Por Luís Vidigal (*)

Portugal volta a prometer uma reforma estrutural da Administração Pública, com contornos decididamente digitais. O Programa do XXV Governo Constitucional apresenta uma visão modernizadora com base em três pilares: Simplificação, Digitalização e Responsabilização. No entanto, entre a intenção e a transformação há um percurso exigente, que passa pela concretização tecnológica, em que a arquitetura informacional do Estado pode ser a chave que separa o entusiasmo da eficácia.

No centro da proposta está uma ideia forte, embora pouco explorada no debate público e ainda pouco explícita nos compromissos do Governo. Trata-se da reorganização do Estado assente na partilha de repositórios únicos com dados fiáveis e a fluidez digital dos processos centrados na resolução de eventos de vida dos cidadãos, como o nascimento de um filho, a criação de uma empresa ou a reforma de um cidadão.

Esta abordagem não é um luxo tecnológico nem uma marca ideológica, mas uma revolução silenciosa que deve ir para além de uma legislatura. Pois deixa de ser o cidadão a adaptar-se à máquina e passa a ser o Estado a organizar-se em função da trajetória real das pessoas e das empresas. Uma administração que reconhece que cada evento de vida exige respostas integradas, proativas e previsíveis.

A promessa de um Estado sem muros digitais internos, onde os sistemas se falam e os dados circulam com segurança e autorização, aponta para um modelo de interoperabilidade total. Um Estado onde a informação, uma vez entregue, não precisa de ser novamente solicitada. Onde o “só uma vez” é finalmente respeitado, não por benevolência, mas por arquitetura de base. Isto exige mais do que software: exige uma infraestrutura lógica comum, normas técnicas unificadas, padrões de dados abertos e a coragem política para desmantelar os silos institucionais.

A digitalização, nesta ótica, não se limita a transpor os papéis para o ecrã. É uma oportunidade para reprogramar o Estado de raiz, com base numa visão sistémica, orientada ao utilizador e com a inteligência artificial como aliada estratégica. Fala-se da criação de um Chief Information Officer do Estado, todavia, mais do que uma figura simbólica, o que se exige é a governação da informação pública como um bem comum. Um Estado que saiba onde estão os dados, quem os gere, com que regras e com que finalidades.

No entanto, a tecnologia só será emancipadora se for usada para garantir direitos, não para burocratizá-los de forma invisível. Um Estado centrado em eventos de vida exige fluxos de dados interoperáveis, mas também auditáveis, transparentes e controláveis pelo cidadão. Só assim se combate o risco de um Leviatã digital, onde o controlo substitui o serviço e a vigilância emerge disfarçada de eficiência.

O futuro da Administração Pública depende mais do que nunca da sua capacidade de pensar em arquitetura tecnológica, semântica, legal e ética. O desafio está em substituir a lógica do formulário pela lógica da resposta integrada, em passar de serviços fragmentados para experiências fluídas, em abandonar o labirinto dos carimbos e abraçar o mapa claro dos direitos digitais.

Esta não será uma reforma visível em inaugurações ou corte de fitas. É uma reforma silenciosa, feita de decisões técnicas, interoperabilidade bem desenhada, normas partilhadas e confiança nos dados. Mas esta reforma poderá ser, talvez por isso, a mais importante de todas. Porque não se trata apenas de digitalizar o Estado, trata-se de reconstruí-lo à imagem de quem nele vive.

A tecnologia, usada com inteligência cívica, pode tornar o Estado mais humano. Porque a verdadeira inovação pública não está em servidores nem em algoritmos. Está na coragem de repensar tudo a partir do que realmente importa, que é a vida concreta dos cidadãos e agentes económicos.

(*) CSO and E-Governance Strategy