados pela ACEA - Associação Europeia de Fabricantes Automóveis para setembro foram mesmo os piores desde 1995.
Vendas de ligeiros em Portugal devem ficar ao nível do ano passado
Em Portugal, e durante todo o ano passado, foram vendidos 145 mil automóveis ligeiros, número que representou uma queda de 35%. Este ano, a Associação Automóvel de Portugal (ACAP) espera que o número fique ainda abaixo do apurado para 2020.
Em relação à produção, os dados compilados pela ACAP até outubro mostram que o número de unidades produzidas em Portugal aumentou em quase todos os segmentos. O crescimento é de 8,1%, mas fica longe de compensar o trambolhão de 25,8% que os mesmos 10 meses de 2020 tinham representado.
A indústria automóvel não é a única afetada pela chamada crise dos chips. Os semicondutores hoje estão presentes em quase tudo o que usamos e nos rodeia, dos telemóveis aos eletrodomésticos, passando pelos dispositivos médicos, infraestruturas que suportam as redes elétricas, aos sistemas militares ou de segurança. Num mundo cada vez mais dominado por software e sistemas eletrónicos, é simplesmente impossível viver sem chips.
Em Portugal, o impacto desta escassez tem-se refletido na disponibilidade limitada de alguns produtos, como as consolas, mas tal como acontece no resto do mundo é sobre o sector automóvel que recaem as maiores preocupações.
Ao longo do ano foram anunciadas paragens em algumas fábricas e sabe-se que ao redor de cada uma destas unidades, há dezenas ou centenas de outras empresas, que quando a produção das fábricas abranda não conseguem escoar o que produzem. Note-se, por exemplo, o caso da indústria nacional de componentes para o sector automóvel.
98% dos modelos de automóveis produzidos na Europa usam componentes Made in Portugal e mais de quatro quintos da faturação das 375 fábricas existentes em Portugal resulta de exportações.
Com a produção de carros a parar em toda a região, os efeitos são incontornáveis, independentemente das empresas se dedicarem a atividades na área da eletrónica ou elétrica (32%), têxteis e outros revestimentos, metalurgia, produção de plásticos e borrachas ou montagem de sistemas.
Expectativas pouco animadoras para um ano que devia ser de recuperação
“Efetivamente algumas fábricas de construção automóvel na Europa já tiveram que parar temporariamente a produção por falta de chips. Pelo que esta situação também está a afetar a indústria portuguesa de componentes para automóveis, dadas as paragens na produção dos seus clientes”, reconhece Adão Ferreira, secretário-geral da AFIA - Associação de Fabricantes para a Indústria Automóvel.
Para além das notícias que foram surgindo ao longo do ano sobre as paragens na produção de algumas unidades industriais, é difícil fazer um balanço do real impacto da crise dos chips na atividade das maiores fábricas portuguesas do sector, como a fábrica da Volkswagen em Palmela, ou a unidade de Mangualde de Stellantis, onde se produzem comerciais ligeiros das marcas Citroën, Peugeot e Opel. Nenhuma das duas empresas esteve disponível para responder a questões.
A Bosch, que em Portugal tem fábricas em Aveiro, Braga e Ovar, aceitou comentar o tema e admite que é a unidade dedicada a sistemas multimédia para a indústria automóvel, em Braga, aquela que mais tem sofrido com a escassez de semicondutores.
“A nossa fábrica de Ovar, que também se dedica à eletrónica está a ser muito menos afetada e o que tínhamos previsto no plano de negócios vai provavelmente ser ultrapassado, o que não vai acontecer em Braga”, admite Carlos Ribas, representante da Bosch em Portugal.
O responsável reconhece que a repercussão da escassez de chips está a ser “uma catástrofe, com um impacto muito negativo, sobretudo na fábrica de Braga, onde o nosso plano de negócios era bom, as encomendas dos nossos clientes eram muito melhores e não estamos a conseguir fazer nem uma coisa nem outra”.
Carlos Ribas estima que “cerca de 20% do mercado tem falta de semicondutores e isso impacta-nos a nós e aos nossos clientes todos os dias [...] todos os dias paramos linhas”. Para 2022 há um “otimismo muito reduzido”, refere, esperando-se ainda um ano de dificuldades, principalmente no primeiro semestre. Sinais positivos antecipam-se, sobretudo, a partir da segunda metade de 2022.
“Não há nada que se possa fazer hoje, para estar a produzir amanhã”, frisa Carlos Ribas. A própria Bosch tem anunciado investimentos significativos no reforço da capacidade de produção de semicondutores. A fábrica de Dresden, na Alemanha, que se vai converter numa das mais modernas do mundo, “até estar a trabalhar à capacidade nominal serão necessários quatro anos”, exemplifica o responsável.
Fábricas de automóveis instaladas em Portugal dão emprego a 53 mil pessoas
Enquanto melhores dias não chegam, as associações do sector fazem as contas às perdas que já se acumulam e às que ainda podem vir. Em Portugal a indústria de componentes para o sector automóvel emprega diretamente 62 mil pessoas, distribuídas por 350 empresas, segundo dados da AFIA. Em 2020, e por arrasto do abrandamento da atividade na Europa, diminuiu a atividade em 12,5% face a 2019, para uma faturação combinada de 10,4 mil milhões de euros. Este ano a faturação destas empresas deve ficar ligeiramente acima do ano passado, pouco mais de 1% pelo cálculos da AFIA.
A ACAP junta a estes outros dados, baseados em números do Instituto Nacional de Estatística, para sublinhar que a fabricação automóvel dá emprego em Portugal, de forma direta, a 52,9 mil pessoas e faturou no ano passado 9,4 mil milhões de euros. No extremo oposto desta cadeia está o comércio automóvel, que no ano passado gerou um volume de negócios de 18,6 mil milhões de euros e que era responsável por 104,3 mil empregos. Como os números do INE não refletem o universo da indústria de componentes, para fazer as contas à criação de valor e ao emprego afetado pelas ondas de choque da escassez de semicondutores, é preciso somar todas estas parcelas.
Os representantes do sector admitem que o impacto da escassez de chips tem ultrapassado as expectativas, pela negativa, numa altura em que os sinais de recuperação da pandemia apontavam num sentido diferente.
“A escassez de semicondutores atingiu a indústria automóvel numa altura em que o sector começava a sentir uma ligeira recuperação moderada dos níveis de produção na sequência de um abrandamento dos casos Covid-19”, sublinha Adão Ferreira.
A mesma perceção tem a ACAP. “A economia tem recuperado, o consumo privado também tem recuperado bem. A taxa de desemprego caiu para 6,8%, que é um valor bastante mais baixo que as expectativas. Tirando casos pontuais, como o do sector do turismo, a economia tem estado a recuperar e o sector automóvel não está a acompanhar”, reconhece António Cavaco, responsável pela direção económico-estatística da associação, admitindo que há quem espere meses por um automóvel.
Como lembra a AFIA, “o aumento da procura de chips da indústria automóvel começou quando as linhas de fornecimento de semicondutores já estavam sobrecarregadas por uma procura significativa de chips do sector da eletrónica de consumo, para telefones e infraestruturas 5G, novas plataformas de videojogos e equipamento informático”.
Paragens nas fábricas de semicondutores e preços de transporte mais elevados
Antes disso, as empresas do sector, também por causa da pandemia, tinham-se visto forçadas a reduzir níveis de compras e o mercado reajustou-se, canalizando a produção disponível para outros sectores. Quando a procura de automóveis voltou a acelerar, o problema revelou-se, mas com nuances, como explica António Cavaco.
“Este problema não está a afetar todos os fabricantes de igual modo, tem muito a ver com os contratos que têm ou tinham, com os seus fornecedores", afirma António Cavaco.
O responsável da ACAP explica que, quando começou a crise" alguns fabricantes diminuíram muito as suas compras e os fornecedores substituíram-nas por compras de outros sectores”. Estas empresas são as que hoje têm maior dificuldade em se abastecerem aos níveis anteriores à pandemia.
António Cavaco aponta ainda dificuldades nos próprios fabricantes de semicondutores, em manterem níveis de produção constantes, por questões de mão-de-obra relacionadas com o impacto da Covid-19, ou a excessiva concentração da produção. “Há determinado tipo de semicondutores que só são produzidos por três marcas a nível mundial: a TSMC, a Samsung e a Intel. Há uma concentração muito grande”. Acrescenta-lhe o aumento do preço do transporte, sobretudo do frete marítimo vindo da Ásia, e dos prazos de entrega de material, para caracterizar as muitas frentes da tempestade perfeita que a indústria automóvel tem de ultrapassar.
Há empresas a “encolher capacidade de produção, desfazer-se de recursos humanos e a procurar financiamento para honrar compromissos”, diz José Couto, da AFIA
Regressando à realidade portuguesa, as perspetivas são as mesmas que se avizinham para o resto do globo. A perspetiva é de um reequilíbrio gradual entre oferta e procura, mas continua a ser difícil arriscar datas para uma recuperação e para o esperado reajustamento entre oferta e procura, concordam as duas associações.
No 10º Encontro da Indústria Automóvel, promovido recentemente pela AFIA, o presidente da associação, José Couto, alertou para o facto de já existirem empresas no sector a “encolher capacidade de produção, desfazer-se de recursos humanos e a procurar financiamento para honrar compromissos”.
Responsável por 12,4% do valor acrescentado bruto de toda a indústria transformadora em Portugal, a indústria nacional de componentes para o sector automóvel, que desde 2015 crescia mais de 8% ao ano, habilita-se a ser uma das mais afetadas pela escassez de semicondutores, mesmo que muitas das empresas aí representadas nem sequer os usem. José Couto disse em outubro à Lusa que este ano podem perder-se 4.000 postos de trabalho. Agora a associação prefere não avançar previsões e aguardar pelos dados reais, destacando a resiliência que o sector tem demonstrado.
Enquanto isso, a Comissão Europeia prepara medidas, financiamento e políticas mais flexíveis, para trazer de volta para a região maior controlo sobre este mercado e há milhares de milhões de euros a serem investidos no reforço da capacidade de produção de semicondutores, por empresas privadas. É certo por isso que o tão desejado ajuste acabará por acontecer. Só falta saber quando.
Este artigo integra o Especial CRISE DOS CHIPS: ONDE NOS AFETA, COMO SE RESOLVE E QUE PAPEL ASSUME A EUROPA?
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