A última semana foi uma das mais negativas de sempre para as criptomoedas, com quebras que ultrapassaram os 10% na Bitcoin e os 20% na Ethereum, duas das principais moedas virtuais. No geral as estimativas indicam que o valor do sector a encolher de 223,74 mil milhões de dólares para 135,14 mil milhões em apenas um dia, segundo a plataforma CoinGecko, naquela que é a uma das maiores quedas desde março de 2020, mas ainda assim 5 vezes menor.
Dados da CoinGekco
Os ativos já estão a recuperar, mas o impacto do pânico dos mercados pelo risco de recessão na economia norte americana mostra também que as criptomoedas não são o “porto seguro” para a instabilidade do sector financeiro.
Este é um aspecto que a regulação não consegue prever, nem evitar, mas o Regulamento MiCA (Markets in Crypto-Assets), que se tornou lei em 2023, pretende trazer maior segurança e previsibilidade, para os operadores e os consumidores, assim como maior transparência. Nesta área a Europa lidera, em termos regulamentares, mas ainda há questões a resolver, nomeadamente na implementação das normas, e no caso de Portugal na definição da autoridade competente para supervisão, que é matéria da competência do Governo.
Passo a passo a regulamentação avança e no final de junho, mais concretamente a 30 de junho, entraram em vigor as regras relativas a dois tipos de stablecoins, ou moedas estáveis, as ART (asset referenced token) e EMT (E-money token) e nas semanas anteriores algumas entidades posicionaram-se mesmo para bloquear o acesso a algumas criptomoedas que não cumprissem as regras, situação que acabou por ser ultrapassada.
Hugo Volz Oliveira, Secretário e Membro Fundador do New Economy Institute, diz que a entrada em vigor destas regras “é da maior importância pois as stablecoins são um dos exemplos mais relevantes para a cripto economia, pois têm vindo a ganhar uma adopção real no mundo inteiro já que reduzem taxas de transação de forma drástica (já que fora do espaço SEPA as transferências bancárias ainda são um pesadelo) e facilitam a tokenização de activos”.
Também Rafael Silva Teopisto, Associado da Abreu Advogados, saúda mais este passo e diz que “é um marco significativo na implementação do MiCA, uma vez que marcará o início da aplicação prática de várias regras estabelecidas no regulamento”.
Mais direto, João Augusto Teixeira, CCO y MLRO de Bit2Me, admite que estas normas trazem regras claras sobre as emissões e a proteção necessária aos investidores, garantindo estabilidade dos preços e evitando que se repitam “casos como da criptomoeda LUNA de terra que entrou em colapso em maio de 2022 e perdeu em poucos dias 99,999% de seu valor, passando de 100 dólares a menos de 0,002 dólares”.
O movimento de antecipação que algumas bolsas de criptomoedas fizeram, com avisos à possibilidade de bloquear stablecoins que não cumprissem o regulamento e não estivessem preparados para ter licença a partir de 30 de junho, não é visto como preocupante, até porque essa correção foi feita rapidamente, e a Circle avançou com o licenciamento, com outras cripto a fazerem o mesmo caminho. A redução de liquidez é apontada como um dos riscos por Rafael Silva Teopisto, que pode ser aliado a uma perda de confiança dos investidores que a percecionam como uma intervenção regulatória excessiva.
O advogado associado da Abreu Advogados lembra também que “em consequência do pesado quadro regulatório, poderá fazer com que os investidores procurem mercados não regulamentados ou menos regulamentados para continuar as suas atividades, o que pode aumentar o risco de fraudes e atividades ilícitas”. Mesmo assim sublinha que há aspectos positivos na proteção do consumidor contra fraudes e perdas.
Portugal ainda a tempo de acompanhar a regulamentação
Em Portugal ainda não foi feita a alocação de competências, que devem ser distribuídas entre a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) e o Banco de Portugal, mas tudo indica que estará para breve. É uma decisão do Governo e fonte oficial da CMVM confirmou ao SAPO TEK, em resposta escrita no início de julho, que o projeto legislativo que dá execução às atribuições decorrentes do MiCA se encontrava em conclusão, no âmbito do Conselho Nacional de Supervisores Financeiros, e que será apresentado ao Governo para apreciação.
“A CMVM está a preparar-se para a supervisão dos criptoativos regulados pelo MiCA que lhe venha a ser atribuída pelo respetivo diploma nacional de execução, em articulação com a ESMA, com outras autoridades de supervisão europeias e com o Banco de Portugal.”, indica ainda a mesma fonte.
A Comissão tinha lançado uma consulta pública em abril para conhecer as entidades interessadas em atuar em Portugal ao abrigo do Regulamento MiCA, com a avaliação do de dados sobre o possível impacto da implementação do Regulamento em Portugal e a “recolha de informação que possa contribuir para os trabalhos de preparação da implementação do Regulamento MiCA, atendendo às características e contributos recebidos das entidades interessadas em atuar em Portugal”. O relatório foi publicado a 7 de julho (documento em PDF) .
Segundo o que foi partilhado, 17 das entidades que responderam à consulta “têm intenção de desenvolver atividades abrangidas pelo Regulamento MICA, 16 dos quais indicaram a intenção de ter Portugal como Estado-Membro de origem”. Destas, 11 já têm atividades com ativos virtuais na União Europeia e dos restantes, 3 estão em processo de registo, indica a CMVM.
“A CMVM terá em consideração estes resultados para preparar a implementação do Regulamento MiCA, quer internamente, no que concerne à sua organização interna e modelos de supervisão, quer externamente, no âmbito dos trabalhos em curso no âmbito do CNSF (Conselho Nacional de Supervisores Financeiros)”, pode ler-se ainda no documento.
Apesar de já estar em vigor, a maior parte do regulamento MiCA só é aplicável a partir de 30 de dezembro de 2024, uma das razões pela qual os especialistas contactados pelo SAPO TEK admitem que ainda há tempo para Portugal designar a entidade de supervisão.
Rafael Silva Teopisto lembra que é expectável que venha a haver uma distribuição desta competência entre o Banco de Portugal e a CMVM e como razões para o atraso na designação oficial da autoridade competente para supervisionar e implementar as disposições do Regulamento aponta “a definição de competências e as possíveis reestruturações dentro das entidades regulatórias existentes, ao que acresce a complexidade regulamentar do MiCA”.
Refere ainda que “comparativamente a outros países da UE, como por exemplo, na Alemanha, o BaFin (Federal Financial Supervisory Authority) tem vindo a preparar-se ativamente para supervisionar o mercado de criptoativos sob o MiCA, sendo que, em França, a AMF (Autorité des Marchés Financiers) também tem sido proativa em adaptar as suas estruturas e processos para se ajustar ao regulamento”.
Efeito positivo da MiCA mas ainda com falta de informação
Mesmo não estando ainda totalmente em prática, o regulamento MiCA é encarado de forma muito positiva por todos os especialistas contactados pelo SAPO TEK.
“Já é possível observar um movimento significativo no mercado de criptoativos em direção a maior conformidade, transparência, segurança e proteção ao consumidor. A plena implementação do MiCA deve consolidar essas tendências e potencialmente trazer maior estabilidade e confiança ao mercado de criptoativos na União Europeia”, justifica Rafael Silva Teopisto.
Para o advogado, “a implementação do MiCA em Portugal tem o potencial de transformar o mercado de criptoativos para melhor, aumentando a confiança, atraindo investimentos e promovendo um ambiente mais seguro e transparente”, mas avisa que “é crucial que as autoridades portuguesas implementem a regulamentação de maneira equilibrada, levando em conta os custos de conformidade e o impacto na inovação”
O secretário e membro fundador do New Economy Institute, Hugo Volz Oliveira, também aponta algumas cautelas. “A aprovação do MiCA apenas tem impacto na indústria e consumidores da UE, mas o mercado da cripto economia é global e pouco dependente das mudanças que por cá acontecem”.
Ainda assim, lembra que “o MiCA tem sido de facto aplaudido por todo o mundo, desde os EUA a Singapura, entre outros, como um enquadramento legal pioneiro e relativamente bem desenhado, pelo menos ao nível das suas grandes linhas orientadoras. Agora vamos ver se Bruxelas de facto consegue exportar esta regulação como um standard global”.
João Augusto Teixeira confirma também que “a segurança jurídica é latente a partir de agora. Vamos ter as regras do jogo claras e a intervenção nos nossos países de empresas de jurisdições estranhas e de risco alto estão com os dias contados”.
Destaca ainda que “é verdade que existe uma alta carga regulatória para os prestadores de serviços de criptoacticos, no entanto, empresas sérias e profissionais como Bit2Me não terão grandes problemas”, referindo que a Bit2Me sempre aplicou a lei (Prevenção de lavagem de dinheiro e grande parte de MICA - abuso de mercado, conflito de interesses, SAC, separação de fundos, resiliência informática, registros mínimos, etc) mesmo quando não estava isso obrigada.
O que falta ainda é mais informação, para as empresas e para os consumidores, uma crítica que Hugo Volz Oliveira deixa bem clara. “Nem as empresas da indústria estão informadas sobre as mudanças, quanto mais os consumidores. Há uma enorme falta de informação quanto ao detalhe desta regulação”, refere Hugo Volz Oliveira.
Apesar das linhas principais da regulação já serem conhecidas há pelo menos um par de anos, e do texto final já ter sido aprovado há mais de um ano, “as medidas de nível 2 e 3 que acabam por ter mais impacto na implementação da regulação têm vindo a ser finalizadas ao longo dos últimos meses pelos reguladores europeus. E esta demora trouxe uma enorme incerteza para todo o ecossistema”, avisa.
Mesmo assim, Portugal continua a ser apontado como um “paraíso” para a área de criptomoedas. “O novo regime de tributação dos criptoactivos tem sido muito bem recebido e os trabalhadores de startups registadas em Portugal continuam a ser elegíveis para a evolução do regime dos RNH, o que permite às nossas empresas continuarem a atrair talento à escala global”, reconhece o secretário e membro fundador do New Economy Institute. “É esta escala que interessa, pois os nossos concorrentes são sobretudo São Francisco, Nova Iorque, Singapura, Dubai, entre outros, e só depois disso Berlim, Londres ou Paris”, sublinha.
Para Hugo Volz Oliveira, “o MiCA pode beneficiar Portugal se as nossas autoridades acelerarem o processo de registo pois dessa forma podemos atrair grandes empresas do sector para cá registarem as suas bases na Europa, por oposição a outras cidades da UE”.
“Isto irá trazer investimento directo e promover o dinamismo do ecossistema. Sendo que é a combinação destes dois factores com a atractividade natural de Portugal que potencia aquilo que muitos tentam imitar para serem a próxima "Silicon Valley" da sua indústria. Cá não precisamos de imitar, já encontrámos uma fórmula de sucesso adaptada à nossa realidade. Só temos de a capitalizar!”, destaca.
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