Por Paulo Trezentos (*)

 

Houve uma Internet em Portugal antes de 23 de Outubro de 2015 - data da demissão de Celso Martinho como responsável do SAPO. E vai haver Internet em Portugal depois de 23 de Outubro.

Não porque tenha mudando alguma coisa num “site” ou servidor, mas pelo simbolismo do que aconteceu e está para acontecer.

Como em todos países do Mundo, a Internet 1.0 foi a época em que os negócios tradicionais (supermercados, indústria,…) tinham uma montra nesta rede. A Internet 2.0 é a época em que negócios são digitais e on-line, com ou sem vertente física.

Taxis, SMS, RTP, Bancos, Supermercados, Servidores de Ficheiros empresariais e CD-ROMs estão na Internet 1.0.

Uber, Whatsapp, Netflix, Crowdfunding, Amazon, Dropbox e App Stores são a Internet 2.0.

A mudança vai ser tão profunda como foi a revolução industrial.
Portugal vai ganhar alguns pontos e perder muitos outros nesta mudança.
A melhor forma de perceber e ilustrar esta mudança é olha-la através de três protagonistas que marcam esta passagem.

Celso Martinho
Cada país tem os seus heróis e o o Celso é o Larry Page e Mark Zuckerberg da Internet em Portugal.
Contar a história dos últimos 20 anos em que esteve à frente do SAPO é contar a história da Internet em Portugal. Dêem-me o desconto de ser seu amigo há outros tantos anos, tendo as nossas carreiras profissionais se cruzado múltiplas vezes.
Estávamos em 1998 quando um grupo de 20 pessoas via USENET (foruns) decidiu jantar no Bairro Alto para decidir fazer um portal (na altura a palavra da moda) dedicado a Linux, algo que unia o grupo. Celso, João Bordalo, Pedro Melo, Mário Valente, eu próprio, entre outros, não conseguiram levar o linux.pt muito além de uma página de entrada mas muitos dos projectos de Internet em Portugal (como a Telenet, Esoterica, Clix,…) tiveram-nos como protagonistas.
O legado do Celso nestes 20 anos vai para além do SAPO como projecto de Internet em Portugal, a frente mais visível.
O impacto que teve nesta geração foi a 3 níveis: pioneiro tecnológico, cultura de ambição e eventos.
Pioneiro tecnológico enquanto esteve sempre na linha da frente de novas tendências que foram surgindo na Internet. O “off-line to online” de serviços da PT, novas tecnologias (open source, segurança,…), a passagem para o Mobile, as páginas “responsive”, etc.. tiveram-no sempre como defensor.
Cultura. O facto dos projectos em que se envolvia terem sucesso, fez com o que tamanho das equipas que comandava fossem aumentando, chegando a 300 pessoas. Nessas equipas foi criando uma cultura de ambição, partilha e profissionalismo e apenas os “melhores dos melhores” conseguiam ir para o SAPO. Essas equipas acreditavam não haver limites ao que com dedicação e talento se conseguia fazer. Até retirar o som irritante das Vuvuzelas nos jogos de futebol era possível. Essa cultura transbordou do SAPO à medida que as pessoas abraçavam novos desafios e vai perdurar enquanto essas pessoas o mantiverem e elas próprias o transmitirem.
Eventos. O Celso foi o criador do Codebits, o maior evento de tecnologia em Portugal que fez com que gerações de portugueses passassem um fim-de-semana por ano acordados a programar, ouvir talks e comer tacos. Sim, o sonho dos Geeks. Mas também foi organizador da MakerFaire em Lisboa e muitos meet-ups relacionados com impressão 3D, Arduinos e Raspberry pi. Estes eventos foram uma forma de disseminação das tecnologias em que foi percursor e a cultura que anteriormente mencionei chegarem a tantos portugueses.
A história da contribuição do Celso não acaba com a sua demissão do SAPO e os seus próximos projectos vão certamente continuar a mudar a Internet em Portugal.

Zeinal Bava
Hoje, o número de detractores de Zeinal Bava enquanto gestor é igual ao número dos que o elogiavam há uns anos atrás. O número é igual porque são os mesmos.
Nunca trabalhei directamente com ele, nunca fiz parte do seu circulo e nunca fui dos que o elogiaram.
Por isso, estou à vontade para ser voz contra-corrente e dizer que foi dos poucos gestores em Portugal que percebeu a mudança que se aproximava e tentou preparar a PT para essa mudança.
Quanto à parte legal do seu exercício das suas funções, não me pronuncio e para isso existem tribunais.
Como gestor, foi exemplar não só pela ambição de querer levar uma empresa portuguesa para fora de Portugal. Foi genial ao compreender que era preciso acrescentar valor ao negócio de voz e dados. Era preciso ter valor “over-the-top” prestando serviços aos clientes para além de transmitir bits e bytes. E apostou no Celso e na PT Inovação / PT SI para executarem essa estratégia.
E, sim, a PT não alcançou esse objectivo de ser um actor em múltiplos continentes como prestador de serviços “over-the-top”. Na minha avaliação, falhou não pelas decisões que tomou mas porque se gerou a “tempestade perfeita” que ninguém conseguiria prever ou evitar. A queda do accionista de referência, a crise económica em Portugal e até a crise política da Europa puseram fim ao principal projecto de Internet 2.0 em Portugal. Falhar só acontece a quem não ousa. Zeinal ousou e fê-lo com muito talento. E muitas coisas positivas e de valor para a economia foram criada com a sua liderança e no percurso que descrevi..

Pires de Lima
A Altice é um grupo de franceses que pediu crédito aos bancos para comprar empresas de telecomunicações, fazer engenharia financeira com as mesmas e revende-las daqui a 5 anos.
Ponto.
Nesse percurso, vai despedir ou fazer com que se despeçam o máximo de pessoas na PT, vai empossar lideranças fracas no projecto empresarial (a ligação à demissão do Celso Martinho é pura coincidência) e desinvestir de desenvolvimento em Portugal.
Durante muitos anos, e com as seus próprios defeitos e problemas internos, o SAPO, a PT Inovação e a PT SI acrescentaram valor à economia através da inovação. Em três meses, esses três centros de criação de valor estão destruídos irreversivelmente. Mesmo que houvesse vontade política e empresarial, já não é possível voltar atrás.
Sempre gostei do ministro Pires de Lima porque sempre me pareceu credível e inteligente. E porque, como ele, acredito que o estado deve intervir pouco na economia.
Hoje, é ele a cara da Altice em Portugal.
O que poderia ele ter feito ?
Quando a PT falhou no Brasil e a estrutura accionista caiu, era preciso perceber a visão do projeto e quais os novos accionistas que poderiam liderar a PT na Internet 2.0. Quem poderia liderar esta visão de projectos “over-the-top” de carácter global com a tecnologia dos 3 centros de inovação da PT. Esses accionistas poderiam ser portugueses ou estrangeiros. Mas que ajudassem a PT, e Portugal, a dar esse salto para a Internet dos Uber, do Netflix que entrou esta semana em Portugal, dos Whatsapp e das Dropbox.
Nos Estados Unidos ou em Inglaterra, na Alemanha ou em Singapura, o estado intervém pouco mas fá-lo quando está em causa o interesse nacional.
Penso que o problema não é o facto do ministro vir dos Sumos e das Cervejas. O problema é não ter acreditado que nós, portugueses, podíamos ter uma palavra a dizer na Internet 2.0 e dos centros da PT poderia ter surgido um competidor global do Slack ou da Rocket Internet. Para o ministro, nós sermos empregados de Call Center em Vieira do Minho é o desígnio nacional.

As más noticias.
As grandes empresas e de referência em Portugal não estão a fazer a mudança. Ao futuro governo português cabe aprender com o descalabro da PT e de forma muito pontual tentar que no âmbito da sua intervenção possa apoiar essas empresas - como bancos, construtoras, turismo, fileira do papel, … - a serem actores na nova economia.

Ainda piores noticias.
Algumas empresas internacionais (como a Naspers ou a Sky), aproveitaram os últimos meses para instalarem em Portugal centros de desenvolvimento de software e contratarem os engenheiros e developers que saíram da PT.
São más noticias ? Para Portugal, muito provavelmente. Só o ordenado desses engenheiros fica em Portugal. As chefias intermédias e de topo, os fornecedores, a retribuição aos accionistas e - muito importante - os impostos ficam todos fora de Portugal.

As boas noticias.
Feezai, Talkdesk, Uniplace, Science4you ou Aptoide são empresas portuguesas e não estão no negócio dos Call Centers. Estão no negócio da Internet 2.0. Têm chefias intermédias e de topo, fornecedores e alguns accionistas portugueses. Pagam impostos. Contribuem para as exportações. São rentáveis e têm milhões de utilizadores. Querem conquistar o mundo prestando serviços a nível global e estão a contratar talento em Portugal e para Portugal.
A Internet do “off-line to online”, do “over the top” está aí.
E ao contrário do descalabro das empresas de referência, o ecosistema de start-ups está a funcionar melhor do que nunca. Os investidores (Portugal Ventures, Faber,…), as incubadoras (Startup Lisboa, Beta-I, BGI ISCTE,…), os eventos (Web Summit,…) estão a colocar Portugal no mapa.
A Internet está 1.0 está morta. Viva a Internet 2.0.

 

(*) investigador, professor auxiliar do ISCTE e fundador da Caixa Mágica e da Aptoide.

 

Nota da Redação: Ontem o Económico avançou a notícia de demissão de Celso Martinho da direção executiva do SAPO, mas a informação não foi ainda confirmada oficialmente por nenhuma fonte do SAPO nem da PT Portugal. 

 Foi corrigida uma gralha.