Por Jorge Silva Martins e Marco Ramalheiro (*)
A CNPD veio dizer recentemente que as empresas devem, à luz da legislação vigente, abster-se de práticas de recolha de dados ilegais, referindo-se à medição de temperatura dos trabalhadores antes destes iniciarem o seu trabalho.
Os argumentos da CNPD não colhem, nem do ponto de vista do enquadramento jurídico de proteção de dados, nem tão-pouco da legislação laboral atual. Comecemos pelo primeiro.
Dado que se considera que a medição da temperatura corporal é uma prática reconhecidamente eficaz na identificação de possíveis situações de infeção pelo novo coronavírus SARS-CoV-2 e, por isso mesmo, uma medida adotada em todo o mundo, não podemos falar de uma inadmissível intromissão na privacidade. Medir a temperatura dos trabalhadores é uma medida absolutamente proporcional, adequada e justificada para proteção dos próprios e terceiros (fornecedores ou clientes, por exemplo), não nos parecendo haver ilicitude.
Depois, a CNPD defende a inadmissibilidade da recolha de quaisquer dados de saúde, apenas com exceção das situações previstas na legislação relativa a segurança e saúde no trabalho, aprovada em 2009, que regula (entre outros temas) os habituais exames de admissão ou exames periódicos. Porém, estranhamente, não faz nenhuma referência ao Código do Trabalho, que constitui o diploma central de toda a nossa legislação laboral.
Nem poderia. Porque justamente, o CT prevê a possibilidade de o empregador exigir ao candidato ou trabalhador (i) informações relativas à sua vida privada (se estritamente necessárias e relevantes), ou mesmo (ii) informações relativas ao estado de saúde ou gravidez (se justificado por particulares exigências da atividade), ou até mesmo (iii) outros testes ou exames médicos (se para proteção e segurança do trabalhador ou terceiros, ou se justificado por particulares exigências da atividade), devendo ser fornecida fundamentação escrita.
Colocando de forma simples: ninguém duvida da ilicitude do comportamento do empregador que, sem qualquer motivo atendível, solicita informações sobre estado de gravidez ou testes do VIH, por exemplo. Porém, alguém duvidará da licitude do comportamento do empregador que exige informações relativas ao estado de saúde, testes e ou exames médicos, se por exemplo estiver em causa um jogador de futebol profissional? Ou que solicita informações relativas ao estado de gravidez, se estiverem em causa funções que podem afetar a saúde do nascituro (por exemplo, radiologista)?
Já mais duvidosa será a questão de se saber se é exigível a intermediação do médico do trabalho para a medição temperatura.
Mas também aqui nos parece que não. Por um lado, porque não parece configurar um dos “testes ou exames médicos” previstos no CT que exigem tal intermediação e, por outro lado, não se trata de uma informação com o grau de sensibilidade das “informações relativas à saúde ou estado de gravidez”, também estas previstas no CT.
No atual contexto a temperatura corporal deverá ser considerada uma “informação relativa à vida privada, mas estritamente necessária e relevante para avaliar a aptidão no que respeita à execução do contrato de trabalho”. Parece-nos que é o caso: se o trabalhador está com febre, é imperioso que evite ainda mais o contacto social, siga as recomendações das autoridades de saúde e confirme se está ou não infetado.
Em todo o caso, deverá sempre assegurar-se que o empregador fornece por escrito a respetiva fundamentação, podendo esse procedimento ser cumprido, por exemplo, através de email geral enviado aos trabalhadores da empresa.
Por outro lado, também se aceita que o trabalhador possa recusar a medição da sua temperatura corporal pelo empregador, mas nesse caso o empregador também pode legitimamente recusar a entrada desse trabalhador nas instalações.
Quanto a argumentos à luz da proteção de dados, também aqui as orientações não encerram a discussão.
Por um lado, porque o próprio Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados prevê várias possibilidades de derrogação da proibição genérica do tratamento das chamadas categorias especiais de dados pessoais (onde se incluem os dados relativos à saúde dos trabalhadores), desde logo para avaliação da capacidade de trabalho do trabalhador, diagnóstico médico ou por motivos de interesse público no domínio da saúde pública.
Qualquer um destes fundamentos será suficiente para legitimar a medição da temperatura corporal dos trabalhadores, tendo em conta as especificidades da doença Covid-19 e as formas de deteção da mesma.
Por outro lado, porque o RGPD e as normas sobre proteção de dados, de uma forma geral, assentam essencialmente numa lógica de princípios e não de regras. Ou seja: a aplicação dessas normas convoca, na esmagadora maioria dos casos, uma tarefa de avaliação, ponderação ou balanceamento entre os diferentes direitos, interesses e valores potencialmente conflituantes numa dada situação em concreto. Cabe ao intérprete encontrar, em cada caso, qual o ponto de equilíbrio que se mostre mais conciliador. Se é assim em contexto de normalidade, muito mais o será em contexto de emergência.
(*) Jorge Silva Martins, associado coordenador da área de TMC; Marco Ramalheiro, associado coordenador da área de Laboral
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