Por Pedro Ferrão Tavares (*)
Ao longo dos anos, o setor público tem atravessado sucessivas vagas de inovação, resultado de uma exigência maior da população, num movimento que ultrapassa fronteiras e contextos locais.
Se não vejamos: a função tecnológica nas organizações públicas tem vindo a crescer de uma forma muitíssimo significativa, como consequência de mais serviços públicos, mais simples, mais integrados, ou mais eficientes e, sobretudo, pensados enquanto resposta de qualidade, competitividade, coesão e diferenciação de uma nação e não apenas como respostas atomizadas. E este movimento só terá tendência em aumentar. Queremos fornecer os nossos dados uma única vez, evitar deslocações desnecessárias, circular no espaço europeu com total facilidade, ter acesso à nossa ficha clínica de forma simples ou gerir as obrigações das empresas em poucos passos, de preferência apenas ter de confirmar dados que a administração já tem. São alguns exemplos das expectativas cada vez mais elevadas da nossa sociedade que resultam em saltos qualitativos para um país como Portugal.
E, por outro lado, é impossível ao Estado responder a estes desafios de uma forma meramente interna. O setor público enfrenta uma força de trabalho envelhecida, competências ainda limitadas em diferentes domínios, particularmente em áreas avançadas como inteligência artificial (IA) e ciência de dados e uma incapacidade de competir com o setor privado pelos melhores talentos. A transformação necessita, pois, da iniciativa privada, das grandes às pequenas empresas, da academia, dos especialistas, não só tecnológicos, mas também das ciências sociais, do direito e de tantas outras áreas.
Temos, pois, um mercado vasto. Basta ver, por exemplo, a nível europeu, o que representa a percentagem de serviços e produtos tecnológicos do total de aquisições públicas. Ou outro exemplo, no caso dos fundos comunitários, como o PRR, a percentagem que foi alocada para o necessário processo de modernização dos serviços públicos.
E é neste contexto que se situa exatamente o desafio quanto ao espaço e forma de resposta a esta transformação. Porque, historicamente, a relação entre estado e setor privado está muito centrada nas grandes empresas que, pela sua dimensão, têm mais facilidade em trabalhar com um estado lento na aquisição, com regras e legislação de contratação que tiveram como premissa base regras de maior transparência e abertura ao mercado, mas que, na verdade, limitam o acesso a empresas mais pequenas, sem capacidade ou conhecimento para navegar no ecossistema público.
E desta realidade surgem respostas muitas vezes menos disruptivas do que necessitamos, ou que demoram mais a ser implementadas.
É por isso que é tão necessário o crescimento de um ecossistema Govtech e o incentivo a políticas públicas que o garantam.
É uma área com enorme potencial de criação de soluções especificamente desenhadas para os desafios do setor público. É um contexto que permite uma inovação mais rápida, focada no propósito de responder às necessidades, através de soluções de tecnologia avançada e na promoção de uma cultura de experimentação e prototipagem rápida.
E, em simultâneo, o ecossistema Govtech não se circunscreve apenas em melhores soluções públicas: também estimula o crescimento económico. Ao desenvolver novos modelos de negócio e soluções escaláveis, as empresas que trabalham no setor público podem exportar estas soluções para diferentes mercados. É, por isso, também uma forma de posicionar os países de origem como líderes em inovação no setor público. Mercados como o Reino Unido e os Estados Unidos, e até mesmo o Brasil, demonstram que um setor Govtech dinâmico pode contribuir significativamente para o crescimento económico.
Um estudo muito recente estimou que o potencial do ecossistema Govtech pode corresponder ao dobro do que representa a área de Fintech. Com a dimensão do mercado público, tal não é surpreendente. Mas na Europa, a verdade é que ainda aproveitamos pouco.
Muito recentemente, o governo português anunciou um plano para utilizar inteligência artificial para agilizar os processos de candidatura a financiamento europeu das empresas. Ora, este é o tipo de solução que diversos países já disponibilizaram. Espanha tem um sistema que permite uma análise rápida destes processos e é uma boa prática internacional. Já em Portugal, recentemente desenvolveu-se, por exemplo, uma aplicação que permite verificar a probabilidade de um documento submetido poder não ser fidedigno. Não faria sentido haver sinergia e partilha de todas estas soluções, mais ainda porque na sua maioria tiveram até financiamento europeu?
Uma Abordagem Europeia para Govtech
Chegar mais longe e mais rapidamente na inovação deste ecossistema na Europa precisa, pois, de uma intervenção mais rápida e coordenada:
- Saber “produtizar” o Govtech: Identificar as necessidades comuns mais fundamentais entre diferentes estados-membros, como interoperabilidade ou identificação eletrónica, que possibilite produzir mais casos de uso e saber comunicar melhor estes desafios ao mercado. A administração tem de saber fazer melhor o seu “pitch” para que o mercado responda.
- Investir em competências para melhorar a gestão, cultura de mudança e promover a confiança: O setor público ainda tem um forte ceticismo inicial em relação a novas soluções disruptivas criadas por empresas mais pequenas. Por outro lado, muitas vezes até tem dificuldade em identificar qual o problema específico, o que dificulta a apresentação e adoção eficazes de soluções inovadoras. Necessita, pois, de mais competências, mais sensibilização e de foco no resultado e de medição de impacto.
- Promover mecanismos inovadores de contratação pública: Os processos tradicionais de contratação pública a nível europeu não são adequados à inovação. É necessário intervir para permitir um acesso mais facilitado à disrupção, à experimentação e, sobretudo, à necessidade de por vezes existirem projetos que não funcionam e de isso ser uma premissa essencial para melhorar.
- Garantir capacidade de escala e promover a exportação de soluções: Em mercados mais pequenos, como Portugal, a escala limitada pode ser uma restrição significativa. É, por isso, essencial uma rede mais forte e coesa e um quadro jurídico mais favorável que impulsione uma abordagem de mercado mais ampla e integrada para assegurar sustentabilidade e crescimento e, sobretudo, que permita que estas soluções sejam exportáveis para outras geografias. Para isso, é ainda fundamental abordar barreiras linguísticas e fomentar a confiança em novos mercados.
Iniciativas desenvolvidas recentemente em Portugal, como o primeiro programa Govtech específico para a Justiça, lançado em 2023, exemplificam o potencial desta abordagem. Este programa já produziu resultados significativos, com soluções disruptivas para tantos desafios na Justiça, como um guia prático para a Justiça em linguagem natural, tecnologias de anonimização de sentenças, algoritmos de localização de matrizes e de configuração de prédios rústicos ou de deteção de marca para propriedade industrial. São projetos que comprovam a viabilidade e eficácia deste modelo na produção mais rápida de resultados com impacto.
Continuar a investir no desenvolvimento de competências e expandir este modelo para outras áreas – em estreita ligação entre transformação digital e competitividade económica – pode reforçar ainda mais o caminho que um país pequeno como Portugal tem construído, como um exemplo não só de inovação no setor público, como de disrupção em soluções para um mercado internacional.
(*) Especialista em Políticas Digitais e ex-Secretário de Estado da Justiça.
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